Em entrevista ao JPN, Matthew Desmond, autor do livro "Poverty, by America", fala sobre o paradoxo da riqueza e pobreza nos Estados Unidos da América, "a democracia mais rica com mais pobreza".

Matthew Desmond é um renomado professor de Sociologia na Universidade de Princeton e esteve pela primeira vez em Portugal, esta quarta-feira (14), como convidado da conferência anual do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (IS-UP).

Em foco, o seu mais recente livro: Poverty, by America”, título lançado em 2023, no qual o autor – vencedor de um Pulitzer -se debruça sobre o “paradoxo” da riqueza e da pobreza nos Estados Unidos.

Na conferência anual do IS-UP foram apresentados alguns dados relativos à pobreza no país. Segundo o autor, em 2021, uma em cada 25 pessoas com 65 anos ou mais, viviam em pobreza profunda na América.  A isto acrescentou que, nos Estados Unidos, “mais de um milhão” de crianças “das escolas públicas estão sem abrigo: vivem em motéis, carros, abrigos e edifícios abandonados”. De acordo com os cálculos de Desmond, “são necessários 177 mil milhões de dólares para acabar com pobreza na América”.

Em entrevista ao JPN, à margem da conferência que decorreu na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, o autor do livro ressaltou que a taxa de pobreza infantil nos Estados Unidos da América “não é apenas superior à de outras democracias avançadas, é o dobro da do Canadá, da Coreia do Sul e da Alemanha”.

Matthew Desmond abordou ainda a existência de estudantes sem-abrigo, por exemplo, junto à Universidade da Califórnia em Berkeley, destacando que “é um sinal preocupante de como a crise da habitação está a afetar tantas pessoas”. Além disso, o autor mencionou as disparidades entre “pobreza negra” e “pobreza branca” enfatizando a importância do envolvimento coletivo: “Todos nós podemos desempenhar um papel na abolição da pobreza”.

JPN – É professor em Princeton e dedica-se à Sociologia. Sendo os Estados Unidos da América (EUA) o país mais rico do mundo, porquê dedicar a sua investigação à pobreza?

Matthew Desmond (MD) – Porque é a democracia mais rica com mais pobreza. Não há nenhuma democracia avançada que tenha o tipo e o nível de pobreza que temos. A nossa taxa de pobreza infantil não é apenas superior à de outras democracias avançadas, é o dobro da do Canadá, da Coreia do Sul e da Alemanha, por exemplo. Sempre que venho à Europa, é inevitável que um europeu utilize a frase “american-style deprivation” [o que se poderá traduzir para “privação ao estilo americano”]. Esse paradoxo é uma grande parte do que significa viver na América.

JPN – Fazemos parte de um jornal académico. Como é que o livro foi recebido pela comunidade académica nos EUA? Falou na conferência da existência de muitos estudantes sem-abrigo. Pode falar-nos um pouco sobre essa realidade?

MD – Quanto à primeira questão, penso que foi bem recebido pela comunidade académica. O facto de o livro ser muito falado nas universidades não significa que não seja objeto de debate e controvérsia. Alguns debates têm sido em torno de afirmações sobre a medição da pobreza, ou seja, como é que se mede isso. O livro está a acabar com a divisão convencional entre as coisas que podemos fazer como pessoas e as coisas que temos de fazer como sociedade. Tem sido um debate saudável e estou muito contente por as pessoas estarem a debater acerca do livro e a falar sobre este assunto.

Relativamente aos sem-abrigo entre os estudantes, esse é um problema atual, especialmente, nas cidades mais caras. Se formos à Universidade da Califórnia, em Berkeley, por exemplo, deparamo-nos com um dos mercados imobiliários mais caros do país e há, inclusive, estudantes a dormir em carros. Este é um sinal preocupante de como a crise da habitação está a afetar tantas pessoas.

JPN – Menciona frequentemente as diferenças entre “pobreza negra” e “pobreza branca”. Pode explicar melhor essas disparidades?

MD – Sim, são tradicionalmente experiências muito diferentes na América e a razão para isso é a geografia espacial. Durante muito tempo, e penso que ainda hoje é assim, o afro-americano típico nascido no limiar de pobreza vivia num bairro pobre e o branco pobre típico não. Viviam duas experiências diferentes: na família branca pobre, os filhos podiam frequentar escolas com melhores recursos, os bairros eram mais seguros, a habitação era melhor e tinham acesso a mais recursos institucionais.

JPN – Em entrevista ao “Washington Post” disse que alguns indivíduos e sistemas beneficiam com a existência da pobreza. De que forma esses indivíduos e sistemas são beneficiados?

