A Pfizer/BioNTech anunciou esta semana uma vacina com 90% de eficácia. Dois dias depois, foi a Rússia a garantir que a Sputnik V chega aos 92%. Notícias promissoras num ano em que a investigação por uma vacina contra a COVID-19 segue a ritmo avassalador.

Uma vacina com “90% de eficácia”, sem efeitos secundários graves. A notícia caiu como uma bomba de esperança no espaço mediático internacional, esta segunda-feira, quando a farmacêutica norte-americana Pfizer anunciou ter chegado ao fim da terceira fase de testes clínicos (a última antes do pedido de aprovação pelas autoridades de saúde) com resultados animadores: dos 43.538 voluntários envolvidos, apenas 94 foram posteriormente diagnosticados com COVID-19.

“Os resultados demonstram que a nossa vacina baseada em mRNA [ARN-mensageiro] pode ajudar a prevenir a COVID-19 na maioria das pessoas que a recebem. Isto significa que estamos um passo mais perto de potencialmente fornecer às pessoas de todo o mundo uma descoberta muito necessária para ajudar a dar um fim a esta pandemia global”, afirma o diretor-executivo da Pfizer, Albert Bourla, em comunicado.

Dois dias depois do anúncio, a União Europeia (UE) assinou com a Pfizer/BioNTech um contrato para garantir o acesso à potencial vacina do consórcio. É o quarto contrato da UE – já garantiu acordos com a AstraZeneca/Oxford, a Sanofi-GFK e a Janssen Pharmaceutica NV – e tem conversações adiantadas com mais duas – Moderna e CureVac.

Em Portugal, António Costa já fala de um plano de vacinação: “Não pode ser o salve-se quem puder. Vai ter de ser muito bem organizada, até porque os requisitos de armazenamento são muito complexos e variam de vacina para vacina”, disse em entrevista à TVI no mesmo dia em que a Pfizer comunicou os resultados. “Só pode correr bem, não podemos falhar nisso”, rematou o primeiro-ministro.

Enquanto o presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, congratulou a descoberta, Donald Trump acusou, no Twitter, a Pfizer e a FDA de adiarem o anúncio, para que esta vitória não fosse celebrada durante o seu mandato.

Entretanto, as reservas levantadas pela comunidade científica internacional quanto à Sputnik V não parecem parar a Rússia, que anunciou, dois dias depois da Pfizer, que os resultados preliminares dos ensaios clínicos à vacina mostram que esta tem 92% de eficácia, sem registo de efeitos secundários graves.

Segundo as autoridades russas, estes resultados baseiam-se em dados recolhidos dos primeiros 16 mil participantes nos ensaios clínicos a receberem as duas doses da vacina. O estudo foi realizado após 20 voluntários terem sido diagnosticados com COVID-19 (sem relação com a vacina), tendo-se analisado quantos receberam a vacina ou um placebo. Os ensaios clínicos vão continuar durante mais seis meses.

A Pfizer está a desenvolver uma vacina com a alemã BioNTech. Foto: Pfizer/Facebook

Na corrida global, a Moderna, cuja vacina usa a mesma técnica da da Pfizer, também está em fase adiantada, tendo anunciado esta semana que vai avançar para a análise dos resultados da fase 3, pelo que os resultados de eficácia devem estar também para breve.

Já a vacina que a chinesa Sinovac está a produzir em parceria com o Instituto Butantan, no Brasil, viu suspensos os ensaios clínicos pela direção-geral de saúde brasileira (a Anvisa) na segunda-feira, na sequência da morte de um voluntário. Contudo, dois dias depois da suspensão, a Anvisa autorizaria a retoma dos testes depois de ter analisado a informação disponibilizada pelo consórcio. Sinovac e Butantan negaram desde o primeiro momento que a morte tivesse qualquer relação com os testes.

Por sua vez, os responsáveis pela investigação de Oxford, que integra a farmacêutica AstraZeneca, afirmam que podem vir a saber se a vacina funciona ainda antes do fim do ano.

São boas notícias, mas, segundo o virologista Pedro Simas, falta informação científica detalhada para uma avaliação mais segura do avanço alcançado. Ainda assim, assinalou em entrevista à RTP, “é possível” que as primeiras vacinações ocorram em dezembro.

Janeiro a março: a linha de partida

Foi longo o caminho que nos trouxe até aqui. No início do ano, altura em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) dizia que ainda era cedo para declarar emergência global, iniciou-se uma corrida. Na meta, estava a vacina, bem como o possível regresso à normalidade que ainda não tinha sido perdida.

Como se faz uma vacina?

Vírus inteiros

  • Uso de formas enfraquecidas do vírus, ou de versões inativas do agente que causa a doença.

Proteína da espícula

  • Vacina feita com partes do agente causador da doença – aquelas que o sistema imunitário reconhece.
  • No caso do novo coronavírus, o objetivo é desenvolver uma resposta imunitária à proteína da espícula.

