O teatro radiofónico “Mil e Uma Noites” encerrou a inauguração do espaço Cassandra, no Bonfim. O JPN acompanhou a sessão - a primeira realizada no Porto -, e falou com Cátia Terrinca e João Nunes sobre o projeto que quer mapear 1001 mulheres e garantir-lhes "sobrevivência" através da voz.

Sessão ao vivo do teatro radiofónico Mil e Uma Noites na inauguração do espaço Cassandra.

Aceita, meu amor, este lenço.

Esta pequena lembrança saiu-me do coração.

Este lenço era como uma carta, mas mais bela.

Pelas vozes de Cátia Terrinca e Sara Duarte Brandão, os pensamentos e vivências de mulheres de séculos passados, autoras dos populares lenços dos namorados, foram trazidas para o presente. A inauguração do espaço Cassandra, no Bonfim, foi ocasião para gravar mais uma sessão do Mil e Uma Noites, um projeto de teatro radiofónico criado pela associação cultural Umcoletivo, no âmbito de um projeto mais amplo que investiga a literatura “feminina e em língua portuguesa do século XX”, “a partir do espólio de literatura erudita, literatura quotidiana e património oral.”

A ideia é mapear 1001 mulheres. Os objetivos são “divulgar as obras destas autoras” que, na grande maioria já não se encontram fisicamente presentes, e criar “redes de mulheres” de modo a facilitar a leitura e a partilha dos seus textos.  

Desta feita, foi a investigação de Sara Duarte Brandão sobre os lenços dos namorados a servir de base à sessão. Além de transcrições dos lenços, ganharam eco nos microfones do projeto Mil e uma Noites alguns segmentos da entrevista que Sara Duarte Brandão fez à antiga bordadeira Maria da Conceição Pinheiro, no âmbito da sua tese, e ainda excertos das obras de Virgínia Vitorino, escritora alcobacense, e de Graça Pina de Morais, escritora portuense.

A sessão de teatro radiofónico com Cátia Terrinca e Sara Duarte Brandão durou trinta minutos. Foto: Raquel Sousa/JPN

O tema do amor uniu, assim, obras da chamada “literatura do analfabetismo”, isto é, os textos bordados por mulheres analfabetas e pouco letradas de séculos passados, aos textos de várias figuras femininas do século XX. A ideia “é um bocadinho bater fronteiras entre aquilo que é o erudito, o chamado erudito, e o tradicional. E colocar estas mesmas mulheres, logicamente, já na sua impossibilidade física de se encontrarem, a encontrar-se através das nossas vozes”, explicou Cátia Terrinca ao JPN.   

A atriz e dramaturga enfatiza que “estas mulheres que bordam, não escreveram no sentido mais intelectual da ideia de escrever, escreveram no sentido sensorial de bordar um lenço. Escreveram também com as cores, com o tipo de pontos diferentes, escreveram com a linha mais grossa e a linha mais fina. E esta é uma outra forma de escrever”.

A sessão de teatro radiofónico foi dividida em duas partes: primeiramente apresentou-se textos retirados dos bordados; a segunda parte contou com textos das duas autoras. Foto: Raquel Sousa/JPN

Repensar a História da literatura feminina do século XX 

Em 2018, a associação portalegrense Umcoletivo estudou o livro “Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: A Outra Face do Homem” e considerou-o “omisso em relação à voz da mulher”.  

Para Cátia Terrinca, além “de termos poucas ruas com nomes de mulheres e termos poucas autoras estudadas na escola”, o Umcoletivo percebeu que a literatura feminina do século XX era pouco estudada, existindo poucos artigos científicos sobre estas mulheres. “Isso levou-nos a pensar que há várias dimensões do esquecimento da obra feminina no século XX e em séculos anteriores, e até no século presente”, declarou.

Ao JPN, João Nunes, responsável pela parte técnica e administrativa do projeto Ventriloquia – no qual o Mil e Uma Noites se insere -, acrescentou que era necessário “contrariar” o facto de haver poucas mulheres a figurar na lista dos maiores autores dos séculos passados. “Existem autoras inacreditáveis que vale a pena estudar. E que, se calhar, não estudamos, porque vivemos num mundo que privilegia os homens perante as mulheres”, sublinha João Nunes.

Cátia Terrinca acrescentou ao JPN que “este é um projeto sobre o feminino e é um projeto feminista”. O que não invalida que o projeto trabalhe obras de “mulheres machistas”: “as mulheres machistas também fizeram parte da História do século XX e da História do mundo, e nós não deixamos de contar essa parte da História, a forma como nós a temos que contar e o nosso gesto é que é feminista”, considera.

O projeto Mil e Uma Noites relaciona-se “sobretudo com a figura de Sherazade” do antigo conto persa. Segundo a lenda, esta personagem sobreviveu e ganhou o amor do rei por narrar histórias durante mil e uma noites. Para Cátia Terrinca, a história de Sherazade relaciona-se também com o objetivo e a história deste teatro radiofónico que procura a “sobrevivência” destas mulheres ao partilhar as suas obras. “Neste caso, não será a sobrevivência no sentido mais imediato da palavra, como no caso da Sherazade, mas uma visibilidade que também é uma forma de sobreviver.”