MD – Muitos de nós lucramos com a existência da pobreza. Lucramos quando investimos numa empresa, quando decidimos ser segregacionistas. Lucramos quando defendemos um Estado social desequilibrado ou quando aceitamos benefícios fiscais que são, maioritariamente, para os americanos da classe média e da classe alta, o que deixa menos para investir no combate à pobreza. Muitos de nós estão ligados ao problema, mesmo que não o saibamos, mas isso também significa que estamos ligados à solução. Isso significa que parte de tentar abolir a pobreza é, sem dúvida, tentar entrar num movimento anti-pobreza. No entanto, também é fazer perguntas como: onde é que arranjou esses sapatos, foram feitos em condições justas? As pessoas que o fabricaram foram bem tratadas ou não?

JPN – O que está a dizer é que o combate à pobreza depende de cada um.

MD – Há um livro antigo em que o autor escreve: “Se queres que o teu povo construa um barco, não recolhas a madeira. Deixa-o ansiar pelo mar”, por isso, penso que parte da história que queremos contar não é apenas sobre o facto de nos livrarmos da pobreza, mas também sobre o facto de recebermos algo em troca. E pelo menos na América, não sei o suficiente sobre este belo país para falar sobre isso, o que obteríamos seria um país mais seguro, mais vibrante, mais saudável e mais empenhado civicamente.

Um país sem pobreza é um país onde os pais não têm de se preocupar com a situação: “será que o meu filho vai parar a uma instituição?”, “não quero ir a este restaurante porque não tenho posses para isso”. Estou a pedir a alguns dos meus compatriotas americanos, especialmente aos que têm meios e que estão bastante seguros do seu dinheiro, que aceitem um pouco menos. O que ganhamos com isso é um país melhor e penso que muitos americanos estão dispostos a fazer esse acordo.

Matthew Desmond esteve quarta-feira na FLUP na conferência anual do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.

JPN – Como diz no seu livro, os EUA têm vários programas de combate à pobreza. Quais são as razões pelas quais parecem ter um sucesso limitado na erradicação da pobreza?

MD – O sucesso não é limitado. Por um lado, os programas de luta contra a pobreza são extremamente bem-sucedidos, elevam milhões e milhões de famílias acima do limiar de pobreza todos os anos, mas não conseguem acabar com a pobreza por si só. Se tivermos um mercado de trabalho que continua a explorar os trabalhadores e na verdade, a exploração continua a subir exorbitantemente, então este programa pode ficar sobrecarregado. Os programas funcionam e salvam vidas, mas não são suficientes neste momento. O que significa que precisamos de abordagens diferentes para acabar com a pobreza.

JPN – Do governo?

MD – Sim, mas isso não significa necessariamente que precisamos de mais do mesmo. Por isso, creio que precisamos de abordagens que sejam de curto e longo prazo. Temos de parar a hemorragia, mas depois temos de tratar não só os sintomas, mas também a doença. Por exemplo, no que se refere ao trabalho, eu seria a favor do aumento do salário mínimo? Sim. Seria a favor do aumento dos subsídios salariais para os colegas de trabalho com salários mais baixos, que podem obter um aumento de salário?  Sim. Mas também acho que temos de fazer coisas para tornar a organização mais fácil, colocando os trabalhadores em conselhos corporativos onde possam ter alguma palavra a dizer sobre o seu futuro. E penso que esse tipo de políticas intervencionistas são necessárias para encontrar soluções a longo prazo.

JPN – Devemos ouvir os que vivem em condições de pobreza para formular os programas?

MD – Sim, penso que aqueles que estão na linha da frente destas questões, que foram explorados, despejados e flutuam entre a pobreza e qualquer coisa próxima da estabilidade, devem ser ouvidos. As vozes e experiências destas pessoas são importantes e devem ser líderes do movimento anti-pobreza. No entanto, todos nós temos um papel a desempenhar neste domínio, quer estejamos na pobreza ou vivamos na abundância, quer estejamos no jornalismo, no direito, nas artes ou nas ciências. Todos nós podemos desempenhar um papel na abolição da pobreza. Para se tornar um abolicionista da pobreza não é preciso vir de um determinado sítio do país. Exige, sim, que o fim da pobreza seja algo com que nos preocupemos verdadeiramente na nossa vida pessoal e política.

JPN – Este ano é um ano de eleições. As intenções de voto mostram-nos que os adolescentes americanos têm preferência por Donald Trump. O que é que pensa sobre isso?

MD – Não sei, não estudo nada sobre isso.

JPN – Qual seria a melhor solução para a América?

MD – Eu vou votar no presidente Biden.