O diretor dos Serviços de Ação Social da Universidade do Porto, João Carvalho, fala de uma “situação dramática” nas contas dos SASUP gerada pela pandemia. As receitas previstas no orçamento deste ano devem ter uma quebra de 80%. Isto “se tudo correr bem”, caso contrário o problema poderá agravar-se ainda mais. O responsável garante que os serviços vão continuar em funcionamento até ao final do ano, sempre em conformidade com as decisões da Direção-Geral da Saúde (DGS) e da Universidade do Porto (UP), mas admite ter de recorrer a saldos de gerência para tapar o “buraco orçamental”. “É seguramente a situação mais crítica que já vivi como dirigente dos serviços”, sintetiza.

JPN – O Dr. João Carvalho regressou aos SASUP em 2018, depois de um pequeno período de interrupção. Nessa altura não estaria a pensar que iria ter um desafio pela frente como aquele que enfrentaram os SASUP durante este ano.

JC – Desta natureza não, nunca imaginei. Aliás, dificilmente se imaginaria uma situação desta natureza. Eu conheço muito bem os serviços, dirigi-os durante um período ininterrupto de 27 anos. Tive um interregno de quatro anos, mas mantive-me sempre interessado nestes assuntos. Nunca imaginaria que chegássemos a esta altura com estas contingências todas de funcionamento que temos e que não são fáceis de ultrapassar, mas que, estou convicto, com resiliência, aproveitando todas as boas-vontades, acho que vamos conseguir ultrapassar.

JPN – Pode fazer-nos um balanço de como correu o segundo semestre do ano letivo transato.

JC – O segundo semestre do ano transato não correu mal, porque tivemos praticamente a atividade encerrada. Assim que a universidade encerrou as instalações, a atividade presencial [em março], nós também encerrámos parte dos serviços, nomeadamente os de alimentação. Os serviços de alojamento ficaram em funcionamento, aliás, ficaram todas as residências abertas – do ponto de vista da racionalidade não se justificaria fechar, dado que algumas ficaram com uma taxa de ocupação extremamente reduzida e os custos fixos de funcionamento são exatamente os mesmos. Optámos por mantê-las todas abertas para garantir todas as condições de segurança a todos os estudantes que não conseguiram deslocar-se para junto das famílias, por variadíssimas razões.

Quanto aos serviços de refeições, fechámos praticamente todas as cantinas. Só mantivemos abertas a cantina de Letras e a cantina de Engenharia numa perspetiva de apoio social a quem não tivesse outro tipo de recurso. Implementámos desde o início o serviço de take-away. O estudante levava a refeição para casa ou consumia-a no local, mas preferencialmente levava-a para casa. Foi a indicação que demos a essas unidades.

No que respeita ao apoio médico e psicológico, implementámos consultas à distância que funcionaram muito bem. Não houve grande perturbação na prestação de serviços de saúde e de apoio psicológico, embora tivéssemos notado um aumento da procura até bastante e significativo, sobretudo nas áreas da psicologia e da psiquiatria. Mas como tínhamos reforçado o grupo de técnicos nessas áreas, conseguimos praticamente dar resposta a todas as solicitações que tivemos.

Do lado das bolsas de estudo, a atividade pode ser desenvolvida remotamente, dado que o processo de atribuição de bolsas de estudo é suportado por uma ferramenta informática alojada na Direção-Geral do Ensino Superior, de maneira que os nossos técnicos de serviços social, para fazerem o acompanhamento do processo de atribuição de bolsas de estudo, bastava terem ligações à internet e conseguiam à distância responder a todas as necessidades relacionadas com a atribuição das bolsas. Daí também não ter havido grandes perturbações.

JPN – Houve um aumento dos pedidos de bolsas?

JC – Notou-se no fim do ano, nos meses de abril e maio, algum aumento do pedido de bolsas de estudo relativamente a anos anteriores e também um aumento significativo de pedidos de revisão dos montantes atribuídos, devido a situações decorrentes da COVID-19 – situações de desemprego, situações de alteração da condição socioeconómica do agregado e que, nos termos regulamentares, podem dar origem a um processo de revisão do contrato atribuído. De facto, notou-se um aumento desses pedidos. Todos eles foram atendidos atempadamente.

