O Museu de Serralves acolheu uma conversa que tinha como protagonistas três antigos alunos da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP) e de Álvaro Lapa. A conversa surgiu no âmbito de uma exposição sobre o pintor. O objetivo era dar a conhecer o professor que vivia no artista.

Denise Pollini, coordenadora do Serviço Educativo de Serralves, contou ao JPN que ouvia sempre relatos sobre o Álvaro Lapa professor que o descreviam como uma “figura muito marcante, mas também muito enigmática, quase como uma esfinge”.

Em conversa com Sofia Ponte, antiga aluna do artista e atual professora de Arte Contemporânea na FBAUP, a ideia de explorar e descobrir um pouco mais sobre o lado docente de Lapa acabou por surgir de forma natural. Isto porque “era muito curioso e instigante saber um pouco mais. Afinal, se era tão esfinge, tão silencioso, como é que foi tão marcante para os alunos?”, questionava-se Denise Pollini.

“Enigmático”, “discreto”, sossegado”, “subtil” e “silencioso” são alguns dos adjetivos utilizados por Sofia Ponte, João do Vale e Ricardo Castro na hora de descrever Álvaro Lapa.

Exposição Álvaro Lapa: No Tempo Todo

Uma das maiores contribuições de Lapa foi o destruir das barreiras entre literatura e pintura. Foto: Patrícia Santos

Ricardo Castro revelou ao JPN que Lapa era um professor diferente, sempre entre o “luminoso” e o “obscuro”, “que respirava muito e fazia vários intervalos de silêncio e que, cada intervenção, cada frase, cada palavra, era um desafio”.

O docente era uma referência, que transmitia muita informação de qualidade, sobretudo sobre autores, desvendou Ricardo Castro, que não deixou de ressaltar o quão curioso era que, numa Faculdade de Belas Artes, apresentasse escritores e não artistas.

“Era uma situação particular e toda a vertente da literatura, dos autores dele e depois nossos, passou naturalmente para o trabalho que desenvolvemos. Não só a literatura como referencial, mas também como processo de escrita, de criação, de apagar as diferenças entre a literatura e a pintura”, explicou.

João do Vale vai ao encontro da ideia de Ricardo Castro. Uma das maiores contribuições de Lapa foi o destruir das barreiras entre literatura e pintura, salientou, mas isso valeu-lhe algumas críticas de pessoas que achavam que estas duas áreas não se relacionavam de maneira alguma.

As barreiras entre pintura e literatura não foram a única coisa que Álvaro Lapa destruiu, acredita João do Vale. “Acabou com a pintura tradicional, de cavalete, até porque ele pintava em cima da mesa a maior parte dos trabalhos. Isto ensinou-me uma grande liberdade na abordagem à pintura, uma abordagem muito fluente, muito flexível”.

Ricardo Castro completou a ideia. Lapa “ensinou a escola enquanto método, modos de fazer, tiques, estilo” e fez perceber aos alunos que a técnica não servia de muito se depois “não se é genuíno, se não se encontra uma cosmologia e um universo próprio”.

Esta forma distinta de atuar e de ensinar fazia com que muitos considerassem que “não era exemplo para ninguém, que não podia ser exemplo numa escola de Belas Artes onde a pintura é transmitida com toda a sua tradição, desde o renascimento até à modernidade”, explicou Ricardo Castro.

“Os professores tentavam ensinar o estilo e a técnica, como fazer, a cartilha” e depois Lapa partilhava ideias diferentes e fazia de forma distinta à habitual, pelo que “facilmente diziam que ele não sabia desenhar”, concluiu.

Mais do que uma forma diferente de pensar e encarar a pintura, Lapa ensinou João do Vale a “filosofar com a pintura”. Ao JPN, revelou que nunca foi “muito bom a expressar ideias filosóficas, a discursar ou discorrer sobre elas”. Com o professor aprendeu que é “possível articular conceitos e sobretudo formular, inventar conceitos, usá-los numa obra pictórica e dizer aquilo que se tem a dizer através da mesma”.

