O "revivalismo na investigação" de substâncias psicadélicas tem resultado, aos poucos, no surgimento de novos tratamentos pelo mundo - e Portugal não é exceção. Estas substâncias são vistas como uma forma de garantir um "espaço de apoio seguro" para "aceder a memórias" e "entender traumas". Os efeitos mais rápidos são uma das vantagens em relação aos antidepressivos.
A investigação sobre o uso de substâncias com propriedades psicadélicas para o tratamento de doenças mentais tem crescido nos últimos anos. A sua utilização, no entanto, não foi ainda aprovada para uso clínico – nem pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA), nem pela Food and Drug Admnistration (FDA). Apesar disto, em países como Canadá e Estados Unidos da América, começa a ser aplicada a cetamina.
Com efeitos semelhantes aos psicadélicos, a substância, aprovada como anestésico, é o primeiro passo para uma nova linha de tratamento de doenças do foro psicológico. A cetamina tem sido aplicada numa modalidade off label, o que significa que está a ser usada com um propósito que não consta no rótulo. Ou seja: não foi aprovada para tratamentos de saúde mental, mas pode ser utilizada para tal, de forma legal.
Este tipo de tratamento surge para ser utilizado de forma complementar à terapia. Serve o propósito de desbloquear, ou desinibir, o paciente com patologias associadas à saúde mental, permitindo-lhe estar mais recetivo aos tratamentos de acompanhamento convencionais.
Os psicadélicos são uma ferramenta usada para que a terapia funcione melhor. – Benjamin Lightburn
Em Portugal já começam a surgir as primeiras experiências. É o caso do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, que tem em prática um tratamento com cetamina para depressão resistente. Além disso, a Fundação Champalimaud, em Lisboa, está a realizar ensaios clínicos com a substância alucinógena psilocibina, presente nos cogumelos mágicos. No Porto, no Hospital de São João, também já foi manifestado o interesse em implementar este tipo de tratamento – mas é um projeto que ainda não saiu do papel.
“Crise na psiquiatria” e possível integração no São João
O psiquiatra no Centro Hospitalar de São João, Pedro Sousa Martins, é um dos responsáveis por submeter o protocolo para a aprovação do uso de cetamina no tratamento de depressão na instituição portuense.
Em conversa com o JPN, o profissional de saúde explica que a psiquiatria está numa fase de “crise tripla”: “uma crise de teorias explicativas, uma crise de categorias diagnósticas e uma crise de tratamentos”. Por essa razão, nos últimos anos não apareceu nenhuma modalidade terapêutica “verdadeiramente nova”. Agora, para preencher essas lacunas, “começa-se a falar do recurso a substâncias psicadélicas como potencial tratamento no contexto de perturbações psiquiátricas”, avança.
Uma vez que outras substâncias não estão aprovadas, a cetamina (que, de acordo com o psiquiatra, “funciona como um psicadélico atípico”), tem sido a precursora do novo tipo de abordagem. Embora o anestésico já tenha sido utilizado para outras condições mentais noutros países, o protocolo de uso desta “nova arma terapêutica” foi submetido no São João “exclusivamente para depressão resistente” e com “critérios bem definidos”, explica Pedro Sousa Martins. Mas, por enquanto, o modelo ainda não foi admitido na instituição.
A norma proposta implica que “a pessoa, ao longo de cinco a dez semanas, se dirija uma vez por semana ao hospital para receber uma infusão intravenosa do medicamento”. No dia seguinte, “dirige-se para a sessão integrativa com suporte psicológico”, informa o psiquiatra.
O profissional de saúde clarifica, porém, que para recorrer ao procedimento é preciso responder a um conjunto de parâmetros. Assim, o paciente candidato ao uso de cetamina tem de ter “experimentado, pelos menos, a combinação de dois medicamentos ou a dose máxima recomendada” e, “ao fim de seis meses, ainda manifestar sintomas” de depressão.
Uma pesquisa experimental que promete inovação – com resultados promissores no Canadá
No Canadá, por sua vez, já existem clínicas especializadas em tratamentos com cetamina. É o caso do The Linden Medical Centre, que faz infusões via intravenosa desde 2019. De acordo com o que a psiquiatra da instituição, Monika Hooper, avança ao JPN, 70% dos pacientes apresentam respostas positivas ao tratamento. Os restantes não pioram com o uso da substância – apenas não respondem ao procedimento. Dentro dos resultados positivos, 30% dos pacientes apontam o desaparecimento completo dos sintomas.
