Natural de Paredes, o realizador Filipe Martins declara o seu amor por um Porto muito típico no “Marias da Sé”. O filme retrata da vida das mulheres daquela zona emblemática da cidade e promete divertir o público. Estreia esta quarta-feira, dia 17, às 21h30 no Passos Manuel, no âmbito do Family Film Project.

Formou-se em Física na Universidade de Aveiro, mas o gosto pelo cinema falou mais alto. O seu currículo inclui a longa-metragem “Este Filme” (2002) ou a curta “Dino e Eneias” (2007), que competiu nos festivais de cinema de Vila do Conde e de Paris Tout Court, em França. Venceu também o prémio de melhor realizador com “Untraceable Patterns” (InShadow, 2012).

Filipe Martins também já deu cartas na escrita, tendo dois livros de ficção editados, o romance “Pontos de Vista” (2000) e a coletânea de contos “Quatro manhãs” (1995). Para além de realizador e escritor, é também codiretor do festival de cinema Family Film Project – que decorre até dia 2,0 na Invicta -, professor universitário e investigador integrado no Instituto de Filosofia da Universidade do Porto.

O JPN esteve à conversa com o realizador no âmbito da estreia do filme “Marias da Sé”, esta quarta-feira, 17, na sétima edição do Family Film Project.

A ideia nasceu em 2015 de um desafio da Porto Lazer ao Balleteatro, e tudo floresceu a partir daí. A proposta “surgiu dentro de uma iniciativa maior, o projeto Locomotiva da Porto Lazer”, afirma. “O Balleteatro fez-me um convite para vir trabalhar com a comunidade da Sé (…) e a partir daí podia ser qualquer coisa. Chegou a pensar-se num trabalho de videodança, por exemplo, porque já fiz alguns trabalhos desse género, numa curta-metragem ou num mero documentário, mas depois acabou por tornar-se num filme híbrido, numa mistura entre a ficção e o género documental”, conta.

A escolha da mistura entre o real e o fictício para narrar a história deve-se a uma assumida “tendência natural para inventar histórias e fazer uma abordagem narrativa mais ficcional”. “Embora eu contasse fazer um documentário, (…) vi a possibilidade de fazer um aproveitamento destas pessoas típicas da Sé num sentido mais profundo, que obviamente obrigava a uma espécie de construção narrativa e o filme acabou por se moldar num molde mais ficcional”, revela.

Quando questionado sobre a forma como essa fusão se deu na prática, o realizador explica: “Por exemplo, o filme passa-se todo num dia só, embora tenho sido filmado em vários dias. Isso não seria possível se a minha atitude fosse meramente documental, porque as roupas mudariam de um dia para o outro, o que não acontece, e as cenas adequam-se a determinada fase do dia, de forma a haver uma sequência que vai de manhã à noite. Tudo isso é ficcional, dentro de um espírito espontâneo e baseando-se sempre nas vidas reais delas, e nesse já aspeto é documental.”

Turismo não foi esquecido

A mistura entre a ficção e a realidade traz consigo outra combinação improvável: atores profissionais e as mulheres da Sé. “Inicialmente havia um plano que previa uma parte ficcional, havia um guião escrito para os atores profissionais no caso de não haver material documental suficiente para a outra componente do filme. Depois, à medida que o filme foi crescendo, essa componente ficcional foi ficando marginalizada e ocupa menos espaço na versão final”, afirma o realizador.

Vendedora da Sé que entra no filme de Filipe Martins.

Maria Comunista, uma das mais populares vendedoras da Sé. Foto: Inês Oliveira

“Além disso, as personagens ficcionais interagem com os não atores e isso exigiu que, antes de gravarmos essas cenas, conhecêssemos os não atores e estudássemos as interacções entre eles (…). A componente ficcional acaba por fazer aqui um contraponto com o lado mais documental para dar um visão mais externa da comunidade da Sé”, acrescenta.

A abordagem tradicional e próxima presente no “Marias da Sé” contrasta com o Porto mais cosmopolita e turístico dos últimos anos, e essa questão não escapou a Filipe Martins. “Acho que, com o turismo e com toda esta evolução rápida a que se tem vindo a assistir, corre-se o risco de se perderem aqueles elementos mais tradicionais que também atraem o próprio turismo. O turismo acaba por eliminar aquilo de que vem à procura”, sublinha. O tema é retratado “quase de forma omnipresente” no filme, onde entra também um casal de turistas, interpretado por João Reis e Carla Bolito.

Mas será o turismo uma ameaça à tradição? Filipe Martins responde: “Elas [as mulheres da Sé] sentem-se ameaçadas, sentem-se pouco apoiadas pelo poder político, mesmo nas iniciativas que elas têm e nos eventos que elas organizam, desde as rusgas ou as sessões de fado vadio. Elas acabam por ser as mentoras e as gestoras destas tradições, e fazem-no conscientemente para proteger e promover a preservação deste espírito muito típico”.

A estreia do filme no Porto será no Family Film Project [21h30, Passos Manuel], festival dedicado à memória e ao arquivo. O realizador acredita que o “Marias da Sé” encaixa “tematicamente e formalmente na perfeição no espírito” do evento. “O festival Family Film Project é um festival de cinema etnográfico, de memória e de arquivo; são esses os três pilares que movem e afirmam a sua identidade. Este filme é um filme de memória, em primeiro lugar, devido à representação das tradições da Sé; e é um filme etnográfico também, no modo como vem captar aqui a alma deste lugar e é muito por aí que ele se encaixa no Family Film Project”, sublinha.

O estado da cultura e da arte em Portugal tem sido um assunto muito debatido ultimamente, com acusações por parte de artistas de desinteresse e desinvestimento pelo poder político. Enquanto realizador e apaixonado pela sétima arte, Filipe Martins reconhece que existe um problema.

“Em primeiro lugar, é fundamental promover a cultura em Portugal e para isso é preciso apoio político e financeiro, para que os artistas também possam desenvolver os seus trabalhos. Ao mesmo tempo, também acho que Portugal tem muita riqueza cultural e artística; tem bons artistas. O Porto tem manifestado muita saúde a esse nível, há bastantes iniciativas culturais e artísticas e também não quero dar uma imagem de completo desânimo. Por um lado, sinto que é insuficiente o apoio que temos tido e sinto que é preciso mais, mas ao mesmo tempo parece-me que Portugal tem uma cultura saudável em termos de riqueza daquilo que se produz. Temos bons artistas e obras de bom gosto, temos bastantes festivais de cinema e bastantes eventos culturais”, reflete Filipe Martins.

Para terminar, e em jeito de convite, o realizador deixa um apelo a todos os que estiverem a ponderar passar pelo Passos Manuel na quarta-feira à noite: “Podem esperar um filme acima de tudo divertido, mas que também aborda temas mais profundos acerca da preservação e celebração da tradição do Porto”, conclui.

Artigo editado por Filipa Silva