Autonomamente, a Universidade criou um fundo de apoio. Mobilizou recursos financeiros próprios na ordem dos 170 mil euros que colocou à disposição dos estudantes que viram as suas condições socioeconómicas degradadas.

Portanto, situações de alteração da condição socioeconómica diretamente relacionadas com a COVID-19 puderam ser avaliadas e atendidas através deste fundo. Foi um instrumento interessante que ajudou muitos estudantes nacionais e também internacionais.

João Carvalho Foto: Miguel Marques Ribeiro

Tínhamos alguns estudantes de mobilidade ou estudantes internacionais que frequentavam a universidade e que tinham alguma fonte de sustento em trabalho que faziam, nomeadamente na hotelaria. Ora, como se sabe, logo no início da COVID-19 houve muito desemprego, muita suspensão de prestação de serviços e esses estudantes viram-se numa situação complicada do ponto de vista económico e recorreram em massa a este fundo.

JPN – Quantos estudantes foram apoiados por esse fundo de emergência?

Foram mais de 350 estudantes que receberam este apoio. O subsídio tinha um montante único de 350 euros e só podia ser atribuído uma única vez. Foi um instrumento para poder acorrer de imediato a essas situações de estudantes que, vendo a sua fonte de rendimento suspensa, tinham que continuar a pagar as rendas de casa, ou a renda do quarto que estava atrasada e não tinham outro meio de o fazer. Portanto, destinou-se a dar um balão de oxigénio para estes estudantes poderem refazer ou repensar as suas vidas face à situação que viviam.

JPN – Este ano vai haver um aumento do número de alunos inscritos na universidade, vai também aumentar o teto de referência para atribuição das bolsas…

JC – Sim, o valor de referência vai ser aumentado, o que permitirá que mais estudantes sejam abrangidos. É uma medida positiva. Aliás, já se impunha há bastante tempo rever o valor de referência para atribuição da bolsa, porque de facto estava a degradar-se bastante o número de estudantes que eram elegíveis para efeito de atribuição de bolsa de estudo com base no critério socioeconómico. Estava a decrescer porque o valor já se mantinha igual há alguns anos. Impunha-se que se atualizasse para incluir no sistema estudantes cujos rendimentos estão aquém daquilo que é a média dos custos de frequência nas instituições do Ensino Superior.

JPN – As cantinas reabriram ao público na totalidade. Como é que está a decorrer o arranque neste início de ano letivo?

JC – A adesão não está a ser muito significativa, mas também estamos no terceiro dia de abertura da atividade letiva presencial. A afluência às cantinas tem sido muito reduzida. Há poucos estudantes ainda na universidade. Notamos a presença de poucos estudantes nas instalações das diversas faculdades. Supomos que, com a abertura do ano letivo aos estudantes do primeiro ano, ou seja, no início do mês de outubro, haja mais frequência de estudantes e que a procura venha a aumentar. Nós reduzimos também a nossa capacidade de serviço em cerca de 75% para criarmos as condições de segurança para os estudantes e também para os trabalhadores. Mas nestes dias, a adesão tem sido muito limitada, quase que não se justifica mantermos as unidades abertas, mas vamos mantê-las abertas na expectativa de que os estudantes sintam confiança e tomem as suas refeições nas cantinas.

JPN – Pode falar-nos de algumas medidas?

JC – Criámos nas salas de refeição os distanciamentos. Nas mesas onde antes tomavam a refeição quatro estudantes, neste momento toma um estudante. Criámos medidas de higienização dos espaços. Reforçámos a frequência com que higienizamos os espaços. Sempre que o estudante se levanta, nós higienizamos o local onde tomou a refeição. O estudante, querendo higienizar o lugar onde vai tomar a refeição, também tem meios para o fazer. Nos locais de acesso às unidades de alimentação temos os desinfetantes. Eliminámos os secadores de mãos. Temos toalhetes de mãos em todos os lavabos. Criámos circuitos dentro das salas de refeição de modo a evitar os cruzamentos de estudantes. É obrigatório o uso de máscara dentro das instalações à exceção do momento em que tomam a refeição.

Criámos distanciamentos nas linhas de self-service. O nosso pessoal foi submetido a ações de formação no sentido de respeitar todo o quadro higiénico-sanitário inerente ao serviço de refeições. Privilegiámos os pagamentos sem ser em dinheiro. Cumprimos genericamente tudo aquilo que está aconselhado, que faz parte das recomendações quer da DGS quer da DGES, no que respeita às regras de segurança e higiénico-sanitárias.