O tratamento na The Linden Medical Centre arranca com uma avaliação inicial e algum trabalho de preparação, onde é explicado o que se pode sentir quais os cuidados a ter. Durante o procedimento, o paciente é acompanhado por um enfermeiro ou anestesista que aplica a intravenosa – um procedimento que dura 40 minutos. Posteriormente, tem um período de recuperação de 20 a 30 minutos. Sendo um anestésico, e ao contrário do que acontece com outras substâncias psicadélicas, após interromper a aplicação o efeito do medicamento vai desaparecendo.
Depois de um período de 24 a 48 horas, os pacientes voltam à clínica para sessões de psicoterapia. Nestas consultas falam sobre a experiência, o que surgiu durante o procedimento, que perspetivas tinham e o que mudou. Segundo Monika Hooper, a cetamina assemelha-se a um neurotransmissor, por fazer com que o “cérebro volte a ficar online” – como “ligar a ignição de um carro”. Na Linden Medical Centre a terapia com cetamina dura três semanas, num total de seis infusões (duas por semana). Em certos casos, podem ser precisas sessões de manutenção após o período de tratamento estabelecido.
Ainda no Canadá, é possível aceder a um tratamento chamado “Programa de Acesso Especial” – sendo a Filament Health uma das entidades que faz investigação científica com psicadélicos para a saúde mental e que os providencia a pacientes e médicos do país. A empresa faz estudos com psilocibina para o tratamento da depressão, ansiedade, abuso de substâncias e distúrbios alimentares, e sobre ecstasy para o tratamento de stress pós-traumático.
Segundo o presidente da Filament Health, Benjamin Lightburn, estas substâncias permitem “aceder a memórias, experiências ou traumas do passado” sem que o paciente “se sinta tão reticente” ou “se feche”. Concede, assim, a capacidade de alcançar “um problema que possa ter acontecido há muito tempo” ou confrontar “um mecanismo de defesa que tenha abafado uma memória e nunca mais pensado nela”, completa. Desta forma, os psicadélicos permitem caracterizar e entender o trauma vivido, dando espaço para “lidarem com ele num espaço de apoio seguro”, com a ajuda de profissionais treinados.
“São uma ferramenta usada para que a terapia funcione melhor”, conclui Benjamin Lightburn. Tal como ocorre com a cetamina, o uso destas substâncias é sempre articulado com sessões terapêuticas – ou seja, o doente é acompanhado antes e durante o procedimento. Um dia ou dois depois, os pacientes voltam à clínica para uma sessão de integração, que tem o propósito de dar a compreender e aprofundar alguns dos “mistérios e lições” que foram captados na experiência.
Ainda que já haja vários estudos e aplicações, no Canadá a cetamina continua a ser utilizada em off label para o tratamento de depressão, stress pós-traumático e ideação suicida. De acordo com Monika Hooper ainda nenhuma empresa submeteu o pedido de aprovação clínica da substância.
O “revivalismo” dos psicadélicos na saúde mental
Os profissionais da área falam sobre um momento de “revivalismo da investigação” dos psicadélicos, cuja utilização tem vindo a ser debatida. De acordo com Pedro Sousa Martins “é necessário garantir que estas substâncias são seguras” e que se consegue um tratamento com eficácia cientificamente comprovada.
Segundo Benjamin Lightburn, presidente da empresa canadiana, foi entre os anos 1940 e 1960 que alguma pesquisa começou a ser feita. Já durante a década de 1970, e até os anos 2000, houve uma “proibição quase completa destas substâncias”, partilha com o JPN.
Pedro Sousa Martins complementa que esse impedimento surgiu com a campanha “War on Drugs” do presidente Nixon. “As substâncias psicadélicas acabaram por ser postas no mesmo saco de substâncias muito mais nefastas como a heroína e cocaína”, revela o psiquiatra. Desta forma, apesar do seu “potencial terapêutico”, “deixou de haver investigação”, reitera.
Barreira na pesquisa de alucinógenos para a saúde mental
Tanto a cetamina como os psicadélicos aproximam-se pelo efeito alucinogénio. No entanto, são drogas diferentes. Existem dois tipos de alucinógenos: os clássicos, como o LSD e a psilocibina, e as drogas dissociativas, como a cetamina.