Material genético

  • Introduzem-se na vacina sequências de ADN ou de ARN-mensageiro, que contem a informação para produzir uma proteína do vírus.
  • As células do organismo começam a produzir a proteína do vírus, que tem regiões reconhecidas pelo sistema imunitário, que produz uma resposta.
  • Este tipo de vacinas é mais barato e seguro, uma vez que não contém componentes do agente infecioso, mas ainda não existe nenhuma aprovada para humanos.

Enquanto a China isolava a primeira estirpe do vírus para estudar o seu genoma, formava-se a linha de partida, onde estavam apenas três programas com diferentes abordagens, financiados de imediato pela Aliança para Inovação de Prontidão para Epidemias (CEPI, na sigla em Inglês): as farmacêuticas Moderna e Inovio Pharmaceuticals, nos Estados Unidos da América, e a Faculdade de Química e Biociência Molecular da Universidade de Queensland, na Austrália.

No final de janeiro, a OMS declarou a emergência global e a Rússia começou a trabalhar com a China no desenvolvimento de uma vacina.

No mês seguinte, a doença associada ao novo vírus ganhou o seu tão conhecido nome – COVID-19 -, e mais descobertas se fizeram: na Universidade do Texas, surgiu o primeiro mapa de escala atómica 3D da parte do vírus que ataca e infeta as células humanas, ao passo que os cientistas australianos já o cultivavam em laboratório.

As quatro vacinas candidatas (após o anúncio da Rússia) rapidamente passaram a mais 40, numa altura em que março trouxe consigo o novo normal. Três tecnologias estavam em cima da mesa: vacinas feitas com vírus inteiro, constituídas por proteínas do mesmo, ou contendo material genético viral (como é o caso das propostas da Pfizer e da Moderna).

Nos EUA, enquanto Trump tentava obter o direito exclusivo a uma vacina para o país, ao contactar com a europeia CureVac, foi anunciada a primeira fase de testes em humanos. A China iniciou-a no mesmo mês e a Universidade de Oxford começou a recrutar voluntários. A Rússia, por seu turno, fazia testes em animais.

No final do primeiro trimestre de 2020, eram duas as vacinas já em ensaios clínicos (testes em humanos) de fase I.

Abril a junho: luzes de esperança

A 10 de abril, já mais de 100 programas tinham entrado na corrida e cinco seguiam à frente, já em ensaios clínicos. A Agência Europeia de Medicamentos exigiu uma estratégia coordenada para a busca de uma vacina, ao passo que a Comissão Europeia anunciou o investimento de 300 milhões de euros para a aliança de vacinas.

Foi nesta altura que especialistas em ética começaram a mostrar preocupação com o rigor científico e alertaram a comunidade científica para não ignorem os critérios de investigação.

Contudo, as advertências dos especialistas não impediram Oxford de produzir cerca de um milhão de doses de uma potencial vacina para a COVID-19, sem que os ensaios clínicos já iniciados tenham comprovado a sua eficácia. Ainda no Reino Unido, foi anunciada a criação de um novo grupo de trabalho com o objetivo de apoiar o desenvolvimento de investigações para encontrar a vacina, financiando 21 projetos.

Já as multinacionais farmacêuticas GSK e Sanofi, com um programa integrado, anunciaram que podem ter pronta uma vacina na segunda metade de 2021.

A medicina regenerativa tem a capacidade de, através da manipulação de células e materiais, induzir a regeneração de tecidos e órgãos no corpo humano

Na China, já se falava de uma vacina com alta taxa de proteção em macacos, quando, ainda em abril, Trump deu um ar de sua graça ao sugerir a injeção de lixívia e de outros desinfetantes para curar a doença. Também se iniciou um conjunto de tensões entre o presidente dos EUA e a OMS, com o anúncio de que o país procurava um parceiro alternativo para encontrar uma vacina. Em resposta, a Organização Mundial da Saúde formou uma parceria global para acelerar o desenvolvimento, produção e distribuição de tratamento, diagnósticos e vacinas, que deixava os Estados Unidos de fora.

A 4 de maio, eram 102 as vacinas em desenvolvimento – oito em ensaios com pessoas, cinco das quais envolvendo a China (uma em parceria com a Alemanha). As outras três pertenciam aos EUA (2) e ao Reino Unido (a vacina de Oxford). A China aparentava estar mais perto da meta, visto que a Academia Militar de Ciências Médicas do Exército Chinês, em colaboração com a CanSino Biologics, ia já na segunda fase de ensaios clínicos, e a do Instituto de Biotecnologia de Pequim (a primeira a ser testada em humanos) tinha sido considerada segura, bem tolerada pelo organismo e com boa resposta imunológica.

A verdade é que o segundo trimestre de 2020 foi marcado por pequenas luzes de esperança. Após comprovar a eficácia da vacina num pequeno grupo de macacos, a Universidade de Oxford começou um recrutamento de cerca de 10 mil voluntários para as etapas dois e três de testes. A empresa americana AstraZeneca fez um acordo com a universidade para 400 milhões de doses, 300 milhões das quais asseguradas para os EUA.

Já a Moderna, farmacêutica americana, mostrou resultados preliminares dos ensaios clínicos muito positivos, com a produção de anticorpos em oito pessoas saudáveis após administração da vacina.

