O jornalista conversa com o JPN sobre o seu novo livro “Revolução inacabada. O que não mudou com o 25 de Abril” e sobre os temas que trata na obra: o machismo na justiça e o elitismo na política.

João Pedro Henriques é jornalista do “Diário de Notícias”. Foto: D.R.

“Revolução inacabada. O que não mudou com o 25 de Abril” é o livro mais recente de João Pedro Henriques, jornalista do “Diário de Noticias”. Na obra, o autor explora dois dos temas que, na sua visão, continuam presentes na sociedade portuguesa depois da revolução: o elitismo na política e o machismo na justiça.

Em entrevista ao JPN, o autor conta que o livro surgiu do desejo de “fazer qualquer coisa mais do que jornalismo, neste contexto dos 50 anos do 25 de Abril”, diferente do estudo, “já bem-feito”, do que se transformou com a revolução. 

Decidi fazer sobre o que não mudou, sobre as características da sociedade portuguesa que transitaram para a democracia e que hoje permanecem ativas. Comportamentos presentes na sociedade portuguesa no tempo da monarquia e da república, que continuaram na ditadura e na democracia”, expande. Após ter a ideia do livro em maio de 2022, João Pedro Henriques contactou a Fundação Francisco Manuel dos Santos que aceitou editar o livro na sua coleção de “Retratos”, em fevereiro deste ano. 

O autor frisa que a intenção da obra não é “diminuir as conquistas de Abril”. Também sublinha que não quer que o livro seja visto como “conservador”: “Estou profundamente agradecido aos capitães de Abril pela revolução, foram homens extraordinariamente corajosos. E estou muito agradecido a todas as pessoas que desde então construíram um Portugal democrático, onde se ergue um estado social e uma providência universal. Há mais coisas que mudaram do que coisas que não e o que se alterou foi para excecionalmente melhor. Quando as pessoas dizem que isto está pior do que antes, é porque essas pessoas não fazem a mínima ideia de como era antes”, analisa o autor.

No entanto, considera que os problemas que perduram devem ser estudados. “Para proteger a herança do 25 de Abril, é importante falar do que ainda precisa mudar, continuar a lutar por mais e não descansarmos à sombra de tudo o que foi conquistado”, afirma o autor. 

João Paulo Henriques é jornalista da área de política do DN e explica que escolheu os dois temas por se sentir mais “à vontade”: “[Sobre o elitismo na política], sei das pessoas na história política portuguesa e conheço especialistas sobre o tema, de outros trabalhos no jornalismo. Em relação ao machismo na justiça, há alguns anos, fiz um artigo de opinião em que reparei que havia um grande problema com o baixo índice de condenações judiciais nos crimes de violência sexual, uma característica que se mantém hoje em dia. Contei uma história concreta que aconteceu – que está também no livro. Esse tópico interessou-me e depois fiquei mais atento à questão da violência doméstica e a taxa de condenações ser muito baixa.”

Conservadorismo na justiça 

A justiça e as leis melhoraram bastante desde a revolução, mas as mulheres continuam a ser assassinadas nos mesmos números que há dez anos”, afirma o autor. Também salienta que, ainda que hoje as mulheres sejam maioritárias em vários setores da justiça, o machismo no meio permanece e tem consequências graves.

Dados da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, citados no livro, indicam que o número de ocorrências por violência doméstica mantiveram-se iguais nos últimos anos. No entanto, segundo o Relatório Anual de Segurança Interna de 2022, o número de violações está a aumentar

Em contraste com estes dados e de acordo com um relatório do Ministério da Justiça encontrado no livro, a percentagem de pessoas condenadas em 2021 por homicídio conjugal, face ao total de homicídios, foi apenas de 13,9%, um ponto percentual mais do que em 2007.

“Revolução Inacabada” explora este paradoxo causado pelo elevado número de mulheres na justiça e a falta de atenção aos crimes contra a mulher, assim como as falhas na lei que permitem que as agressões não sejam punidas. Ao JPN, João Pedro Henriques explica: “O que aconteceu na magistratura foi que as mulheres, quando entraram, em vez de afirmarem um modo de ver e uma atenção feminina, digamos assim, aos crimes que sofrem as mulheres – e isto está estudado – muitas vezes ‘copiaram’ o que foi feito pelos homens. Tanto assim é que há sentenças aflitivas do ponto de vista do conservadorismo machista, ainda hoje isso acontece, que são sentenças da autoria de mulheres.” 

Não obstante, o jornalista aclara que não pede “milagres” das mulheres na justiça no capítulo dedicado ao tema: “Não se introduziu uma visão feminina. Não quero mais mulheres na justiça, porque elas introduzem mais competência, quero mais mulheres na justiça, porque quero que ela seja um espelho minimamente sério e rigoroso da sociedade portuguesa. Não é justo que eu exija mais às mulheres do que aos homens. Se os homens têm o direito de ser incompetentes, as mulheres também.”

