Um dos maiores desafios dos trabalhadores-estudantes é tentar conciliar a vida académica com a vida profissional. O JPN falou com alguns estudantes com este estatuto para perceber o que é um trabalhador-estudante, o motivo para terem pedido esse estatuto e as implicações que tem na sua vida. As instituições dizem estar a tentar adotar medidas mais flexíveis para responder a esta realidade.

Filipe Monteiro, Igor Fernandes, Cristiana Santos, Carlota Pereira e Sónia Melo são cinco trabalhadores-estudantes da Universidade do Porto, instituição que, em 2022, tinha 1.695 alunos com esse estatuto. Todos eles dizem que um dos maiores desafios é tentar conciliar a vida académica com a vida profissional, o que se reflete na rotina desenfreada dos jovens estudantes.

A Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) tinha, em 2022, o maior número absoluto de trabalhadores-estudantes: no total, eram 304. Filipe Monteiro é um dos alunos com esse estatuto. No semestre passado, a rotina do jovem começava por volta das seis da manhã, quando se preparava para sair de casa. Residente em Escapães, no concelho de Santa Maria da Feira, está a 45 minutos de distância de carro do Porto. Muito vezes, é ao carro que recorre para não chegar tarde, porque “o autocarro não tem horários que permitam chegar a horas”. Para quem trabalha e estuda ao mesmo tempo, cumprir horários é importante.

Passa o dia no Porto e às 16h30 regressa a casa para “trocar de roupa” para “estar no trabalho às 18h00″. “Saía do trabalho às 22h00. Ia para casa jantar e estudar e, depois, para a cama à 1h00”.

O universitário trabalha em regime de part-time numa churrasqueira em Cucujães, “durante a semana, ao final da tarde, e no fim de semana inteiro”, perfazendo um total de 32 horas. “Às vezes, é complicado conciliar trabalhos de grupo, porque as pessoas tentam encontrar-se muito ao fim da tarde”, explicou ao JPN.

Igor Fernandes, estudante do 3.º ano da licenciatura em Ciências da Comunicação na FLUP, trabalha como consultor ótico. O universitário veio diretamente do Brasil para concretizar os seus sonhos universitários no Porto e prepara-se agora para o estágio curricular. Ser trabalhador-estudante é, para Igor, “saber ser adulto e jovem ao mesmo tempo, ter a responsabilidade e a leveza da faculdade. Ser trabalhador-estudante é um desafio, uma coragem e esforço muito grande”.

O estudante tem aulas entre as 10h00 e as 18h00. Depois disso, “começo a trabalhar das 18h00 até às 23h00”, sendo que “só regresso à meia-noite. Foram muito agitados estes três anos”, contou ao JPN.

Igor Fernandes estuda Ciências da Comunicação e trabalha na Opticalia desde o 1.º ano da licenciatura Foto: D.R.

Cristiana Santos, aluna de Línguas Aplicadas, começou a dar aulas de inglês, enquanto estudava e estagiava. Na época de estágio, Cristiana acordava às 7h00, ia para o estágio na Câmara Municipal de Gaia, “saía a correr para almoçar no caminho ou em casa, demorava uma hora a chegar à FLUP”. Já na hora de ponta, “vinha para casa, porque tinha o trabalho das 17h30 até às 19h00”.

A Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) tem uma das percentagem de trabalhadores-estudantes mais baixas da U.Porto (6%). No Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar (ICBAS), a percentagem é ligeiramente maior (10%). Isto pode ser explicado pelo elevado número de aulas práticas que existem e que dificulta a conciliação da vida académica com a profissional. No entanto, há quem consiga.

Sónia Melo, licenciada em Bioquímica, fez um doutoramento e um pós-doutoramento na “Harvard Medical School” e no “MD Anderson Cancer Center” nos EUA. Depois de regressar a Portugal, decidiu que queria tirar um curso de Medicina. Desde o início que acumula o curso com o trabalho de investigadora no Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S).

“Levanto-me muito cedo para chegar ao hospital o mais cedo possível, pelas 8h00. O i3S é a dez minutos do hospital, por isso, rapidamente estou no trabalho a pé. Por vezes, entre atividades na Faculdade, se tiver um par de horas livres, venho trabalhar e volto para o hospital. Uma vez no trabalho, fico até completar pelo menos seis horas de trabalho nesse dia. Saio, vou para casa, faço o jantar, brinco com o meu filho de oito anos e, quando ele vai dormir, vou estudar ou trabalhar até por volta da meia-noite e meia/uma e meia da manhã”, contou ao JPN.

