A exposição com que inaugurou o espaço Cassandra, no Bonfim, é da autoria de Sara Duarte Brandão e tem como tema os lenços dos namorados, analisados a partir de um ponto de vista feminino. O JPN falou com a autora sobre a investigação que esteve na base da mostra patente até 30 de dezembro.

Os 82 desenhos a lápis de cor estão disponíveis num catálogo digital. Foto: Raquel Sousa/JPN

“Lenços dos Namorados: séculos de poesia bordada no feminino” é o nome de uma exposição – patente nas paredes do espaço Cassandra até 30 de dezembro – que engloba 82 desenhos a lápis de cor, nos quais Sara Duarte Brandão faz uma representação dos antigos bordados.   

Após uma aprofundada pesquisa, a artista deparou-se com várias páginas em branco na história dos lenços e das mulheres que os bordavam.

Ao JPN, no dia em que a mostra foi inaugurada, a antiga estudante da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) revelou que “a história por trás do que conhecemos mais popularmente como os lenços dos namorados” não fazia, na sua perspetiva, “muito sentido”. Por isso, dedicou ao tema uma investigação académica com o intuito de preencher esses espaços em branco com as vidas das autoras, de modo a colocá-las outra vez como as personagens principais dos lenços, parte da tradição popular portuguesa. 

A análise, que teve início em 2020 e que culminou na dissertação “Bordar o poema, conquistar a identidade – um estudo dos lenços de amor como sinal de afirmação feminina“, acabou por se tornar numa exposição.  

Fã do trabalho desenvolvido pela Cassandra, a estrutura artística de Sara Barros Leitão, a antiga mestranda em Estudos Literários, Culturais e Interartes, entrou em contacto com a equipa do projeto para expor o seu trabalho. A resposta chegou algum tempo mais tarde, com um convite para expor, aproveitando a inauguração do espaço físico, a 21 de outubro.

Foi a participação numa unidade curricular da professora Isabel Morujão, na qual analisou a “literatura feminina desde o século XV ao século XVIII”, que fez Sara Duarte Brandão perceber como a literatura feminina portuguesa do passado era pouco estudada e valorizada. Este facto, aliado ao seu interesse pela cultura têxtil portuguesa, despertou em si o desejo de analisar os lenços dos namorados de um ponto de vista feminino. Sara Duarte Brandão queria responder às perguntas: “Quem é que bordou? Quem é que escreveu?” 

O objetivo era colocar estas mulheres como “sujeito destas obras literárias e têxteis”. Pois, embora existam muitos trabalhos sobre os lenços dos namorados, que a autora também usou como referência, “ainda não tinha visto nenhum com esta perspetiva da mulher.” Com o propósito de ser uma “ferramenta-mensageira”, a artista queria analisar as razões e as condições em que estas mulheres bordavam e perceber ainda “por que é que ficou a tradição” e “o que foi adulterado na tradição”.

 Na investigação, a autora concluiu que o boom turístico e comercial do século XXI” alterou a função original dos lenços: expressar a identidade das mulheres analfabetas ou pouco letradas que os bordavam. Neste sentido, esta exposição apenas dedicada aos lenços de amor, reflete os “lenços de amor não como necessidade comercial e turística, mas sim como lugar de fala, inicialmente usado e inventado pelas mulheres do povo para expressarem os seus sentimentos mais pessoais.”

Os desenhos estão acompanhados de vários gráficos que explicam o conteúdo dos lenços. Foto: Raquel Sousa

No total, Sara Duarte Brandão analisou 134 lenços de amor, mas apenas 82 foram expostos. Aceder aos lenços não foi fácil e, uma vez que teve oportunidade de ver os bordados ao vivo, a solução que encontrou para os partilhar foi desenhar réplicas a lápis de cor.

“Os desenhos são uma resposta. O facto de isto depois ter dado numa exposição foi um acaso ou também parte da minha revolta, porque eu queria muito que as pessoas conhecessem qual é a história [dos lenços]. Não digo a [história] verdadeira, mas digo, se calhar, [uma história] um bocadinho mais fidedigna daquilo que são os lenços dos namorados que circulam em todo o lado”, disse a artista ao JPN.

Entre as várias figuras bordadas estão cavernas, pares de namorados, flores e animais. Ao JPN, Sara Duarte Brandão explicou que antes da implantação da República era bordado no centro do lenço um brasão. Após 1910, os brasões foram substituídos por corações. 

Réplica de um lenço bordado em 1902 por Maria da Conceição Pinheiro emprestado a Sara Duarte Brandão para a exposição. Foto: Raquel Sousa

Entre os desejos manifestados por Sara Duarte Brandão ao JPN destacam-se a vontade de ver os lenços verdadeiros expostos no futuro e de consciencializar a sociedade portuguesa para pensar nestas mulheres como autoras da literatura popular portuguesa, bem como dar a conhecer a sua obra.

Feminismo nos bordados: um ato “bastante revolucionário”

“[O]s lenços […] não tiveram outra função senão dignificar o trabalho das pessoas analfabetas que estão nos campos a olhar pelo gado, que estão nos teares a bater […]. Porque elas mostram tanta sabedoria, elas mostram tanto o querer ser emancipadas, elas mostram tudo isto através do amor. E como o amor domina o mundo…”, diz Maria da Conceição Pinheiro, antiga bordadeira entrevistada por Sara Duarte Brandão no âmbito da sua dissertação. 

Embora o conteúdo dos lenços seja importante para Sara Duarte Brandão, o que a artista mais admira é o “ato” de os bordar, que considera “bastante revolucionário.” “Encontrei lenços do início do século XIX, onde uma mulher borda que não quer casar, que casar é a pior das asneiras. Isto é super revolucionário. Como é revolucionário uma mulher naquela altura, que vivia sozinha em casa, bordar. Mesmo que fosse para outra pessoa, ou seja, bordar o amor. Mas quando nós bordamos para alguém, ou fazemos alguma coisa para alguém, estamos a afirmar a nossa identidade. Estamos a pensar em nós como o eu, o ser que ama”, analisa. 

A autora realça ainda que os lenços foram bordados por “mulheres do povo”, que apesar de todas as dificuldades por que passavam “tiravam um tempo para tentar fazer qualquer coisa com as letras que elas não percebiam, porque elas diziam o que é que queriam bordar, pediam a alguém na aldeia que soubesse escrever para escrever. Também escreviam mal, porque, obviamente, um homem do povo português na altura também não teria muita literatura e elas bordavam com os erros ou bordavam ao contrário.”

“O que mais aprendi com os lenços foi que realmente desconhecia muito das mulheres que lutaram por algo que hoje faz com que possa estar aqui e ser a Sara e escrever quase a tempo inteiro e fazer outras coisas”, conclui a antiga estudante, para quem a “vontade intrínseca de querer escrever, de querer deixar para a História” é um “ato extremamente feminista.”

A exposição “Lenços dos Namorados: séculos de poesia bordada no feminino” fica patente até 30 de dezembro no espaço Cassandra e pode ser vista mediante marcação prévia, através de um formulário disponível no site do espaço.

Editado por Filipa Silva

Artigo realizado no âmbito da cadeira de TEJ Online – 2.º ano