Desde a recruta até à colocação no Quartel da Serra do Pilar, a militar de 30 anos, natural de Vila Real, sempre sentiu um tratamento igualitário em relação aos homens, mas reconhece que ainda é importante passar o seu testemunho a outras mulheres que possam sentir receios face à carreira militar. “Se sentem o chamamento, como eu e outras mulheres sentiram, chegou a altura de acreditarem nelas”, afirma a militar na entrevista.

JPN – Quais as razões que a levaram a candidatar-se ao Exército? Sempre desejou seguir uma carreira militar?

Luísa Valente – Eu estudei até ao 12º ano em escolas públicas e, no Secundário, segui Humanidades. Em paralelo, sempre gostei muito de praticar desporto, fui até federada em futsal. Sempre tive o objetivo de tirar uma licenciatura, mas também tinha a parte física muito ativa. A minha opção foi tirar uma licenciatura em Direito. Depois, apercebi-me que o curso poderia ser uma mais-valia dentro das Forças Armadas ou das Forças de Segurança e comecei a pesquisar: “E se eu fosse para a PSP? Ou para a GNR? Ou para o Exército?”. O gosto que eu já tinha no Secundário pela parte física e por um tipo de profissão diferente começou ali a ganhar sentido. Terminei o curso de Direito, fiz uma pós-graduação em Investigação Criminal e comecei a estar atenta a outros ramos das Forças Armadas: Marinha, Força Aérea e o Exército, para compreender como é que aplicavam o Direito. Até que, cerca de dois anos depois de eu ter terminado o curso e de estar a fazer essas formações, abriu um concurso para o Exército e precisavam, precisamente, de juristas. Então, eu pensei: “Eventualmente, até posso experimentar e não gostar, mas para ser advogada, ou juíza ou magistrada, eu tenho o resto da minha vida, enquanto que para cumprir o meu serviço militar há timings em termos de idade”. Por isso, disse: “Vai ser agora”. Tinha 26 anos na altura e percebi que era o timing certo.

JPN – A sua formação académica, realizada antes do ingresso nas Forças Armadas, é aplicável plenamente no trabalho militar?

LV – Sim. Quando me candidatei, não percebia muito bem que funções ia desempenhar. Tinha esse receio. Nos seis meses de recruta não houve qualquer tipo de aplicação de Direito, porque desde o início temos de aprender, no fundo, o que é a condição de militar. Após isso, fui colocada para a tal vaga de jurista. Quando cá cheguei, apercebi-me que desconhecia a maior parte da legislação militar, porque lá fora, no mundo civil, não há o ensino nem a aplicação dessa legislação. Foi todo um caminho de aprendizagem e de absorção de novos conhecimentos. Mas, sem dúvida, que teve aplicação aqui o que aprendi anteriormente. É uma aplicação diferente, com matérias estritamente do foro militar, mas obviamente que todo o meu ensinamento académico tem uma aplicação aqui.

JPN – Como é que caracterizaria, a nível de dificuldade, a formação inicial de ingresso?

LV – Sempre fui uma pessoa fisicamente muito ativa. Para mim, numa escala de 0 a 10, em relação à dificuldade, está num 8 ou 8.5. Consigo dizer que não foi fácil, mas também não foi assim tão difícil. Sendo mulher, foi importante para mim ter sido desde sempre uma pessoa muito ativa, porque isso foi criando alguma memória muscular no meu corpo. Por exemplo, aqueles exercícios de base como flexões, abdominais, cambalhotas, saltos, etc., eu sempre fui fazendo. Preparar-me para isso não foi propriamente difícil. O contexto em que eu fazia esses exercícios é que já começou a ser mais complicado. É diferente dar uma cambalhota no ginásio ou dar uma cambalhota num campo cheio de silvas ou de terra. Aí sente-se a dificuldade ao termos de adaptar o que fisicamente já conseguíamos fazer a cenários diferentes, por exemplo, numa pista de obstáculos, num cenário de frio, de calor ou de cansaço. Por isso, é que foi muito importante a formação militar, para nos obrigar a aprender a fazer coisas que o nosso corpo já conseguia fazer, mas em situações externas. Para além da dificuldade física, há a parte mental, e foi aí que eu senti, talvez, mais um desafio do que propriamente na parte física.