Dificuldades financeiras são a principal razão

Filipe Monteiro trabalha desde os 21 anos. Quando começou a estudar aos 28 anos, a necessidade de continuar a trabalhar persistiu, devido ao desejo de comprar uma casa e um carro. Já Igor Fernandes, que veio do Brasil para estudar em Portugal, contou ao JPN que precisava de “arranjar um trabalho para sustentar os gastos e realizar sonhos”. “Sou trabalhador-estudante para ter uma vida mais cómoda. A correria não é nada cómoda, mas, no final do mês, compensa”, garantiu.

Cristiana Santos começou a trabalhar, ainda durante o curso, porque “sentia a necessidade” de ter o seu “próprio dinheiro, principalmente, porque via os pais muito apertados com o dinheiro“.

Sónia Melo é trabalhadora-estudante desde que começou o curso e, para ela, foi “uma escolha, porque queria fazer um curso, mas, ao mesmo tempo, não podia deixar o trabalho.”

Ser trabalhador-estudante pode afetar a saúde mental

Os estudantes ouvidos pelo JPN falaram sobre as dificuldades que sentiram ao nível da saúde mental. Igor Fernandes descobriu quais eram os seus direitos, através de um profissional de saúde, no 3.º ano de faculdade, depois de um burnout, seguido de neurastenia. O trabalhador-estudante disse que já não aguentava “ter a carga horária pesada e muito trabalho, tanto na faculdade como no meio corporativo” e que foi forçado, devido ao seu estado de saúde, a abrandar. Agora, prepara-se para começar o estágio curricular.

“Foi terrível”, é assim que Cristiana Santos descreve o período, durante o qual estudou, estagiou e trabalhou ao mesmo tempo. “Tinha aulas enquanto tinha estágio de 250 horas. Não tinha tempo para mim”, explicou ao JPN.

Cristiana Santos dá aulas de inglês enquanto estuda na FLUP. Foto: D.R.

A saúde mental da jovem começou a ficar afetada pela falta “de tempo para mim, para ir jantar com amigas. Não se trata de me divertir, trata-se de saúde mental”. A jovem conta que chegou a recorrer a antidepressivos, porque “andava sempre cansada e não comia bem”.

Desde o primeiro ano da licenciatura que a estudante do ICBAS, Carlota Pereira, trabalha em regime de part-time. No entanto, refere que o primeiro foi o mais desafiante: “Foi o ano em que trabalhei mais. Trabalhava cinco dias por semana e teve impacto na minha saúde mental”, explicou.

Já Sónia Melo revela que, apesar de gostar do que faz, “é extremamente desgastante e muito cansativo”.

Falta comunicação

O jovem Igor Fernandes refere ainda que “os direitos do trabalhador-estudante não são comunicados“. “A empresa não quer dizer quais são os teus direitos e a faculdade muito menos”, afirmou.

Cristiana Santos lamentou a falta de zelo por parte da faculdade em relação aos direitos mínimos dos trabalhadores-estudantes. “Não me dão uma hora de almoço ou fazem um horário decente para quem está a trabalhar. As melhores pessoas foram as que trabalharam comigo no estágio que se regiam pelos direitos do trabalhador”, contou.

Para a estudante, há “muita falta de comunicação e empatia com os estudantes”. “Os professores nunca quiserem saber. Para eles, era como se não trabalhasse, nunca levavam a sério”, acrescentou. Depois da descrença dos professores, Cristiana Santos garante que perdeu muito dinheiro porque, por vezes, “marcavam aulas de reposição à última hora em que a presença era obrigatória“.

Sónia Melo, da FMUP, garante que a maior parte dos professores são compreensivos, embora reconheça que existem aqueles que “sabem que és trabalhador-estudante e não querem saber“.

De 2021 para 2022 cresceu em 500 alunos, o número de estudantes com estatuto TE

De acordo com o código do trabalho, “considera-se trabalhador-estudante o trabalhador que frequenta qualquer nível de educação escolar, bem como curso de pós-graduação, mestrado ou doutoramento em instituição de ensino, ou ainda curso de formação profissional ou programa de ocupação temporária de jovens com duração igual ou superior a seis meses”.

Em 2022, na Universidade do Porto, 1.695 dos 21.300 estudantes tinham estatuto de trabalhador-estudante, ou seja, 8% dos alunos da instituição. Este número representa um aumento em 521 trabalhadores-estudantes em relação a 2021.