Julho a setembro: o registo das primeiras vacinas

A corrida chegou ao terceiro trimestre de 2020 com 163 candidatas a vacina, 23 das quais a fazer ensaios em humanos. Oxford e Sinovac seguiam à frente e a União Europeia fez um acordo para assegurar 300 milhões de doses da colaboração de Oxford com a AstraZeneca, 6,9 milhões das quais destinadas a Portugal, assegurava então o Infarmed.

A chegada do verão trouxe uma redução do número de casos na Europa. Enquanto as restrições eram aliviadas e a OMS avisava que as primeiras vacinações não deveriam acontecer antes do início de 2021, a comunidade científica continuava a fazer progressos.

A vacina de Oxford deu entrada na terceira fase de ensaios clínicos – segura, sem grandes efeitos secundários e com resposta imunitária. Enquanto o Brasil começava a testar a vacina chinesa da Sinovac, a farmacêutica americana Moderna anunciou o começo da última fase de testes no final de julho, que incluía grupos de risco, dizendo que os voluntários vacinados em março reagiram como pretendido.

Na Rússia, o Ministério da Defesa anunciou a conclusão com êxito da fase de ensaios clínicos de uma vacina, após dar alta ao segundo grupo de voluntários no dia 20 de julho. No entanto, o país foi acusado pelo Reino Unido de tentar roubar informação de pesquisas sobre a vacina, através de ciberataques contra universidades, farmacêuticas e cientistas britânicos, norte-americanos e canadianos. Uma situação semelhante ocorreu nos Estados Unidos por volta da mesma altura, com acusações contra hackers chineses.

Sputnik V Foto: Mos.ruCC BY 4.0

Esta situação não impediu a Rússia de registar a Sputnik V no espaço de um mês – foi o primeiro país do mundo a registar uma vacina contra a COVID-19, mas a falta de resultados da terceira fase de testes em humanos levou a OMS a alertar que acelerar o processo não pode comprometer a segurança. Ainda assim, Putin comentou, em conferência de imprensa, que uma das suas filhas foi vacinada com a Sputnik V e anunciou a produção do primeiro lote, que começou, entretanto, a ser administrado a profissionais de saúde e a professores. Nesta altura, o plano do país era lançar uma campanha de vacinação em outubro.

Enquanto a CanSino Biologics se tornava na segunda entidade a registar uma vacina, foi também em agosto que o Mundo ouviu falar do programa da farmacêutica norte-americana Pfizer, em colaboração com a BioNTech, biotecnológica alemã – estava na fase 2/3 de um ensaio clínico, envolvendo cerca de 30 mil participantes. Na Itália, a ReiThera ganhava terreno na corrida, iniciando os primeiros testes clínicos.

Entrámos em setembro com 180 vacinas em desenvolvimento, quatro das quais na fase final de testes clínicos: AstraZeneca, CanSino Biologics, Pfizer e Sinopharm.

Em Oxford, a reação adversa grave por parte de um voluntário levou à suspensão dos ensaios, mas esta situação foi considerada normal e rapidamente retomaram. Enquanto a Sputnik V obtinha bons resultados preliminares, a Johnson & Johnson anunciou testes de fase 3 de uma potencial vacina em oito países: Brasil, Argentina, Chile, Colômbia, México, Peru, África do Sul e EUA.

A Comissão Europeia fez outro contrato, desta vez com a Sanofi, para mais 300 milhões de doses, sendo que o presidente da farmacêutica francesa anunciou que a vacina desenvolvida juntamente com a GSK fica abaixo dos 10 euros e que a Europa a terá ao mesmo tempo que a América do Norte.

A China, por outro lado, admitiu querer começar a vacinar cidadãos entre novembro e dezembro deste ano.

De olhos postos na meta

Após novas conquistas da vacina de Oxford – a produção de uma resposta imunitária significativa em voluntários mais velhos e a esperança de administração em cidadãos adultos no prazo de seis meses -, a Agência Europeia de Medicamentos começou a avaliá-la. Esta foi a primeira revisão contínua de uma vacina para a COVID-19, sendo que podemos vir a saber se a vacina funciona ainda este ano – mas os responsáveis de Oxford não garantem que conheçamos o resultado antes do Natal.

No final de outubro, registavam-se um total de 154 propostas de vacinas, 44 das quais em ensaios clínicos e dez na terceira fase. Os olhos estavam postos num final de ano com boas notícias: a OMS mostrou-se confiante em obter uma vacina até este prazo, mas é possível que jovens saudáveis tenham de esperar até 2022 para serem vacinados. Já o Governo português espera obter uma vacina entre o fim deste ano e o início do próximo.

Bastou chegar o mês de novembro para percebermos que, talvez, as boas notícias não estejam assim tão longe – foram a Pfizer e a Rússia que as trouxeram. Até ao presente, a doença já infetou perto de 53 milhões de pessoas (cerca de 34 milhões já recuperaram) e matou mais de um milhão, ao nível global.

Artigo editado por Filipa Silva

Este trabalho foi originalmente realizado para o jornal Satélite no âmbito da disciplina de AIJ/Rádio, Online e Imprensa – 3.º ano