Antiga jogadora do Boavista, Assunção Tato foi uma das primeiras jogadoras da Seleção Nacional de futebol feminino. A antiga defesa central voltou ao Estádio do Bessa para recordar esses tempos. Autora do primeiro golo de sempre da seleção feminina, Tato fala sobre a criação apressada da equipa e manifesta o seu ponto de vista sobre o estado atual do futebol.

Nascida a 29 de dezembro de 1963, Maria da Assunção Tato deu os primeiros toques na bola aos cinco anos. Foi já com 17 que começou a jogar na equipa principal do Leixões SC e na época 1981/82 rumou ao Boavista FC, clube onde terminou a carreira apenas quatro anos depois. Além dos jogos nos clubes portuenses, participou em alguns encontros da então criada Seleção Nacional feminina, tendo ficado para a história como a autora do primeiro golo da equipa nacional

No total, Tato participou em sete jogos da seleção, nomeadamente nos de qualificação para o Campeonato da Europa de 1984. O apuramento falhou e a equipa foi descontinuada, mas ficaram as memórias que ainda hoje a animam. É sobre esses tempos que a antiga atleta falou com o JPN, no estádio do clube onde se destacou e do qual guarda boas memórias, o Boavista.

A primeira seleção feminina

São Tato tinha 18 anos e estava já no Boavista quando a Federação Portuguesa de Futebol decidiu criar uma seleção nacional feminina, após um convite para um jogo de preparação por parte de França. A decisão apanhou todas as jogadoras portuguesas de surpresa. “Era algo que nós desejávamos desde o início, mas só começámos a acreditar mais perto da data. As desigualdades eram tantas que nós nem acreditávamos… Mas foi possível”, recorda a antiga central ao JPN.

A formação era então liderada pelo técnico José Pacheco e era constituída apenas por jogadoras do Norte do país. O Boavista era um dos clubes com maior visibilidade em Portugal e com “as jogadoras mais irreverentes”, diz São Tato. Por essa razão, foram chamadas à seleção oito atletas axadrezadas, cinco do Coelima, duas do Leixões e uma do Foz.

Convocatória do primeiro jogo da seleção feminina em 1981 (Infografia: Daniela Vaz e Leonor Araújo)

No total, para esse primeiro compromisso oficial da seleção, um amigável frente à França que ocorreu a 24 de outubro de 1981, foram, então, chamadas 16 atletas (ver infografia), um número reduzido se compararmos, por exemplo, com as 25 que foram chamadas em novembro do ano passado para representar Portugal na Liga das Nações. Prova da forma apressada como na altura tudo decorreu, recorda São Tato: “Nessa altura, não fazia a mínima ideia de que só tínhamos cinco suplentes. Com o passar do tempo e com a vinda de mais jogadoras é que começámos a ver que, de facto, eram poucas as que estavam no banco.”

A reação do público

Apesar de o futebol ser o desporto-rei em Portugal, São Tato relembra que a notícia da formação de uma equipa feminina não foi tão bem recebida pela população como as jogadoras esperavam. No início dos anos 80, quando a herança do Estado Novo ainda se fazia notar, não existia futebol profissional para as mulheres – o que ainda hoje é válido para muitas equipas no país – que acumulavam o desporto com os seus empregos. Tinham muitas vezes mais do que um trabalho, em fábricas ou noutros locais.

Mesmo nas bancadas, a presença feminina era reduzida. Socialmente, relembra São Tato, uma mulher a jogar futebol não era bem-vista. “Nessa altura, o povo português não estava preparado para a seleção de futebol feminino. Nos primeiros jogos, a população até nos aplaudiu, porque havia uma parte que também gostava do futebol feminino. Mas, a grande maioria, quando nos ia ver, era só para dizer ‘vai lavar a loiça!’ ou ‘vai fazer as camas!’. Enquanto no estrangeiro, os estádios estavam cheios, aqui era meia dúzia de pessoas.”

São Tato refere-se a outro jogo com França, desta vez em dezembro de 1982, um jogo de qualificação para o Campeonato da Europa de 1984, como uma batalha desigual. Há 40 anos, o futebol feminino em França era muito mais desenvolvido do que em Portugal. As jogadoras tinham horários de treino fixos, já recebiam um salário e algumas conseguiam fazer do futebol carreira. “Elas eram melhores do que nós, tinham outras condições. Nós trabalhávamos e éramos jogadoras nos tempos livres, jogávamos por gosto. Elas não. Algumas já eram profissionais nessa altura”, afirmou.