Já houve situações ao longo da minha vida em que me senti muito mais discriminada do que no meu trabalho.

JPN – As condições de formação foram diferentes em relação aos homens? Se sim, como compara o grau de exigência física?

LV – Não, nada. Tinha esse receio antes de entrar, porque eu não sabia se me iam dificultar a vida por ser mulher ou se a iriam facilitar. Acho que já houve situações ao longo da minha vida em que me senti mais discriminada do que lá. A única coisa que há de diferente, porque tem de ser e porque está protocolado, são as exigências físicas das provas para uns e para outros. O Exército, na sua formação e nos seus treinos, teve o cuidado de perceber qual é o limite do corpo da mulher e qual é o limite do corpo do homem. Fomos avaliados exatamente ao mesmo tempo, mas, por exemplo, a um homem exigem 50 flexões e às mulheres exigem 30, porque está comprovado geneticamente que o esforço é equivalente. Para além dos exercícios mais estáticos, como flexões, abdominais, etc., nós temos pistas de obstáculos. Alguns obstáculos eram adaptados, como é o caso do muro. O muro para um homem tem 90cm e para uma mulher tem 65cm. Noutros exercícios, já não acontecia o mesmo: escalar uma escada chinesa era exatamente igual para o homem e para a mulher. Dar um sprint na reta final era igual para ambos. No dia da incorporação houve uma reunião importante para todos, onde nos explicaram que iríamos ser tratadas exatamente igual aos homens. Se estivéssemos menstruadas era impensável dizer que não podíamos fazer exercício, a não ser que estivéssemos com dores horríveis, mas aí éramos levadas para a enfermaria, assim como um homem era se dissesse que estava com dores horríveis no pé. Portanto, ali o assunto não era tabu. Uma pessoa chega lá e é-nos dito tudo de uma forma muito fria e objetiva, e é assim que tem de ser. Isso deixou-nos, desde o início, muito à vontade e tirou-nos logo muitas ideias com que vínhamos lá de fora. Facilita o foco naquilo em que temos de focar-nos, que é: se conseguimos fazer os exercícios, se estamos bem fisicamente ou até que ponto conseguimos suportar uma dor. As chefias foram essenciais e objetivas para que nós próprios conseguíssemos ultrapassar as nossas dificuldades e medos.

JPN – No seu dia a dia, ser militar nas Forças Armadas afeta mais a sua vida pessoal enquanto mulher, ou considera que está ao mesmo nível de outras profissões?

LV – Não tenho muita experiência no mercado de trabalho, porque apenas desempenhei trabalhos temporários antes de entrar para o Exército, mas como militar tenho o meu horário de trabalho e, uma ou duas vezes por mês, sou escalada para fazer um serviço de 24 horas, mas tudo isso está devidamente planeado, não sou chamada à última hora. Portanto, em termos de planeamento, eu consigo planear a minha vida e as minhas semanas. Porém, e isso pode ser uma questão de amor à camisola, sempre que saio daqui ou estou de férias há um sentimento de responsabilidade, porque eu sei que a minha condição militar é 24 horas por dia. Eu sei que posso sair daqui às cinco para ir para casa, fazer as minhas compras e fazer a minha vida social, mas se receber uma chamada a qualquer hora, eu sei que tenho de vir. Não é algo que me seja propriamente imposto.

JPN – Considera que as condições das infraestruturas estão ajustadas adequadamente a ambos os géneros?

LV – Considero que sim. Há um pormenor ou outro que se poderia ajustar, tanto é que já foi falado, particularmente neste quartel [da Serra do Pilar]. Tem havido o cuidado das chefias de nos perguntarem a nós, mulheres, se precisamos de algum tipo de equipamento nas casas de banho. Já demos a sugestão de ter secadores de parede, visto que temos cabelos mais longos. Também falámos, pensando em quando estamos escaladas para fazer 24 horas, que pode aparecer a menstruação e não termos cá equipamentos, por isso, sugerimos ter uma daquelas caixinhas de venda automática, por exemplo. Isto são coisas que a chefia tem ouvido e registado para brevemente as alterações serem implementadas. A nível de camas e do próprio edifício, as infraestruturas são boas. Não passamos frio nem calor e temos espaço para guardar as nossas coisas. Portanto, as estruturas são ótimas.