A faculdade com o maior número absoluto de trabalhadores-estudantes (304) era, em 2022, a Faculdade de Letras. No entanto, a nível percentual – ou seja, tendo em conta o número total de alunos nas respetivas faculdades -, a Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação (FCNAUP) aparecia em primeiro lugar, já que 17% dos estudantes tinham estatuto de trabalhar-estudante. O número de trabalhadores-estudantes na FCNAUP tem vindo a aumentar desde 2020.

Em entrevista ao JPN, Pedro Moreira, presidente do Conselho Pedagógico da FCNAUP, destacou a importância de existirem medidas flexíveis para satisfazer as exigências dos estudantes que trabalham e que se evidenciam como “um público altamente competente, interessado e comprometido com o curso”. A proximidade entre os professores e os estudantes na FCNAUP é, segundo o catedrático, uma vantagem da instituição, pois “os professores conhecem, muitas vezes, os nomes dos estudantes, o que reflete a nossa proximidade e preocupação com o processo de ensino-aprendizagem“.

O professor universitário disse ainda que a FCNAUP vai continuar a trabalhar para proporcionar uma formação mais eficaz e inovadora, reconhecendo as particularidades e desafios desses estudantes, para colmatar as necessidades dos alunos com este estatuto.

Segue-se a Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação (FPCEUP), com 15%, e a Faculdade de Medicina Dentária (FMDUP) e Letras, ambas com 11%. No que diz respeito aos cursos, aqueles que contam com o maior número de alunos com este estatuto são Engenharia e Biotecnologia Florestal com 30% e Engenharia Agronómica com 23%, ambos na FCUP.

Já a faculdade com menos percentagem de trabalhadores-estudantes é a Faculdade de Economia, com apenas 5%, seguida das faculdades de Engenharia, Arquitetura e Medicina, com 6%.

Em dez anos, a percentagem de trabalhadores-estudantes aumentou em três pontos percentuais, de 5% para 8%. Os dados de 2023 ainda não foram divulgados pela Reitoria da Universidade do Porto.

Valores podem estar relacionadados com “a proveniência sociocultural ou socioeconómica” dos estudantes

Como já foi anteriormente referido, a FLUP tinha, em 2022, o maior número absoluto de trabalhadores-estudantes.

Paula Pinto Costa, diretora da FLUP. Foto: Lara Castro/JPN

Paula Pinto Costa, diretora da FLUP há um ano, já tinha conhecimento dos números elevados de bolseiros e estudantes com estatuto de trabalhador-estudante da comunidade académica. O motivo pelo qual isso acontece, está, segundo Paula Pinto Costa, diretamente relacionado com “a proveniência sociocultural ou socioeconómica dos nossos estudantes“.

“Vêm de famílias de um estrato socioeconómico menos favorecido e, portanto, ficam mais expostos à necessidade de bolsa, dos serviços sociais, ou à necessidade de eles próprios trabalharem”, acrescentou.

A diretora de Letras admite que os cursos que têm componentes mais práticas “não são tão propícios à frequência por parte dos trabalhadores-estudantes”. Já na FLUP, como os cursos “não têm tanto essa dimensão tão prática”, os estudantes tendem a procurar “conciliar essa necessidade e vontade”.

Ao JPN, o presidente da Federação Académica do Porto (FAP), Francisco Porto Fernandes falou sobre os desafios que os jovens que estudam e trabalham enfrentam e os motivos pelos quais o têm de fazer: “Acima de tudo é porque, com quartos a 400€ por mês, muitos de nós têm de trabalhar para ajudar as famílias“, afirmou.

Francisco Fernandes é presidente da FAP desde 2023. Foto: D.R.

A falta de representatividade e apoio para os trabalhadores-estudantes dentro das instituições de ensino é uma preocupação da FAP. “Muitas vezes, [esses alunos] também são os mais ausentes do dia-a-dia da faculdade. São os que têm menos facilidade em chegar ao Conselho Pedagógico, à direção da faculdade, à presidência e até à própria Associação de Estudantes”, explicou.

O estudante da FEP referiu ainda que “o estatuto de trabalhador-estudante da faculdade adianta pouco ou nada”. “Acho que a academia ainda não está adaptada a esta necessidade da educação ao longo da vida e de se adaptar aos trabalhadores-estudantes“, afirmou. Francisco Porto Fernandes disse ainda que “todos os trabalhadores-estudantes que tenham problemas” devem fazê-lo chegar à Associação de Estudantes ou à FAP.

Editado por Filipa Silva e Inês Pinto Pereira