Segurança Social não tem assegurado o transporte escolar das crianças. Comunidade pouco receptiva às aulas de formação da Câmara do Porto.

Já se passou um mês desde a demolição das barracas do acampamento cigano do Bacelo, no Porto, e faltam 30 dias para o realojamento em habitações sociais garantido pela Câmara do Porto. O JPN foi perceber o que mudou desde então.

Ao final da tarde, as crianças correm pela Travessa do Bacelo. Filipe Machado, de 11 anos, interrompe as correrias para contar ao JPN que passa mais tempo no Bacelo do que na pensão. “Tenho que ir mais cedo para a escola e estou mais tempo aqui do que lá”, diz.

Com 14 anos, André Carvalho queixa-se que agora tem que andar mais de transporte. “Às 8h30 tenho que estar na escola e fica mais perto daqui do que do Marquês” é assim que explica porque não dorme na pensão.

As crianças continuam a ir à escola, mas “é a gente que vai lá levá-los e a buscá-los”, conta Prefeita Santos. A Segurança Social “nunca mais apareceu aqui”, diz.

Para além de não ter garantido o transporte escolar das crianças, a Segurança Social só paga as refeições do meio-dia e não arranjou uma solução para a lavagem da roupa. “Não é assegurado nem o transporte, nem a roupa, nem os ‘comeres’ ao jantar, temos que fazer de comer em casa [carrinhas]”, confirma Francisco Machado.

Aos fins-de-semana, vão ao restaurante pago pela Segurança Social, mas durante a semana, na instituição onde se deslocam, “a alimentação dada não tem o mínimo de qualidade”, garante Inês Leite, da Plataforma 65, que estava no Bacelo.

Inês Leite diz ainda que a Segurança Social não tem pago à dona da pensão do Marquês, que ameaça despejar as pessoas se a situação não for regularizada. Às críticas junta-se o caso de Maria da Glória Carvalho. Internada no hospital durante a demolição do acampamento, agora “está a dormir ao relento porque a Segurança Social ainda não lhe arranjou uma pensão onde possa ficar”, denuncia Inês.

Um mês depois da demolição das barracas, a rotina diária da comunidade cigana foi completamente alterada. “Uma pessoa vai daqui [Bacelo] para as pensões, das pensões para aqui e estamos aqui quase todo o dia, fora as reuniões [aulas de formação], sem fazer nada”, descreve Sandra Gomes. O futuro já é visto com alguma desconfiança: “Vamos lá ver se vão entregar mesmo as casas”, revela.

No interior da carrinha, Prefeita Santos trata do jantar. “Todos os dias para cima e para baixo, isto assim é chato”, queixa-se enquanto cozinha. Quanto a ter uma casa no próximo mês, mantém-se confiante, mas “só acredita mesmo quando tiver a chave na mão”.

Para Inês Leite, o desenraizamento foi a maior mudança na vida da comunidade cigana do Bacelo. “As pessoas têm passado o dia aqui perto do Freixo, junto das suas carrinhas, com medo que alguém lhes tire os bens que conseguiram salvar, o que também provoca alguma desconfiança por parte da população que aqui vive”. Os animais de estimação são outra das preocupações da comunidade.

Aulas de formação pouco frequentadas

A autarquia portuense organizou aulas de formação para a comunidade cigana, no sentido de a educar para viver nas habitações sociais. Vítor Marques, presidente da União Romani Portuguesa, defende que a formação devia ser ministrada por pessoas com ligações à comunidade, porque “os técnicos dão formação ao nível da sua própria cultura”.

“As pessoas, quando são tiradas de espaço abertos para espaços fechados, devem, obviamente, ser preparadas para lidar com esses espaços, mas devem ver as suas especificidades culturais respeitadas”, explica.

O presidente da União Romani critica a actuação da Câmara do Porto, que, no entender de Vítor Marques, devia ter procedido à formação antes do despejo e porque pretende “colocar as pessoas numa cultura maioritária com a qual elas não se identificam”.

“Os ciganos da comunidade do Freixo têm que deixar de viver como ciganos”, diz Inês Leite. “Nós achamos que eles não precisam de ter este curso para saber como se vive num prédio. Estas pessoas mantêm os seus bens e os seus espaços limpos, estão incluídas na sociedade, têm boas relações de vizinhança com a maior parte das pessoas com quem viviam aqui no Freixo”, sustenta.

Higiene, saúde, doenças sexualmente transmissíveis, limpeza, educação dos filhos, como cozinhar, boa vizinhança são algumas das temáticas abordadas nas aulas. “Mostraram um excerto do “Pátio das Cantigas” em que está um vizinho aos berros e supostamente é aquilo que eles não devem fazer”, diz Inês.

“Só falam, falam, falam e a gente não percebe nada”, diz Prefeita Santos. “É para a gente saber como é que temos que fazer nas casas e essas coisas. A gente está lá e até dá sono”, acrescenta.

Cerca de 10 a 15 pessoas vão todos os dias às aulas, dadas na Rua de Bonjóia. Para Inês Leite, “o curso não enquadra muito bem as especificidades culturais que esta comunidade tem e que tem direito a ter. É natural que mais cedo ou mais tarde venham a desistir de o frequentar”.

Francisco Machado só foi duas ou três vezes às aulas, porque “o que eles ensinam a gente já sabe”. “Formação já temos, não precisamos de mais”, afirma.

As aulas não são obrigatórias, mas Inês Leite diz que foi feito um levantamento das pessoas que vão ao curso. “Espero que não haja repercussões em termos do alojamento depois. Porque o que foi dito na comunicação social antes do despejo foi que estas pessoas, durante este período de 60 dias, seriam avaliadas. Espero que este curso não sirva para as avaliar”.

Inês Leite diz mesmo que “a Câmara do Porto está a precisar ela própria de um curso sobre como enquadrar diferentes culturas e diferentes formas comunitárias”.