A Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto chegou em novembro aos 60 anos e precisa de "jovens", refere Rui Vaz Pinto, presidente da direção, em entrevista ao JPN.

Quem passa na rua não diz, mas, no primeiro andar da esquina da Praça Carlos Alberto com aquela que é conhecida como a Praça dos Leões, fica a Unicepe – Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto.

Quando se entra no n.º 128 da Praça Carlos Alberto encontra-se, ao cimo da escadaria de pedra, um lugar que, sendo deste tempo, é também de um outro.

Da sala onde Rui Vaz Pinto explica como surgiu a Unicepe, vê-se a Reitoria do Porto e ele sabe do que fala, porque muito antes de presidir à direção da cooperativa já a frequentava amiúde.

Rui Vaz Pinto, que trabalhava em 1964 na Rua de Ceuta, soube pelos colegas da existência da Unicepe e passava lá, com facilidade, uma das duas horas de almoço de que dispunha. Para isso, ia fazendo uso de “uma das regalias” que ser associado do Cineclube do Porto lhe conferia, e sentia-se “elemento da Unicepe”. Entre 1970 e 1972, esteve em Angola. Mas depois de regressar voltou a ser frequentador da cooperativa a que se juntou como membro em 1976.

Mas vamos à história da casa: a Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto nasceu da iniciativa  de “um grupo de jovens com uma consciência [política] acima da média”, contou Rui Vaz Pinto ao JPN. Esses jovens fundaram primeiro a República 24 de Março, nesse dia de 1963, Dia do Estudante, na Rua da Maternidade, em homenagem aos colegas que, um ano antes, tinham agitado a academia lisboeta. 

Zeferino Coelho, histórico editor de José Saramago, era um desses estudantes. É sócio fundador da Unicepe.

Foram eles que “começaram a desenvolver a ideia de como fazer para ter livros mais baratos e também para ter livros que não havia à venda em Portugal, por causa da censura.” Cerca de meio ano depois foi então criada a Unicepe, a 19 de novembro de 1963.

O objetivo foi cumprido, pelo que encontravam-se na Unicepe não só livros técnico-universitários e edições estrangeiras, mas também livros que antes do 25 de Abril eram censurados, isto é, quando não “eram apreendidos a montante”, antes mesmo de chegarem às livrarias, que era o que acontecia a maior parte das vezes.

Rui Vaz Pinto é presidente da direção da Unicepe desde 2003.

Rui Vaz Pinto recorda que a PIDE ia lá “com frequência” e que, há bem pouco tempo, José Vigário Silva, um dos associados mais antigos, contou uma história sobre esses tempos.

“Um belo dia, aparece um agente da PIDE [em casa de José Vigário Silva] para apreender os livros dele. Já tinha dois livros de poesia editados em Coimbra. Ele vai buscar oito livros – tinha outros escondidos, mas eles não andaram a vasculhar -, deu-lhes os livros e telefonou para aqui a avisar para escondermos os livros dele, por causa da PIDE. Quando os veio buscar, ia a entrar e estava lá em baixo o agente da PIDE. ‘Nós sabemos tudo o que se passa'”, tinham ouvido o telefonema”, relembra.

O atual presidente da direção da Unicepe explica ao JPN que no início “vinham com um auto de apreensão e levavam o livro, deixavam um ‘recibo’, mas, mais tarde, apareciam aqui sem ‘recibo’ nenhum”, conta, acrescentando que normalmente só um estava exposto e era esse que era levado; os outros, se os houvesse, estavam escondidos.

Com Abril chegou o entusiasmo da liberdade

Depois do 25 de Abril, tudo mudou. Mas a cooperativa foi também vítima do clima de entusiasmo que se gerou. “Houve uma certa loucura na ocasião de levar livros às fábricas numa carrinha e depois vender e não controlar a cobrança”, exemplifica. O propósito era fazer chegar os livros “a todos quanto era possível”. Havia também um excesso de trabalhadores e a Unicepe passou por uma situação muito difícil, tendo vivido, durante algum tempo, “da grande imagem” que tinha na Europa.