Vista do pátio interior da Residência do Campo Alegre I.

Vista do pátio interior da Residência do Campo Alegre I. Foto: U.Porto

JPN- E quanto ao alojamento?

JC- Fizemos exatamente a mesma coisa. Os quartos duplos que não tinham um distanciamento de dois metros entre cabeceiras foram transformados em quartos individuais. Reforçámos as medidas de higienização das áreas comuns e das casas de banho. Disponibilizámos materiais de higiene e limpeza para os estudantes fazerem também a higienização dos espaços caso não pretendam que sejam os próprios serviços a fazê-lo. Demos também formação às pessoas para lidar com esta situação. Julgo que, do ponto de vista das condições de segurança, os estudantes poderão estar confiantes de que os serviços que lhes estão a ser disponibilizados cumprem com aquilo que são as recomendações das autoridades de saúde. Mas também da parte deles, dos comportamentos que vierem a ter relativamente ao uso que fazem das instalações e ao distanciamento social, dependerá muita coisa. Os estudantes têm um papel importantíssimo nesta matéria.  Não temos ninguém a vigiar constantemente os comportamentos que têm no dia a dia, até porque a maior parte do tempo estão sós nas residências. Não temos capacidade para os fiscalizar. Esperamos e estamos convictos que eles irão colaborar no sentido de manter as condições que salvaguardem a sua saúde, dos trabalhadores dos serviços e das outras pessoas com quem eles convivem no dia a dia.

JPN- Aplicadas as regras da DGS, a Universidade do Porto, em termos de oferta de residências universitárias, perdeu 145 camas. A solução encontrada no imediato para resolver o problema do alojamento são os protocolos que o Ministério está a estabelecer com pousadas da juventude, alojamentos locais e hotéis. Que opinião tem sobre esta solução?

JC – É uma medida positiva que poderá ajudar a colmatar esta diminuição que tivemos nas residências universitárias. Não sei qual vai ser a adesão da parte do alojamento local, ou dos hotéis, ou do mercado em geral de alojamento para estudantes universitários, mas penso que estão lançadas as bases para que se possa alargar a oferta ao alojamento de estudantes. De qualquer forma, muitas das camas que tínhamos alocadas aos estudantes internacionais vão ficar disponíveis, pois eles eventualmente não regressarão, não virão este ano. Iremos canalizá-las para o alojamento dos estudantes bolseiros. Também está em curso, juntamente com a Câmara Municipal do Porto e a Federação Académica do Porto, através do Programa Renda Acessível, algo muito semelhante ao que a DGES acabou de lançar: intermediar com os proprietários do alojamento privado a disponibilidade de camas para os estudantes, havendo aqui uma pequena nuance: os privados que aderirem têm acesso a benefícios fiscais.

JPN – O complemento do alojamento de 263 euros parece-lhe suficiente para garantir uma habitação condigna para os estudantes?

JC – Os preços médios do mercado de arrendamento no Porto são um pouco superiores a isso, mas suponho que o mercado se irá ajustar agora relativamente à oferta. Os preços terão tendência a descer. Parece-me um valor razoável e suponho que seja bastante atrativo, não só para os proprietários do arrendamento como também sustentável do lado do Estado que vai financiar esses alojamentos.

JPN – Com a pandemia há menos receitas geradas pelas valências que são geridas pelos SASUP. Já há uma estimativa de quanto será o valor dessa diminuição?

JC – Sim, temos uma estimativa. A situação é dramática. Do ponto de vista económico, estamos perfeitamente desequilibrados, na medida em que o orçamento dos serviços com origem nas transferências do Orçamento de Estado cobre apenas os custos com pessoal. Os SASUP, mercê de medidas que entretanto foram tomadas, relacionadas com a gestão dos serviços de alimentação, garante apenas 30% da alimentação em gestão direta. 70% das refeições servidas são feitas em regime de concessão, através da prestação de serviços de refeições confecionadas. Não temos um custo fixo ou um quadro de pessoal alocado a esta atividade muito significativo, pelo que esta quebra de receita não nos atrapalhou muito, porque as verbas que vêm diretamente do Orçamento de Estado continuam a ser suficientes para pagar salários.

JPN – Não há postos de trabalho em risco?