“Achamos normal que haja comunidades que sejam, tenham sido e nunca deixem de ser pobres.”

Portugal é o quinto país mais desigual na UE, de acordo com um relatório da Comissão Europeia. Segundo o livro de João Paulo Henriques, esta desigualdade social é causada, entre outras razões, pelo elitismo presente na política.

“Há uma falta de sensibilidade da classe governante ao problema da pobreza, porque os titulares dos cargos provêm, muitas vezes, das elites académicas e não têm e nunca tiveram convivência com a pobreza. Os partidos recrutaram principalmente nas elites liberais, portanto, estão desligados da sociedade portuguesa. Se temos um governo cheio de pessoas que não têm nenhuma espécie especial de sensibilidade às questões da pobreza, é natural que a prioridade dada ao combate da pobreza seja menor”, explica.

O autor afirma que a empatia dos políticos relativamente ao tema da pobreza é crucial para a resolução deste problema. Como exemplo, dá o caso do ex-primeiro-ministro António Guterres. Em 1967, o antigo chefe do governo foi mobilizado por uma organização católica para ajudar, com outros jovens, as pessoas afetadas pelas cheias de 1967 que destruíram bairros pobres em Lisboa.

“Nestes jovens, houve uma revelação de consciência política. Perceberam que havia um país muito diferente daquele que eles frequentavam entre as suas casas e o Instituto Superior Técnico, um país muito pobre que o regime escondia. Este confronto do António Guterres com a pobreza tornou-o uma pessoa particularmente atenta às questões de desigualdade e isso teve consequências nas políticas que desenvolveu como primeiro-ministro. As ações dele resultam diretamente da empatia com o problema. A empatia é meio caminho andado para resolver um problema, a falta dela ajuda a que este se perpetue”, analisa o jornalista ao JPN.

No livro, João Pedro Henriques explica que a falta de atenção do governo à pobreza também está enraizada numa característica da sociedade portuguesa: Os portugueses, eu incluído, não se indignam com a desigualdade e a pobreza. Pensamos que é normal que haja comunidades historicamente pobres. Achamos normal que haja comunidades que sejam, tenham sido e nunca deixem de ser pobres. Pensamos que faz parte da vida que a pobreza se perpetue. Há sociólogos que dizem que isto é normal em sociedades que foram escravocratas, que historicamente tiveram grande parte do seu funcionamento assentes na escravatura. A escravatura está assente no princípio que há pessoas que estão em baixo, enquanto outras estão em cima e que, de outra forma, não funciona.”

Outros temas que a ditadura deixou em aberto

João Pedro Henriques ainda salienta que há outras características da sociedade portuguesa que foram continuadas da ditadura para a democracia. Nomeadamente, a importância da igreja e do futebol.

O peso da igreja hoje na ação social é maior do que no tempo da ditadura e a razão é relativamente simples. Com o 25 de Abril, foram criados sistemas universais de saúde e segurança social, mas o estado não criou músculo financeiro para sustentar esta universalização. De certa forma, a igreja tapou insuficiências do estado e por isso cresceu na ação social, nomeadamente”, explica.

Já sobre o futebol, justifica que, na ditadura, “tinha muito peso no espaço público, porque havia censura e as pessoas não podiam falar de política publicamente porque era perigoso. O futebol era para isso.” No entanto, critica que, na atualidade, “o peso do futebol no debate público” seja “excessivo”

O autor explica que a forma como o futebol é debatido degrada o debate político: “Já gerou um líder político, o André Ventura. Agora não é um instrumento de alienação, mas uma fonte de uma coisa muito perigosa que está a entrar na vida política portuguesa, que é que a história da verdade não conta e não interessa.

O autor afirma que a “Revolução inacabada” “pode ser o primeiro livro de uma série de outros, que outras pessoas possam querer fazer, sobre o que não mudou na sociedade portuguesa depois do 25 de Abril”. 

Por agora, o autor afirma que este livro é a sua forma de fazer frente aos problemas que a ditadura deixou. “Francamente, não sei se [estes problemas] têm solução, são temas profundos. O meu pequeno contributo é pôr o livro a circular, que as pessoas o leiam e que lhes desperte qualquer coisa”, explica.

O jornalista mantém-se realista sobre o futuro e admite que pensa que está a assistir a um retrocesso nas mentalidades. 

“Há fenómenos, como o racismo e o machismo e a homofobia. Agora parece que as pessoas já não se importam em exibir isso. Antes, havia uma certa vergonha e está a deixar de haver”, opina o autor. “Neste momento, mais do que desejar avanços, estou na fase em que gostava que não se dessem retrocessos no sentido progressista do pensamento português”, concluiu.

Editado por Filipa Silva