A península da Crimeia é historicamente um território de disputa. Neste momento, alberga um dos três grandes portos da esquadra russa e é igualmente a saída da Rússia para os mares Negro e Mediterrâneo. No entanto, o historiador Manuel Loff acredita que a disputa entre Ucrânia e Rússia por esta península é mais do que um conflito estratégico: “Esta é uma questão histórica, uma questão étnica, nacional. Esta obsessão ocidental, dos media e diplomacias ocidentais, em ver o que está a acontecer na Crimeia como meramente um golpe do governo de Moscovo para preservar determinados interesses geoestratégicos, é um tiro completamente ao lado”, garante.

Possível efeito de contágio

O especialista Ivo Sobral alerta para o facto da tensão na Ucrânia poder contribuir para o proliferar de uma série de movimentos nesta região entre a Europa de Leste e Ásia Central. “Em particular na Moldávia e Roménia, pequenos países que têm o fantasma dos tanques russos que dominam o seu território. Com esta movimentação russa, a Moldávia é praticamente atirada ainda mais para a Zona Euro. O país iria novamente começar a fazer quase fronteira com a Rússia através da Crimeia”, explica.

Para Ivo Sobral, especialista em relações internacionais, o caso remonta à II Guerra Mundial: “A Rússia olha para aquela zona como um sítio onde russos morreram durante a sua história. Por essa razão, é muito fácil justificar essa mesma anexação em fundamentos históricos, muito fáceis de usar em propaganda”.

A intenção da Crimeia de realizar um referendo reflete os interesses de cerca de 70% da população russa na península que deseja a anexação soviética. Ainda assim, Ivo Sobral alerta para a complexidade do conceito estado-nação aqui evocado. “A Crimeia é igualmente a terra de cerca de 300 mil tártaros, uma população que tinha sido expulsa pelo governo de Estaline para fora da península. São cerca de 12% a 15% da população e têm uma posição muito forte contra a anexação russa”.

Os dois analistas estão de acordo em relação ao provável futuro da península. Manuel Loff descura um conflito armado e acredita na anexação da Crimeia: “É provável que a Ucrânia retire as suas tropas e a sua marinha do território da Crimeia e que ela fique uma espécie de estado suspenso no direito internacional, alimentado por Moscovo. Formalmente a Rússia dirá que não é seu território, como aconteceu na Ossétia do Sul”.

Ivo Sobral partilha que também a anexação da Crimeia poderá representar o início de um desenho estratégico definido há alguns anos por Moscovo que visa a criação de uma Rússia mais forte interna e externamente. “Desde a queda da União Soviética, temos uma ação concreta da parte de Moscovo em ‘re-preparar’ um novo modelo de integração de uma série de países que possam propor um contrapeso à comunidade europeia”.

Estados Unidos e Europa em pés de lã

“Os EUA estão numa posição bastante difícil, atualmente. Têm uma política nova que corta com o passado em relação a questões militares e intervenções estrangeiras”, afirma Ivo Sobral. “Os EUA tem um interesse económico muito menor nesta região. O seu interesse é mais geoestratégico, do ponto de vista militar”, acrescenta Manuel Loff que considera este um problema muito mais europeu do que americano.

O papel de Portugal

Razões de estado podem explicar o papel neutro até então adoptado por Portugal no conflito. Ivo Sobral considera que o país “tem excelentes relações com a Rússia” e qualquer atividade contra os soviéticos “seria um tiro no pé em termos de relações económicas”. Entre os vários acórdãos vigentes, o especialista destaca os atuais helicópteros Kamov da proteção civil, de origem russa, essenciais para Portugal. “Precisam de manutenção, peças e recordo até no passado que se falou numa cooperação mais avançada no combate aos fogos florestais. A Rússia tinha uma série de aviões bombardeiros de água que poderia vender ou emprestar a Portugal e isto é cooperação de alto nível no sector militar que seria completamente destruída”, explica.

Por estes dias, tem sido discutida a impossibilidade de uma posição europeia conjunta perante o conflito. Loff considera normal a inexistência dessa posição, visto que “a UE não tem uma infinidade de políticas comuns”. Quanto a possíveis sanções, o historiador acredita que a Europa tentará negociar com os dois lados: “Acho as grandes corporações vão fazer pressões sobre os governos no sentido de que não se imponham sanções e se possam fazer negócios com os dois lados. Que é, habitualmente, o cinismo do próprio capital”.

Os “holocaustos insidiosos” do passado e os mais recentes “acordos com pendente negocial sempre favorável a Moscovo” fomentam o desejo na população ucraniana de independência do fantasma soviético, personificado em Yanukovtich. “A população ucraniana começou a olhar para o ocidente. Há um mito europeu dentro do imaginário da população ucraniana onde se vive bem, existe prosperidade e respeito pela democracia e pelos direitos”, explica Ivo Sobral.

As próximas semanas serão decisivas para perceber como se vai desenvolver a “crise da Crimeia”, iniciada em fevereiro de 2014, fruto do movimento pró-europeu Euromaidan, que remonta a novembro de 2013. “O problema agora é saber se a unidade do resto da Ucrânia se pode manter”, perspetiva Loff.