JC – Não, não há postos de trabalho em risco, mas tudo o resto está em risco. Tudo o resto da despesa corrente está risco: o pagamento da água, da eletricidade, do gás, tudo o que são custos de funcionamento estão suportados na receita própria e a receita própria neste momento está quase reduzida a zero. Porque as cantinas, que são a nossa principal fonte de receita, estiveram fechadas este tempo todo. O alojamento esteve reduzido a um terço da sua capacidade. As receitas próprias neste momento não cobrem os custos de funcionamento.

JPN – Estamos a falar então de uma diminuição de quanto?

JC – Na ordem dos 80%. Vamos chegar ao final do ano com um buraco orçamental que teremos que cobrir, eventualmente através do recurso a saldos de gerência.

JPN – Quanto é que isso é, 80%?

JC – Vamos chegar ao fim do ano com um défice orçamental na ordem dos 700 mil euros. Isto correndo bem estes últimos três meses: se retomarmos a atividade da alimentação na percentagem que estamos a contar e se as residências encherem, caso contrário esse défice poderá ser superior.

Estudantes da FDUP sentem-se lesados face a outro no país.

Os SASUP aprovaram 5.092 bolsas no ano letivo passado. Este ano, espera-se um aumento de pedidos e atribuições. Foto: Hugo Moreira

JPN – Isso pode afetar a atividade dos SASUP no futuro?

JC – Neste momento, não equacionamos esse cenário. Confiamos que a Reitoria nos valha caso venha a ser necessário reforçarmos o orçamento para pagar os custos de funcionamento. De resto, enquanto tivermos saldos de gerência iremos mobilizá-los para fazer face ao normal funcionamento dos serviços. No próximo ano, se não houver de facto uma alteração do estado que vivemos neste momento a situação vai tornar-se complicada. Vai ser muito difícil conseguirmos sobreviver com o orçamento que temos atribuído.

JPN – Esta é a pior situação que já viveu enquanto diretor do SASUP?

JC –É seguramente a situação mais crítica que já vivi como dirigente dos serviços. Ao longo destes 40 anos que tenho de serviço tivemos momentos complicados, difíceis, mas com maior grau de previsibilidade relativamente ao que iria acontecer ou às medidas que poderíamos vir a tomar. Neste momento, as coisas são muito imprevisíveis. Agora é assim, amanhã poderá ser de outra maneira. Penso que neste momento estamos melhor providos de modo a poder ultrapassar estes problemas, sem grandes impactos. Recordo-me que no início da minha atividade tínhamos cantinas a funcionar em vãos de escada, tínhamos unidades de alojamento muito precárias e com pouca capacidade de oferta face à procura.

JPN – É precisamente nestas situações de crise que a atividade dos Serviços Sociais é mais determinante. Há alguma medida que queira destacar das que estão em vigor ou que tenha sido posta em prática nos últimos meses?

JC – Foi muito importante o Fundo de Emergência que a Universidade criou, porque tínhamos estudantes muito aflitos para pagar a renda da casa e que se não a pagassem o senhorio certamente os iria por fora do alojamento, portanto, essa foi uma medida importantíssima, a mais importante que se criou no âmbito da pandemia.

JPN – Referiu há pouco a linha de apoio psicológico. Sabemos que a pandemia é também altamente desestablizadora, que cria situações de ansiedade nas pessoas. Essa também é uma preocupação dos SASUP?

JC – Sim, claro. A saúde mental dos estudantes é fundamental e temos atendido sempre que possível a situações de crise que nos aparecem. Procuramos sempre dar resposta célere e lidar com essas situações para que elas se mantenham controladas. Isso tem sido conseguido. A procura das consultas de psicologia tem aumentado. O serviço de apoio médico e psicológico tem funcionamento muito bem, mesmo a nível de consultas por meios remotos. Tem-se criado até alguma eficiência com este tipo de consulta.

JPN – E quanto aos espaços E-learning?

JC – A disponibilidade de lugares é agora bastante mais reduzida para assegurar o distanciamento social e as condições de segurança, mas continuam a ser espaços muito procurados e muito frequentados. É uma atividade de apoio ao ensino, mais do que uma atividade de apoio social que nós assumimos e que vamos manter aberta, apesar destes condicionalismos que decorrem da pandemia.

Artigo editado por Filipa Silva