Em 78, quando Rui Vaz Pinto passou a integrar a direção, não havia nenhum fornecedor “a vender um livro que fosse à Unicepe”, chegou a pôr-se a hipótese de fechar as portas. Com alguns golpes de sorte e muito trabalho, o caso foi mudando de figura e tudo se foi compondo.

Mas se a Unicepe não teve o mesmo destino que as suas congéneres – a Livrelco, em Lisboa, e a Unitas, em Coimbra – foi acima de tudo graças à dedicação e trabalho voluntário de muitas pessoas, incluindo do entrevistado.

À pergunta porque é que tanta gente está e esteve disponível para isso a resposta é rápida: “Por acharem que é muito importante o livro em si”, mas “o livro bem tratado e não aquele livro objeto-de-consumo.”

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

É visível que a vida da cooperativa está ligada à vida da cidade e, de um modo concreto, à vida académica da cidade: a Unicepe assistiu e foi afetada pela deslocação dos cursos que antes da revolução estavam concentrados na agora Reitoria e que passaram para outros locais do Porto; as bibliotecas das faculdades também passaram a garantir uma grande oferta aos estudantes. E a livraria despediu-se das pessoas que foram para a periferia, além de ter sofrido com as obras de construção de infraestruturas criadas no âmbito do Programa Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura.

Estes e outros acontecimentos foram alterando a fisionomia do Porto à medida que a cooperativa envelhecia também. E por isso é que hoje a cooperativa se centra “sobretudo no livro português” e já não tanto no livro técnico.

A oferta atual da Unicepe é variada, do ensaio ao livro infanto-juvenil. Foto: Rosa Gonçalves/JPN

Nas estantes densamente povoadas da livraria há hoje poesia, romance, nacional e internacional, ensaios, livros infanto-juvenis das mais variadas chancelas e muitas edições de autor.

A Unicepe foi-se adaptando aos tempos e mantém uma intensa atividade cultural, mas diferente da que já teve. Por exemplo, antes do 25 de Abril, a Unicepe foi também representante da Associação do Turismo Universitário Mundial. Depois da revolução dos cravos, chegou a ter o seu próprio restaurante. E não só vendeu discos, como lhes dedicava uma sala.

“Esta sala aqui era só discoteca. Era um grande centro difusor da Orfeu, a etiqueta criada pelo então jovem Arnaldo Trindade – que continua jovem, mas agora com 89 anos [o histórico editor faleceu a 8 de janeiro de 2024, já depois de realizada esta entrevista] – e ainda tínhamos duas cabines, aqueles dois armários, com um gira-discos em cada um, onde os clientes se fechavam para ouvirem os discos – não havia auscultadores – e decidirem se compravam. Tudo isto era só discos. Depois, os discos começaram a não se vender, passou-se mais tarde para os CD, ainda temos uns milhares, já se vende pouco, mas ainda temos”, conta.

Em jeito de rememoração desse passado também ligado à música, a Unicepe foi palco, em novembro, da apresentação do primeiro LP de uma nova editora chamada Mnemónica, criação de um jovem cineasta, Paulo Pinto, e de uma arquiteta, Susana Vassalo, que quiseram recuperar uma prática lançada em Portugal pela editora Orfeu, de Arnaldo Trindade, de publicar vinis de vozes e poesia lida pelos seus autores. O disco chama-se “Arnaldo Trindade lê Arnaldo Trindade”. 

A programação da UNICEPE mudou e hoje inclui, com regularidade, apresentações de livros, debates, “jantares de amizade”, rodas de Choro, cursos livres de línguas, entre outros, acontecendo, “em média, duas iniciativas por semana”.

Esse papel de destaque na vida do Porto foi reconhecido em 2014 quando a Câmara Municipal lhe atribuiu a Medalha de Mérito, grau ouro. Pela mesma razão, mas com consequências mais práticas, a cooperativa integra, desde fevereiro de 2020, o programa Porto de Tradição.

O presidente da direção afirma que as oportunidades de inovar são muitas, mas é “preciso trazer jovens, quer na perspetiva de novos dirigentes, quer na perspetiva de novos compradores”.

Editado por Filipa Silva

Artigo realizado no âmbito da cadeira de TEJ Online – 2.º ano