Luís Fernandes é professor na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, mas, “num mundo à parte”, responde ao nome João Habitualmente, o seu “alterego” poeta. Esta quinta-feira, o Teatro Campo Alegre encheu-se para assistir a mais uma sessão do ciclo poético “Quintas de Leitura”, dedicada ao mais recente livro do autor: “Poemas físicos da frente para a retaguarda na curva interior da estrada”.

Ainda faltavam dez minutos para a hora marcada e à porta do auditório já se amontoavam espetadores. Falavam alto e do programa do mês do Teatro Campo Alegre. Assim que as portas se abriram, a enchente deixou poucos lugares vagos na sala. O público era bastante homogéneo: muita gente mais velha, acima dos 50, e poucos jovens.

Foi um vídeo de Manuel Cruz que abriu a sessão, com a declamação do poema “À minha maneira”, de João Habitualmente, a ocupar toda a tela. Segundos depois, Alexandre Duarte entra no palco para executar um número no tecido acrobático. O artista circense, da companhia Erva Daninha, desempenha uma performance impetuosa, repleta de dramatismo e contorcionismo, acompanhada por uma música densa. Quando desce das alturas, deslizando sob o tecido vermelho, e a música desvanece, a sala está imersa num silêncio tal que é possível ouvir a respiração de Alexandre.

A entrada de João Habitualmente e os restantes convidados fez-se de forma inesperada. O palco abriu-se para o exterior e dois carros vermelhos conduziram os protagonistas da noite até ao centro do palco, com a música “Broken Bones”, de Mark Knopfler, a soar no fundo.

Num palco preenchido por sacos de cereais e paletes de madeira, acomodam-se Sandra Salomé, Isaque Ferreira, Rui Spranger, B Fachada, Carlos Tê e o protagonista da noite, João Habitualmente.

“Os computadores tiram algo aos poetas”

É lido um extenso poema a três vozes e Carlos Tê lança a primeira pergunta ao autor. Também as questões do letrista têm poesia dentro. A conversa começa pela “nostalgia de ruralidade” e pelo amor ao “Portugal do interior”, inerente aos trabalhos de João e de Carlos. “A literatura, para mim, é, também, ir buscar raízes”, explica João.

A conversa segue, descontraída e sem rumo definido, e pequenos devaneios sobre a pronúncia de palavras e o significado de outras despoletam o riso do público a cada minuto: “Tôrpe ou tórpe?”, “Âmbar não é aquela coisa em cima da cabeça das baleias? Ou é aquilo em que os mosquitos ficam presos?”.

Questionado acerca do seu processo de escrita, João confessa a saudade que tem do papel, que um problema de visão o obrigou a abandonar. “Os computadores tiram algo aos poetas”, diz, falando da importância do “rasurar”, da destruição na construção criativa. Mas a poesia, admite, é algo em que não se alonga: “Um poema é uma coisa que não trabalho muito, sai de uma ideia que não sei de onde vem. Pode fazer-se quase de rajada e depois deixá-lo assim”. E vai mais além. Recusa que a poesia nasça apenas em determinadas elites: “A poesia é uma coisa que nos acontece a todos, mas que pouca gente passa para a escrita”.

Bob Dylan e a atribuição do Nobel também vêm à baila: “A nossa geração não tem uma marca a deixar, exceto a forma como se hibrida com a música”, diz João, referindo-se aos escritores da sua época, que viveram numa altura sem “-ismos”.

A sessão continua através das vozes de Sandra Salomé, Isaque Ferreira e Rui Spranger, que declamaram seis poemas de João. “As raparigas da aldeia” foi um deles, que desencadeou o riso tímido da plateia.

“Vou fazer uma música do vosso tempo”

Só depois é que B Fachada se levanta, pela primeira vez na sessão, para ir ao baú e interpretar “Joana Transmontana”, do álbum “Há Festa na Moradia”, de 2010.

A declamação da obra que dá nome à sessão vem a seguir – “Pensamento Operário”, um poema extenso, de quatro páginas, e que tem sequela, também ela lida na sessão.

B Fachada volta ao centro das atenções, desta vez com “Há festa na moradia” e, outra declamação depois, interpreta “Mana”, de 2012. “Vou fazer uma música do vosso tempo”, diz, rindo. E inicia os primeiros acordes de “Os Vampiros”, de Zeca Afonso. Com a sua extravagância natural, interpreta a música, exaltado. Chega a perder-se a meio, mas retoma.

Ao fim de hora e meia, B Fachada anuncia o fim da sessão e surpreende toda a gente ao interpretar “Amor de Água Fresca”, da Dina. A excentricidade do artista despoleta o riso da plateia, mas puxa a cantoria geral em segundos. Os convidados da noite conseguem “arrastar” alguns espectadores para dançar ao som do hit dos anos 90 e dão fim à sessão de quinta-feira.

Artigo editado por Rita Neves Costa