O presidente da Filament Health conta que o uso de psicadélicos é descrito como “uma experiência mística”, mas assegura que se trata de “muito mais que ver coisas”, apesar de haver uma fuga à realidade. “É difícil pensar em palavras que consigam realmente descrever a experiência. Há quem diga que conheceu Deus, há pessoas que dizem ter conhecido algum ser espiritual que faz parte da sua tradição”, explica.
Dissociativos como a cetamina, por sua vez, são descritos por Benjamin Lightburn, como “uma manta quente e felpuda”. Do seu uso podem suceder pequenas alucinações, ou a sensação de estar num estado alterado da realidade, mas não uma total separação.
Ainda que haja diferença nos efeitos, a cetamina e psicadélicos têm em comum os entraves na pesquisa – nomeadamente conseguir aprovação para os estudos. “É bastante difícil obter permissões do governo para o fazer legalmente”, declara Benjamin Lightburn. “São precisas várias autorizações e licenças de vários produtos, além de outras relacionadas com importação e exportação”, reitera.
A dificuldade para obter investimentos é outro aspeto mencionado. Segundo a psiquiatra Monika Hooper, da The Linden Medical Centre, os estudos e investigação são processos muito caros por “envolverem muitas pessoas”. “Há enfermeiros, anestesistas, assistentes de pesquisa, psiquiatras” e “todas estas pessoas precisam de ter o seu tempo pago”, informa.
As substâncias psicadélicas acabaram por ser postas no mesmo saco de substâncias muito mais nefastas como a heroína e cocaína, […] apesar do seu potencial terapêutico. – Pedro Sousa Martins
Apesar de confirmar o aumento das pesquisas feitas com substâncias psicadélicas , tanto no Canadá como nos EUA, a psiquiatra não acredita que os tratamentos sejam inseridos em hospitais, “por causa dos custos de providenciar o tratamento serem muito altos”. “É algo que será feito [apenas] em clínicas”, afirma.
Benjamin Lightburn refere igualmente o estigma associado. “Muitas pessoas ainda pensam que psicadélicos são maus, ou que são para hippies, ou que não são algo sério”, conclui.
Uma alternativa aos antidepressivos
Pedro Sousa Martins explica que um dos grandes benefícios da cetamina é apresentar efeitos mais rápidos do que antidepressivos. Exemplifica com um antidepressivo clássico: “a fluoxetina”, que se trata de “um medicamento que costuma demorar pelo menos duas semanas a começar a fazer efeito”. Já “com a cetamina temos efeito usualmente logo no próprio dia”, explica o psiquiatra do São João.
Benjamin Lightburn também refere como os antidepressivos são completamente diferentes dos psicadélicos. Substâncias como ISRS (inibidores seletivos de recaptação de serotonina, fármacos usados no tratamento de depressão e ansiedade) “impedem a reabsorção de serotonina” e permitem que haja uma “dose extra” do neurotransmissor no corpo. Já os psicadélicos fornecem uma experiência intensa em que “te vês de um ponto de vista separado de ti próprio”.
A duração dos efeitos e aplicação também diferem: a psilocibina pode ter efeitos de seis a oito horas, enquanto o LSD pode ter efeitos de 12 a 18 horas. A cetamina, por sua vez, por ser aplicada por via intravenosa, pode ser “ligada ou desligada” quando se quiser, diz o representante da empresa canadiana. Acrescenta que a pesquisa a ser feita com psicadélicos pode ser vantajosa por causa da ineficiência de antidepressivos. “Por exemplo, os ISRS, utilizados para tratar depressão, só têm 30% de probabilidade de funcionar no primeiro plano tratamento e ao longo do tempo. Depois de múltiplos planos de tratamento, só têm 65% de probabilidade”, completa.
Ainda que haja provas dos benefícios, é necessário que o experimentalismo dê lugar ao desenho cuidado de um plano de aplicação clínica – que permita quebrar estigmas e explorar todo o potencial de novos métodos com uma utilização apropriada. No entanto, já há uma certeza comum: abrir a mente pode ser o novo caminho para a sua compreensão e tratamento.
Artigo editado por Ângela Rodrigues Pereira