No dia 12 de março, durante uma sessão exclusiva para convidados, André Romão esclareceu as suas visões e convidou os presentes a refletir sobre as suas interpretações e referências que inspiram as obras da exposição. "Calor" vai estar no Museu de Serralves até 2 de junho.

A exposição está espalhada por quatro salas. Foto: Carlota Nery/JPN

Com exposições já apresentadas no MAAT em Lisboa, no Futura em Praga e no Macro em Roma e vencedor do prémio EDP Novos Artistas em 2007, André Romão tem uma nova exposição no Museu de Serralves. Em “Calor”, o artista explora a interceção entre o natural e o artificial, o orgânico e o inorgânico, o humano e o animal. Romão mergulha no sangue, na consciência e na aura, tudo sob um ambiente profundamente inquietante.

Entre esculturas e cartazes relativos a campanhas de doação de sangue, o normativo e as diretrizes são questionadas. Ao longo da exposição, espalhada por quatro salas, os cartazes servem de fio condutor. A exposição segue duas linhas: uma no seguimento das últimas exposições do autor, juntamente com os posters; e a outra mais ligada ao lado mais pessoal e emocional. Esta segunda é reforçada nesta sessão em Serralves pelo cunho pessoal do artista, revelando a sua visão e formas de estar no mundo.

Os cartazes que evocam a doação de sangue e surgem da conceção de “transferência entre corpos, solidariedade e uma certa noção de comunidade“, explicou André Romão. No entanto, o artista refere que toda a campanha de promoção da doação de sangue fê-lo questionar o verdadeiro significado desses cartazes, tornando-os quase perturbadores para ele. Surgem questões, como “Quem controla essa transfusão de energia?” e “Qual é o significado desse movimento de corpos?”.

Há aspetos no próprio design que o intrigam, nomeadamente a representação constante de figuras masculinas brancas associadas à força. O sangue, ilustrado nessas representações, é descrito como “sangue ligado à ideia de individualidade e vitalidade viril”, acabando por ser exibido um ato de solidariedade sob um certo cinismo.

Do ponto de vista relacional, mas também temático, a exposição relaciona diferentes tempos e ideias e resgata outras obras da geração de 80. Romão afirmou que “os artistas já nascidos nos anos 80 viviam num mundo com muitas fronteiras, mas também um mundo sem barreiras”, facilitado também pelo pós-25 de Abril.

André Romão disse que esta geração “não só absorveu influências internacionais”, como também começou a manifestar uma “consciência e responsabilidade perante problemas urgentes”. Uma das questões explorada na exposição é a das alterações climáticas, o que é visível pelo próprio título da exposição, “Calor”, que alude tanto ao “conforto de abraçar alguém que amamos” como “ao calor que nos vai matar a todos eventualmente”.

Na busca por uma “desierarquização do mundo”, André Romão reuniu materiais orgânicos, animais e vegetais numa relação horizontal, baseada em conexões íntimas. E, então, o espaço entre o humano e o não humano, o mundo real e o não real, o narrativo e o factual, desvanece. Nesse contexto, Romão enfrenta diversas “tensões” decorrentes da reflexão sobre a “vitalidade dos corpos e das emoções”.

O artista explicou ainda que há uma “certa magia que anima as coisas” e, quando essas se entrelaçam com o contemporâneo e o imaginário do artista, “de repente os dedos começam a mexer-se e os braços a rodar, transformando-se”. E, numa naturalidade inerente ao seu processo, o que era velho ou esquecido, ganha uma nova vida.

Aquilo que Walter Benjamin denominou de “aura”, como presença única e intemporal da obra de arte no espaço, materializou-se nas peças de André Romão. Como mencionou o artista, “há muitos trabalhos na exposição que têm a ver com a ideia de animação dos corpos, de energias que se tornam visíveis, de emoções que soam”. Para o artista, as peças elevam-se ao metafísico. Pela presença que ocupam, pela aura que carregam.

Os próprios objetos a desejar ser corpo e a serem-no, e essa tentativa de presença sente-se pela sala. Objetos que, como afirma o artista, passam por ele mas não obedecem às suas regras ou de outrém, respondem antes “às dinâmicas constantes da existência no mundo”. E isto não passa pela vontade do artista ou do eu pensante, mas antes pela existência inerente ao objeto.

Assim, a obra do artista adquire um caráter surrealista, um imaginário poético. Desde o pássaro que brota dos ramos, à raposa que se esconde numa manta no escuro – a última peça da exibição -, as lágrimas pesadas que caem como sinos, a “coruja em movimento perpétuo”, as luzes da última peça que ligam e desligam em sentido do batimento cardíaco.

Há uma dualidade constante que está muito presente em toda a exposição: o calor que abraça, mas que mata, a concha que acolhe, mas sufoca, o sangue que salva, mas que não é dado, a própria vida a existir, mas prestes a morrer.

Esta última ideia traduz-se, por exemplo, numa das peças da exposição, com o nome de “Inverno Sem Fim”. Nesta peça artística, um pequeno caixão enche-se de bulbos, de flores, mas “nunca vão germinar, porque o museu não tem humidade”. E, então, mantêm-se para sempre neste “limbo”, como refere, onde “não estão mortos nem estão vivos”, onde vão indo sem realmente chegarem a ser.

É na penumbra que se encerra esta exposição. Num lugar sombrio, onde o pelo do animal espreita, mas não é visto e não se sabe ao certo se está morto ou não. Sob um “universo de ilusão”, “corpos voltam a ser cascas” e “as roupas viram folhas”, e ainda que a raposa seja o animal, ela permeia diferentes “níveis de existência”, rematou André Romão.

Sob as palavras do artista, o espetador é levado a “observar o outro”, a reconhecer “diferentes níveis de consciência e existência”, e a refletir sobre “aquele que habita o mundo de maneira distinta”, mas muito própria.

Através de uma visão atenta e sensibilidade afinada, André Romão expressa-se sempre tendo em conta a sua relação com o mundo. Dessa mesma relação, nasce o desejo da autenticidade, que resulta num “cair de máscaras”, tão essencial para o artista, o que acaba por suscitar vários “fantasmas” que o assombram e que ele espera que também persigam o espetador durante toda a exposição.

A exposição “Calor” vai estar no Museu de Serralves até 2 de junho.

Editado por Inês Pinto Pereira