Exposição Álvaro Lapa: No Tempo Todo

Álvaro Lapa tinha uma capacidade para “criar imagens que não conhecemos de lado nenhum”. Foto: Patrícia Santos

Para João do Vale é difícil destacar uma peça do trabalho desenvolvido por Lapa. “Não há nenhuma especial para mim porque o que me agrada é o cruzamento. Há um pensamento de fragmento, e o fragmento liga-se ao todo e o todo é a obra completa”, disse ao JPN.

Sofia Ponte salientou a capacidade que Álvaro Lapa tinha para “criar imagens que não conhecemos de lado nenhum. Não são imagens que já existam, normalizadas, e isso é muito saudável. Isso interrompe o scanning, aquela coisa de não parar, ele obriga-nos. Estas imagens que ele cria obrigam-nos a parar à frente delas, a refletir sobre elas”.

Ricardo Castro destaca o caráter vivencial do trabalho de Álvaro Lapa. “Acho que há muito mais vida do que conceito”, concluiu. Os três julgam que nem por isso a obra é biográfica.

Exposição Álvaro Lapa: No Tempo Todo

A “marginalidade dele [do Álvaro Lapa] era sobretudo interior” Foto: Patrícia Santos

Como todos os que pensam diferente, Álvaro Lapa acabou por ser visto como um marginal, assim como os autores de que falava foram. Eram escritores que “recusavam a ordem social contemporânea”, explicou Ricardo Castro. Autores que “faziam da linguagem um desvio das normas”.

Mas era Lapa verdadeiramente marginal? Castro acha que a “a marginalidade dele era sobretudo interior. Ele próprio assumia que não era uma pessoa fácil e recordo-me que era difícil comunicar com ele, havia uma autorreclusão. Se queremos conhecer o Álvaro Lapa é pela pintura dele, haverá duas ou três pessoas que privaram com ele. Aí essa marginalidade é completamente única”.

A aceitação da obra do artista de Évora acabou por chegar, mas a “obra ainda hoje é muito hermética, choca muito com as realidades que experimentamos, é muito pessoal”, rematou João do Vale.

A própria pintura “emana uma dissidência, um desvio do que é uma norma pictórica tradicional ou académica”, começou por explicar João do Vale. Ricardo Castro concluiu que “todas as formas – como pintar, como fazer uma aplicação de cor, qual a ordem certa para aplicar cores – remetem muito para a destruição da fronteira entre pintura e literatura”.

Álvaro Lapa pintava como escrevia, o que é errado do ponto de vista académico, esclareceu João do Vale. “É errado pintar por cima de uma mesa porque não se tem um cuidado com o olhar, a perspetiva altera, a abordagem também é alterada porque o olhar está na oblíqua em relação ao quadro, não está frente a frente”, considera.

Exposição Álvaro Lapa: No Tempo Todo

Álvaro Lapa procurou que a pintura e a escrita se fundissem. Foto: Patrícia Santos

Isto significa que Lapa queria fundir a pintura e a escrita o mais possível, concluiu Ricardo Castro, o que se percebia no gesto porque o mesmo que pintava era o que escrevia, explicou.

Sofia Ponte salientou a beleza de ver que “o mundo da arte ainda permite que haja este tipo de percursos, singulares, autodidatas, que não estão normalizados. É muito saudável que haja espaço para este tipo de práticas e de pensamento”. “Eu acho que o legado dele, sinceramente, são as referências que ele nos introduziu, a ideia de que há tantas maneiras de poder entender a vida e de a representar. Isso é infinito. É um legado, nesse sentido, muito bonito”, rematou a docente da FBAUP.

A exposição “Álvaro Lapa: No Tempo Todo” estará patente no Museu de Serralves até dia 13 de maio.

Artigo editado por Filipa Silva