O primeiro passo foi mapear as mulheres que “escreveram e publicaram no século XX, em edições de baixa tiragem”. Depois, procuraram também por mulheres que escreveram, mas que não publicaram os seus textos.  

Cátia Terrinca explicou que no grupo das mulheres que escreviam e que não publicaram, encontraram textos sobre a vida quotidiana: cartas de madrinhas de guerra, postais, aerogramas, romances, poesia, inclusive, poesia popular e outros tipos de material, como a literatura têxtil, o cantar tradicional, as lengalengas, as orações, as benzeduras. “Fomos percebendo que, através destas recolhas literárias, no fundo, podíamos pensar também uma parte da História do século XX. E uma parte da História que não tem sido muito contada ou não tem sido muito estudada, pelo menos, não no sentido daquele que é o ‘H’ grande da História.” 

Ao JPN, Cátia Terrinca apontou que nem sempre é fácil encontrar estes textos: “muito embora haja uma obrigatoriedade das obras em depósito legal, nem todas de facto são deixadas. Portanto, os alfarrabistas têm sido grandes amigos“, confessa.  

O projeto Ventriloquia, os espetáculos e o teatro radiofónico 

O projeto Ventriloquia é o chapéu mais amplo que abriga o teatro radiofónico Mil e Uma Noites e ainda a criação de alguns espetáculos.

Até ao momento, foram produzidas peças com base nas obras de Maria da Graça Varella Cid – “Invencível Armada”; Alice Sampaio – “Penelope” e, estreado mais recentemente, “Decadência”, este último baseado nas obras de Judith Teixeira e de Luísa Demétrio Raposo. Em breve, vão investigar a obra de Maria João Carvalho, a primeira mulher repórter de guerra em Portugal.

Paralelamente, em parceria com a livraria independente Tigre de Papel, o trabalho do projeto expandiu para a edição de “alguns destes inéditos numa coleção”. Até à data, já editaram três livros: “Poesia Incompleta”, de Maria da Graça Varella Cid; “Penelope – A Infanta Volumes I e II”, de Alice Sampaio; e “O Fogo do Fogo no Fogo”, de Luísa Demétrio Raposo. Ao JPN, explicaram que já tinham mais quatro livros pensados para publicar no próximo ano.  

A voz, o “expoente máximo” deste projeto

Em Portugal, o teatro radiofónico tem perdido palco. Ao JPN, Cátia Terrinca explicou a relevância e a liberdade que a rádio dá: “a voz interpela de maneira muito direta”. A possibilidade de “através da voz construir um património de imagens que esteja dentro da liberdade de cada um” sempre foi “fundamental” para a equipa. 

Mil e Uma Noites estreou no Teatro São Luiz em dezembro do ano passado. Está a ser gravado desde essa data e está prevista a conclusão das gravações em abril de 2024. Até ao momento, têm cerca de 200 textos gravados e cerca de 900 mulheres mapeadas. Cada sessão conta com a participação de Cátia Terrinca e de uma intérprete convidada. Mariana Bragada, Ana Lua Caiano e Cheila Lima já participaram no projeto.

A partir de janeiro do próximo ano, os episódios gravados ao vivo vão estar em formato podcast no jornal “Público”. Uma versão mais trabalhada, isto é, com episódios individuais – dedicados a cada mulher – vai ser inserida na programação da Antena 2. Nesta estação de rádio, está previsto que a primeira temporada estreie também em janeiro e termine a 25 de Abril, data em que em 2024 se comemoram os 50 anos da Revolução.  

“Tenho aprendido muito com estas mulheres”

Ao JPN, João Nunes, esclareceu que, no início, as sessões eram “puramente literárias”. Todavia, ao longo do processo criativo, além da vertente académica, foram introduzindo entrevistas realizadas pela equipa e, mais tarde, uma componente participativa, “comunitária”, envolvendo mulheres comuns e os seus escritos, muitas vezes, guardados na gaveta.

“Tenho aprendido muito com estas mulheres”, confessa Cátia terrinca. “Uma das coisas que percebemos, e que foi altamente revolucionária para mim, é que muitas das mulheres que escreveram, sobretudo nos anos 50/60, é que não leram praticamente obras femininas, ou seja, a educação literária delas foi uma educação completamente masculina e sobretudo internacional”, sublinha.

A dramaturga destacou ao JPN mulheres como Alice Sampaio e Maria da Graça Varella Cid, que passaram a fazer parte da sua “constelação de feminismos”. A primeira é uma poetisa guardense “claramente feminista” que “responde” ao “‘Ulisses’ de James Joyce” com a sua “Penelope”. “E, no fundo, afirma que as mulheres não estavam só a fazer e a desfazer um tapete à espera do homem que amam, muito embora ela pudesse amar legitimamente, ela também estava a cuidar do Telémaco, da casa, do quintal, das vizinhas, das filhas das vizinhas sozinha, a braços com um país que vivia entre a Guerra Civil Espanhola e a guerra colonial portuguesa. Há esta afirmação muito claramente feminista”, observa Cátia Terrinca, que destaca ainda Cesina Bermudes, cuja obra o grupo gostaria de “intercetar”, “uma mulher que fez muitos partos e muitos abortos durante o período da ditadura, ou seja, uma mulher que claramente lutou pelos direitos das mulheres.”

Editado por Filipa Silva

Artigo realizado no âmbito da cadeira de TEJ Online – 2.º ano