A décima edição do festival de cinema do real começou naa sexta-feira. Com um cartaz focado nos “contadores de histórias”, o Porto/Post/Doc teve a sua sessão de abertura no Cinema Batalha, com a projeção de um filme sobre a história de um dos pontos mais emblemáticos da cidade.

O Porto/Post/Doc abriu esta sexta-feira (17) com lotação esgotada, com um público transgeracional e que se perdia pelo hall de entrada e escadarias daquele que é um dos lugares mais queridos da cidade, o Centro de Cinema Batalha

O programa deste ano arrancou com a projeção do documentário “Vai no Batalha!”, realizado por Pedro Lino. Em pouco mais de quarenta minutos, a história do cinema mais emblemático da cidade foi revisitada. A criação do Batalha, os seus tempos áureos, a recuperação dos icónicos painéis de Júlio Pomar e o encerramento para obras foram relembrados, com recurso a entrevistas a membros das famílias fundadoras e a gravações de arquivos. Aliás, muitas das gravações e imagens antigas fundiam-se com os cenários atuais, levando o espectador numa viagem pelo tempo, sem causar estranheza.

Antes da projeção, numa nota de abertura, Dario Oliveira, diretor do Porto/Post/Doc – e co-fundador do festival Curtas Vila do Conde -, realçou que alguns dos objetivos iniciais do festival foram cumpridos: “Dez anos depois, o panorama cinematográfico do Porto mudou e continua a mudar. A oferta da cidade está cada vez mais diversificada e a atrair novos públicos. (…) Esta missão a que nos propusemos, por acreditarmos firmemente no poder do cinema como cultura popular e transformadora, tem orientado as nossas opções de programação que a cada edição se tornam cada vez mais direcionadas para os jovens”, afirmou.

Sérgio Gomes, diretor executivo do festival, agradeceu, por sua vez, a todos os que permitiram que o Porto/Post/Doc comemorasse uma década, “um marco, na cidade e a nível internacional” que cresce de edição para edição, referiu. 

Pedro Lino e Pandora da Cunha Telles, realizador e produtora do filme “Vai no Batalha!” também subiram ao palco para dizerem que a obra que abriu o PPD deste ano é fruto de “um sonho coletivo”. A dupla chamou ao palco vários dos envolvidos no projeto, que receberam um dos aplausos mais longos da noite.

Um cinema com uma “mística diferente”

Após a exibição do filme, os olhares viraram-se para os murais que decoram o cinema. Foto: João Jesus Foto: João Jesus/JPN

Assim que o filme terminou, o público fez-se ouvir na sala do Centro de Cinema Batalha e dirigiu-se para as memoráveis escadarias do edifício. Em frente aos murais, as pessoas juntaram-se para admirar os frescos recuperados de Júlio Pomar que a PIDE mandou destruir, na época do Estado Novo. O processo de restauro dos frescos – tantas vezes dada como uma impossibilidade – foi dos momentos de maior importância do documentário e os espectadores não ficaram indiferentes.

Cristina Pimentão e Ana Gomes, de 51 e 49 anos, visitaram o festival pela primeira vez, a convite de um amigo. Ao JPN, Ana Gomes conta que só pontualmente visita o Cinema Batalha que descreve como “um espaço polivalente”. “É um cinema que vejo como um teatro, é engraçado. Estou aqui dentro e não me sinto no cinema. É um cinema que quebra a ideia tradicional que temos de um cinema, há aqui uma mística diferente. Gostei mesmo muito. E agora estávamos a apreciar os murais e a imaginar a emoção da descoberta e da recuperação dos murais, que já se achavam perdidos. Foi um filme muito bonito”, comentou.

Pedro Lino: “Foi uma honra e uma responsabilidade acrescida ser o filme de abertura do festival”

Pedro Lino realizou o “Vai no Batalha!”, filme que abriu a décima edição do Porto Post Doc. Foto: Maria Rego. Foto: Maria Rego/JPN

Para Pedro Lino, “foi uma honra e uma responsabilidade acrescida” ver o seu “Vai no Batalha!” ser o filme de abertura do festival. À saída, contou ao JPN que a obra esteve em produção cerca de quatro anos e que contou com um “trabalho de pesquisa enorme”, que aprofundou os conhecimentos de toda a equipa “sobre o cinema Batalha, a cidade e até do país”. O cineasta mostrou-se muito satisfeito com a reação do público: “estava lá em cima a ver o filme e estava a ouvir os comentários das pessoas: ‘Olha, aqui, era não sei o quê! Lembras-te daquilo?”. Isso é muito giro de ouvir e é uma coisa que acontece aqui e não acontece noutros sítios”, referiu.

Quanto ao programa do Porto/Post/Doc 2023, Pedro Lino elogiou o facto de o o festival levar o cinema documental para os grandes ecrãs da cidade. “Existe um bocadinho o preconceito de achar que os documentários são uma seca, que não interessam. O Porto/Post/Doc é uma ótima iniciativa, exatamente para levar pessoas ao filme documentário, porque o filme documentário é tudo. Os excertos que usei ao longo do filme são todos de filmes de ficção, mas na verdade, com a distância do tempo, são também documentários do tempo em que foram feito. Está tudo relacionado, no fundo: ficção e documentário”, concluiu o realizador.

