Nuno Grande é investigador e professor catedrático no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), no Porto. Com uma larga experiência na guerra e no percurso da ciência no pós-25 de Abril, defende a existência de uma carreira de investigador para o nosso país.

(Esta entrevista foi realizada por altura das comemorações dos 30 anos do 25 de Abril)

Como vê o percurso traçado pela ciência em Portugal durante os 35 anos de Estado Novo e depois nos anos que antecederam o 25 de Abril de 1974?

A investigação em Portugal não era uma prática corrente nem sequer normalizada. Em todo o caso, fazia-se em alguns sítios, quase por acção isolada de homens de génio, como foi o caso do professor Egas Moniz, prémio Nobel da Medicina, por essa via. E é o caso do professor Abel Salazar, que fez uma obra notável.
E, portanto, esses grupos, de forma um pouco espontânea, iam realizando investigação científica que servia principalmente a carreira universitária. Fazíamos as teses de doutoramento para ir subindo na carreira, não porque houvesse programas de investigação de base, excepto nos casos que eu disse.
No período quase terminal da vida do Estado Novo, houve uma viragem. O professor Veiga Simão chegou a ministro da Educação e procurou desenvolver linhas de investigação, mandando muitos jovens na época fazer estágios fora de Portugal. Então, os que regressaram trouxeram uma nova postura relativamente à investigação científica.

Até 1974 esteve quase 10 anos em Luanda. Como é que foram esses tempos no Ultramar?

Comecei nos chamados Estudos Gerais, não era universidade mas já era um ensino universitário. E logo de entrada, tive condições para fazer investigação. O que recordo em primeiro lugar, de facto, é a amargura de ser mobilizado para a guerra, que é uma coisa muito complexa. Claro que eu fui como médico e como médico tratei os doentes, fossem eles quem fossem.
Esse período foi exaltante. Ainda hoje recordo que fui trabalhar num hospital onde os 50 médicos que lá trabalhavam estavam permanentemente em serviço. Era vulgar estar na praia com a família e de repente, quando passava um helicóptero para o hospital, a gente deixava a família na praia e corria toda para lá. Porque éramos todos poucos e tínhamos que nos ajudar uns aos outros.

O que é que recorda mais dessa experiência em termos de investigação

Estimulei a investigação científica logo que cheguei. Fiz uma série de experiências, com um colaborador meu, que terminaram com uma conferência aos alunos e que me custou vir a Portugal “levar um puxão de orelhas” do regime da época. Juntei elementos que provam que os africanos têm características biológicas próprias, por causa daquele tipo de clima, do número de horas de luz, do calor… E, portanto, são um pouco diferentes de nós em algumas áreas, porque “a África é dos africanos” – terminei assim a conferência – o que, realmente, na altura, me ia custando alguns dissabores.
Quando regressei, o primeiro-ministro da época, Magalhães Godinho, chamou-me a Lisboa e perguntou-me: “Você não quer ficar no Porto? É que eu tenho este projecto e eu tenho papéis. Tenho documentos dizendo o que você estava a fazer no Huambo… Agora está cá, fá-lo no Porto!”… [risos]. E foi assim que eu vim para o Instituto de Ciências Biomédicas [Abel Salazar].

Como homem ligado à ciência e à investigação científica, como viu o 25 de Abril?

Nessa altura, queríamos era libertarmo-nos do regime ditatorial e vi isso com muita alegria. Quando vim queria ajudar a criar este instituto [ICBAS]. Não tínhamos nenhuma perspectiva imediata do programa (de nenhuma espécie). Queríamos apenas criar a escola com esta filosofia, voltada para a saúde, mas em que não se acredita que haja saúde sem desenvolvimento.

O que é que o 25 de Abril trouxe em específico à ciência?

Pela primeira vez, foi possível fazer investigação a sério nas ciências sociais, que era proibido mexer em algum problema que tivesse uma implicação político-social. Por outro lado, entendeu-se que a investigação é uma actividade cara e que precisa de ter recursos financeiros para se desenvolver.
Em terceiro lugar, abriu-se a relação como o resto do mundo, que estava fechada. Havia países que não queriam nada connosco por sermos portugueses, mas havia outros, ao contrário, que nos recebiam e queriam que nós lá ficássemos. Agora, Portugal é um dos países da Comunidade Internacional Científica de pleno direito e com reconhecimento de todos os outros. Isso foi muito importante – estávamos a ficar muito isolados.

Trinta anos depois, como é que a ciência tem vivido este período de liberdade?

Há muito mais gente jovem a fazer investigação, o que na altura não era possível. Há recursos financeiros muito mais significativos do que havia na época. Por isso é que há mais gente a investigar e muito mais gente a competir.
Há hoje grupos de trabalho, quer nacionais quer internacionais, que só são possíveis porque há esta liberdade real de poder fazer as coisas e de avançar.
E há reconhecimento, por parte dos governos, relativamente, à importância social da investigação.

Se é que pode fazer algum tipo de previsão, que futuro traça para a investigação científica no nosso país?

Vai tornar-se mais profissionalizada do que o que é hoje. Repare que a profissão de investigador científico não existe na universidade. São os docentes que fazem investigação. Depois, há um quadro de técnicos que também fazem investigação, mas a carreira de investigador que já houve, deixou de haver… E era necessário voltar a haver uma carreira de investigadores. Quem faz investigação connosco [com o ICBAS], para além dos docentes, são preparadores, os técnicos que são pessoas extremamente competentes, e de uma extrema utilidade, mas que não têm carreira nenhuma. Era importante haver uma carreira de cientistas, a sério… Tenho essa esperança.

Letícia Amorim