A estrutura artística de Sara Barros Leitão abriu portas a 21 de outubro, no Bonfim. A inauguração do espaço contou com a abertura de uma exposição e uma sessão de teatro radiofónico. A artista conversou com o JPN sobre o projeto e o novo espaço.

Casa cheia no dia da inauguração, em outubro. Foto: Raquel Sousa/JPN

O número 118 da Avenida de Camilo, no Bonfim, é agora a nova casa do projeto artístico Cassandra. No início deste ano, uma inundação obrigou a equipa a retirar-se do antigo espaço, que servia apenas de armazém. Numa procura urgente por um novo local, acabaram por encontrar um lar no bairro de Bonfim. “Quando abrimos esta garagem não conseguimos acreditar em tudo aquilo que ela podia ser”, afirmou Sara Barros Leitão no discurso de inauguração. “Não sabemos muito bem o que vamos fazer com ele [o espaço], mas sentimos que o tínhamos de inaugurar, mesmo com paredes por pintar”, brincou ainda a atriz. 

Em 2020, após ganhar o prémio Revelação Ageas Teatro Nacional D. Maria II, Sara Barros Leitão criou a estrutura artística para poder produzir os seus próprios espetáculos. Cassandra apresenta ao público vários projetos transversais, como é o caso do Heróides – Clube do Livro Feminista e do espetáculo “Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa“.

 Em entrevista ao JPN, Sara Barros Leitão citou Virginia Woolf: “Uma mulher para escrever, precisa de ter uma secretária, papel e caneta. E um quarto que seja seu para poder escrever.” A encenadora salientou a importância de os artistas terem uma casa própria para poder fazer teatro e guardar as suas coisas, pois a equipa até agora tem andado “muito tempo em casas emprestadas.” 

Na abertura do espaço físico de Cassandra foi também inaugurada a exposição “Lenços dos Namorados: séculos de poesia bordada no feminino” de Sara Duarte Brandão. A ex-estudante da Faculdade de Letras da Universidade do Porto expôs 82 reproduções a lápis de cor dos lenços dos namorados. Esta exposição foi o resultado de uma dissertação que visa enaltecer a literatura têxtil feminina dos séculos passados. 

O espaço físico de Cassandra foi adaptado para receber um teatro radiofónico. Foto: Raquel Sousa

A cerimónia foi encerrada com uma sessão de teatro radiofónico ao vivo no âmbito do projeto Mil e Uma Noites. Este projeto criado pela associação cultural Umcoletivo, insere-se no projeto Ventriloquia. A sessão realizada no espaço Cassandra foi pensada a partir de alguns textos bordados nos lenços analisados por Sara Duarte Brandão. Cátia Terrinca, integrante do Umcoletivo, e Sara Duarte Brandão foram as vozes por detrás do microfone. 

Através de um espaço físico aberto ao público, Cassandra consegue estar mais próxima da comunidade. Sem muitas certezas, mas com muitas ideias, o futuro do espaço poderá passar pela receção de artistas, exposições, festas, conversas e pequenas performances. Está ainda na lista de desejos de Sara Barros Leitão criar uma livraria nas paredes da garagem de Cassandra. Para a atriz e dramaturga, este é também um espaço onde se deve falar sobre a “felicidade, que também é uma coisa muito importante para as pessoas.” Estes vários projetos que não passam pela criação de espetáculos, “ativam públicos muito diferentes que depois acabam por ir ver os espetáculos”. 

Ao JPN, Sara Barros Leitão confessou observar a abertura de Cassandra como um “ato de resistência” pelo facto de se situar na mesma zona do centro comercial STOP, que enfrenta a possibilidade de encerramento por questões de segurança do edifício. Cassandra abriu “num lugar em que a gentrificação fecha tudo o que mexe. E, portanto, vamos ver quanto tempo é que aguentamos cá. Mas cá estamos para servir os nossos vizinhos, que ainda são portugueses, e para receber as pessoas que vivem ainda no Porto para poderem ter acesso a atividades culturais na sua própria cidade.” 

Em 2020, o jornal britânico “The Guardian” considerou o Bonfim um dos dez bairros mais cool da Europa. No mesmo ano, a revista “Time Out elegeu-o como um dos bairros mais cool do mundo. Porém, a escolha do espaço de Cassandra no Bonfim não foi propositada. Foi fruto de “um senhorio generoso o suficiente para compreender a dimensão de um projeto cultural como o nosso.”  

O diálogo de Cassandra com a Literatura Clássica  

 Ex-estudante de Estudos Clássicos, Sara Barros Leitão afirma encontrar grande parte das respostas do mundo na literatura clássica: “É como se fosse a minha Bíblia.” O próprio nome – Cassandra – advém do seu mito clássico favorito.

Cassandra era o nome da mulher que Apolo, deus da Juventude e da Luz na mitologia grega, amaldiçoou por ter recusado a sua sedução. Ele tornou-a capaz de prever o futuro, sem que ninguém acreditasse nela. Para Sara, este mito levanta a questão do consentimento. Este mito é sobre “a mulher ser vista como histérica”. Cassandra, a estrutura artística, é uma forma de encorajamento à criação, “mesmo sabendo da dificuldade que terá em ser ouvida. Uma característica não muito diferente da de todas as mulheres.” 

Nesta “brincadeira de nomes”, resulta também o título do clube do livro: Heróides. O nome do projeto é retirado da mitologia latina. “Heróides”, um livro do poeta Ovídio, é um conjunto de várias cartas assinadas pelas heroínas da mitologia grega e romana, endereçadas aos seus amantes. Ao próprio aspirador do espaço, Sara deu o nome de “Zeus”, o rei dos deuses na mitologia grega.    

À direita, Sara Barros Leitão, atriz, encenadora e criadora do projeto Cassandra. Foto: Raquel Sousa/JPN

“Interessa-me um feminismo intersecional”

O primeiro espetáculo de Cassandra, Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa”, incide sobre motes feministas. Esta peça retrata a “história do trabalho invisível que põe o mundo a mexer”: o trabalho doméstico. De acordo com a sinopse, esta é uma “história, ainda pouco conhecida, pouco contada, pouco valorizada.” Para além disso, o espetáculo baseia-se num texto do livro “Novas Cartas Portuguesas” escrito, em 1972, por aquelas que ficaram conhecidas como as “três Marias” – Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. Esta obra literária, também feminista, denunciou várias injustiças levadas a cabo pelo Estado Novo, sobre a condição da mulher portuguesa.

Também o clube do livro Heróides é feminista. Todas as convidadas até agora foram mulheres. O objetivo é promover o pensamento crítico feminino sobre as obras selecionadas. As autoras até podem não ser feministas, o interessante é, de acordo com Sara Barros Leitão, analisar os livros de um ponto de vista feminista

Quando questionada pelo JPN sobre os valores feministas subjacentes aos projeto Cassandra, Sara Barros Leitão sublinhou que “existem esses valores feministas”, porque é feminista e acha o feminismos “uma coisa importante”, “mas o projeto é um projeto de criação artística transversal a muitas coisas.”

“Aquilo que me interessa no feminismo é um feminismo intersecional que faz com que, por exemplo, os direitos laborais sejam cumpridos”, com que “o tempo privado das pessoas” seja respeitado. “Tudo isso são coisas que o feminismo também promove. Num contexto laboral, também é possível fazer teatro e dirigir uma estrutura em que isso também esteja presente”, afirma.

Editado por Filipa Silva

Artigo realizado no âmbito da cadeira de TEJ Online – 2.º ano