Dario Oliveira: “O cinema feito com alma, chega à alma das pessoas”

Dario Oliveira organizou um programa focado nos contadores de histórias. Foto: Maria Rego. Foto: Maria Rego

Já na zona de cafetaria do Cinema Batalha, onde acontecerão outros momentos informais durante a semana de programação do festival, Dario Oliveira reforçou que ver o PPD sediado no Batalha é o culminar de um sonho. O programador mencionou, no discurso de abertura, que o Porto/Post/Doc tinha intenções de começar no Batalha, ainda na sua primeira edição, em 2014, o que acabou por não acontecer.

“Há cerca de 11 anos, o arquiteto Alexandre Alves Costa, que está aqui hoje e que é um dos responsáveis desta recuperação [do cinema Batalha], disse-me: ‘Vocês deviam esperar para começar o festival, porque o Batalha, mais cedo ou mais tarde, vai entrar em obras. Julgo que em dois anos conseguem começar o festival no Batalha.’ E eu disse: ‘Não, não consigo esperar, não vou esperar’. No fundo, eu não acreditava que umas obras desta envergadura fossem tardar só dois anos. Claro que tardaram mais. E hoje pedi-lhe desculpas publicamente, por não ter acedido ao pedido dele. Com todo o amor e com todo o respeito que tenho pelo trabalho dele, é um bocado isso que sentimos. Chegamos a um lugar que já estava predestinado para este festival, mesmo antes do festival existir. É como o recuperar de um sonho”, explicou Dario Oliveira.

O último filme transmitido no Batalha foi o Titanic, em 1998. Poucos são os que se lembram de ir ao Batalha, no entanto, aqueles que o visitaram antes das obras ainda não deixaram as memórias afundar. Dario Oliveira notou a presença de um público transgeracional na primeira noite. Ver o cinema cheio, numa altura em que é difícil atrair as pessoas para as salas com programas mais alternativos, acalmou o diretor: “Um festival de cinema, hoje, é muito diferente do que seria um festival há 20 anos, por exemplo. Hoje, há outros desafios. É quase um puzzle que não se encontra a última peça. E a última peça é perceber de que forma é que o público pode continuar a querer vir ao cinema, numa noite de chuva ou numa noite de calor. Porque é que as pessoas hão de fechar-se numa sala para ver um filme?”.

A mudança de público e a facilidade de acesso a conteúdos, até de forma gratuita, acabaram por tornar as idas ao cinema num “ato de resistência”. As séries estão cada vez mais próximas do estilo do cinema e não obrigam a sair de casa. Para Dario Oliveira, os mais novos precisam de ser reeducados e ter uma prática cultural que os leve de volta ao cinema. Afirma também que é necessário um esforço para levar o cinema até mais pessoas: “Só quando houver um festival em todas as capitais de distrito é que a missão dos festivais está cumprida e isso ainda não existe. O cinema tem de se aproximar das populações. Esta ligação é importante para mostrar que não há público estúpido, nem ignorante. O cinema sempre teve essa capacidade de chegar à alma das pessoas. O cinema feito com alma chega à alma das pessoas”, comentou.

Para a décima edição, Dario Oliveira preparou um programa “à volta dos contadores de histórias”. “Contar histórias é uma das formas de arte popular mais antigas, com milhões de anos e que provavelmente já existe desde que povoamos a Terra”, notou ao JPN. Um dos focos são as histórias ligadas ao hip-hop, que celebra meio século de existência. Através de um programa variado, com workshops, projeções de filme e tertúlias, o Porto/Post/Doc quer dar a conhecer as histórias contadas e cantadas noutras línguas, através de um estilo que nasceu no Bronx e que acabou por ficar “presente em todo o lado e em todos os idiomas, como forma de protesto”.

O diretor do festival afirma que a organização procura sempre oferecer “o cinema que faz pensar”. “Aquele que nos faz, no dia seguinte, acordar e estar a pensar no filme que vimos na noite anterior. São esses filmes que nos movem, que nos marcam. E é isso que nós procuramos fazer”, afirmou.

A par disso, o Porto/Post/Doc tenta também dar o ecrã a filmes menos conhecidos ou que não são tão acessíveis. Algumas películas, como “All The Beauty and The Bloodshed”, que foi parte da programação do último ano, acabam por atingir fama internacionalmente, chegando a várias premiações. Dario Oliveira descreve o festival como um “local de descoberta”.

O programa continua a estar espalhado por diferentes espaços culturais da cidade. Para além dos filmes, o grande foco é o contacto com o público, com quem já têm uma relação de confiança: “O público ganhou algum apego, algum amor, a este festival. Há uma relação de confiança que os participantes, o público em geral, estabelece com quem promove o festival, com quem o programa. E esta relação de confiança deixa-nos com uma grande responsabilidade. Edição após edição, notamos essa relação. Existe um público fiel que continua a vir e que é cada vez mais renovado”.

Quanto a próximas edições, Dario Oliveira adiantou ao JPNo tema do PPD 2024: “Para o ano, o tema do festival é sobre a Europa contemporânea. O programa chama-se ‘A Europa não existe. Eu estive lá’. É uma programação, um conceito, que é de facto falar de todos os problemas que hoje nos preocupam. Desde a ameaça das doenças, à ameaça da guerra ou das guerras, dos conflitos, dos totalitarismos, da emigração, da gentrificação… Todas as coisas que nos preocupam. E falar disso através dos filmes”, contou.

O Porto/Post/Doc acontece até ao dia 25 de novembro. Durante a programação do festival, será possível assistir a filmes como “A Tiger In Paradise”, “Samuel e a Luz” e “Time Takes a Cigarette”.

Editado por Filipa Silva