Recorte da revista “Off-Side Magazine” com a seleção portuguesa a 4 de dezembro de 1982. Foto: Leonor Araújo/JPN

O primeiro golo da Seleção

São Tato lembra, com grande carinho, o momento mais marcante da sua carreira, o primeiro golo de sempre da seleção. Foi no dia 6 de fevereiro de 1983. Até então, Portugal somava dois empates e duas derrotas sem nunca ter tido a oportunidade de celebrar um golo. São Tato marcou para a história: “É uma sensação que nunca mais esqueci. Foi um golo muito bonito, um livre de 30 metros. Aliás, ainda hoje há pessoas que não se esqueceram desse golo. Ganhámos 1-0 em La Guardia, em Espanha. Foi um jogo espetacular, uma motivação para continuar a dar o nosso melhor.” Estava feita também a primeira vitória da história da seleção feminina de futebol.

As jogadoras galvanizaram-se, mas o entusiasmo não durou muito tempo. Seguiu-se uma derrota diante da França e depois veio a Itália. Encontro no Estádio do Bessa, o último na qualificação para o Europeu de 1984. Depois da derrota por duas bolas a zero, e do não apuramento para o Europeu, a federação decidiu pôr fim ao sonho destas mulheres. “Foi uma grande tristeza e pouco depois, em 1986, também deixei de jogar futebol. Até hoje, não sei os motivos dessa decisão, mas foi uma desilusão. Depois disso, desconectei-me um bocado do mundo do futebol, apesar de ainda manter uma relação de proximidade com algumas colegas daquela equipa.” A seleção feminina só regressaria em 1993.

Dos tempos da primeira seleção até à atualidade passaram 40 anos. O futebol feminino em Portugal goza hoje de condições muito diferentes e pode gabar-se de grandes conquistas. Ao nível das seleções, a equipa nacional feminina já participou numa Liga das Nações, em dois campeonatos da Europa e num Campeonato do Mundo. Ao nível de clubes, há um campeonato nacional com 12 clubes, nos quais se incluem ‘grandes’ do futebol português, como o Benfica, o Sporting ou o SC Braga.

Mas há caminho por fazer, na opinião de São Tato. Ainda existem cinco clubes da Primeira Liga masculina que não têm equipa de futebol feminino, sendo eles o Portimonense SC, o FC Vizela, o GD Chaves, o SC Farense e o FC Porto. Os três últimos têm projetos para avançar com a criação da modalidade, mas ainda não os concretizaram. “Não têm [futebol feminino] por falta de dinheiro, porque para outras modalidades também não o há. No caso do FC Porto, é outra história”, analisa a matosinhense. “Se tivesse futebol feminino, de certeza que os estádios estariam cheios. Aliás, já na altura em que joguei no Boavista, havia muitas pessoas que gostavam que o Porto tivesse equipa feminina, mas o clube nunca enveredou por esse caminho. Acho que, neste caso, não é por falta de dinheiro. Temos de perguntar ao Pinto da Costa”, brinca.

O futuro do futebol feminino

Parte da recente popularidade da seleção feminina deve-se a jogadoras como a Kika Nazareth e a Jéssica Silva. Esta geração tem inspirado as jogadoras mais jovens a seguirem os seus sonhos e a lutarem por um lugar nas 25 melhores. “A Kika tem muito impacto no futebol feminino, mas não é só ela. Há muitas jogadoras talentosas que também jogam na seleção e são reconhecidas no estrangeiro.”

Quando questionada sobre a atenção dada à seleção de que fez parte, a ex-jogadora não tem dúvidas: “Se tivéssemos outro tipo de apoios, tínhamos crescido muito mais. Ao nível dos jornais, até havia publicidade, a comunicação social assistia aos jogos, faziam crónicas… Não foi por aí. O problema foi mesmo o público em si. Na década de 80, não havia a mentalidade de agora. Antigamente, se as mulheres fossem ao café, já era um 31. Portanto, as mentalidades mudaram muito e ainda bem que mudaram”.

Apesar de curta, a carreira de Assunção Tato foi vivida de forma intensa e é algo de que a antiga jogadora, agora com 60 anos, se orgulha. No entanto, ficaram coisas por fazer e experiências por viver. “Gostava de ter sido campeã do Mundo ou da Europa pela seleção. Fui campeã da Europa e do Mundo pelo Boavista, em torneios na Alemanha. Isso fomos, mas a nível de seleção, não. Tenho pena.” 

Vê um futuro promissor para a seleção feminina e deseja que a nova geração consiga alcançar o que a sua geração não conseguiu. “O futebol feminino está a crescer e de hoje para amanhã podem ser campeãs do mundo. Havemos de chegar lá, temos é de ter fé e condições para que isso aconteça”.

Cronologia: Daniela Vaz e Leonor Araújo

Artigo realizado no âmbito da cadeira de TEJ Online – 2º ano