O Douro visto do Quartel da Serra do Pilar, onde trabalha a alferes Luísa Valente. Foto: Ana Silva

JPN – Como é que carateriza o ambiente profissional no quartel, do ponto de vista do género? 

LV – O que eu sinto é que, se por um lado na recruta o tratamento é exatamente igual, sendo colocada numa Unidade, eu sinto o contrário. Sinto uma “discriminação positiva”. Sinto que, no meu dia a dia, há mais cuidado em falarem com as mulheres do que entre os homens. Olho para isto de uma forma carinhosa, mas por outro lado penso que isso não é igualdade. No fundo, apesar da intenção dos homens ser boa, acaba por alimentar, inconscientemente, um estereótipo de que têm de ser mais brandos com as mulheres. O facto é que não há nem poderia haver, nesta instituição, qualquer tipo de problema de assédio, injúria ou mau ambiente. Nem a chefia o permitiria. E estou certa de que seria devidamente salvaguardada caso algum tipo de inconveniente me acontecesse. Assim como acredito que os homens também estejam, se sentirem algum tipo de problema. É um trabalho em que se luta todos os dias para ser muito objetivo – temos de cumprir a nossa missão e os objetivos que nos são apresentados, e qualquer fator que surja e que possa não estar tão bem é devidamente reportado e tem de ser resolvido. É como nos dizem desde o primeiro dia da recruta: “desmistificar e simplificar as coisas”, pois só assim conseguimos estar focados no trabalho.

JPN – Hoje, cada um dos ramos das Forças Armadas tem pessoal dedicado à integração da perspetiva de género. Sente que isso é um fator importante, nomeadamente, na atuação em operações militares?

LV – É um assunto que está a ser muito falado. O Exército tem tido o cuidado de organizar várias formações sobre igualdade de género e está a seguir as linhas orientadoras do Governo também nesse sentido. E talvez seja falado no sentido de prevenção e para que nós, militares, olhemos para a sociedade e para outras situações em que isso possa acontecer. Esta semana tive uma formação dada pela Comissão para a Cidadania da Igualdade de Género em que nos explicaram que, ainda que aqui não exista desigualdade de géneros, nós vemos muito noutros sítios essa desigualdade, não só relativa a mulheres, mas também a homens. É interessante que, no fundo, o Exército esteja a ter esse papel de nos dar formação cívica e de nos ir informando que ainda existem situações nas diversas áreas, desde o assédio sexual no trabalho, violência doméstica… Isso é importante porque também me está a causar a mim a necessidade de ser mais proativa, seja em conversas que tenha com amigas ou seja em situações em que possa trazer mais vezes este assunto à baila. Espero que, um dia, já não haja este tipo de formações, porque seria sinal de que já não existe este tipo de desigualdades.

Quem sabe, um dia, uma filha minha com quinze anos já ache perfeitamente normal uma mulher ingressar nas Forças Armadas.

JPN – Acredita que o facto de a profissão exigir disponibilidade permanente ainda é um constrangimento para muitas mulheres, nomeadamente na perspetiva que possam ter de constituir família?

LV – Essa questão seria mais fielmente respondida por uma militar que já fizesse parte dos Quadros e que já tivesse dez ou quinze anos de carreira. Mas do que vejo, e da experiência que tenho em provas quando me cruzo com outras militares mais velhas, elas têm vidas familiares ditas “normais”. Têm os seus filhos, conseguem ir buscá-los e levá-los à escola, conseguem fazer um planeamento de férias de acordo com os filhos… Conseguem, se calhar muito mais do que outras mulheres que tenham outros tipos de trabalhos, planear quando é que querem ter filhos. O facto de sabermos que temos de ter disponibilidade permanente face ao nosso trabalho também nos faz ficar mais conscientes de como é que queremos fazer as coisas. É nosso dever enquanto militares informarmos a chefia se estivermos grávidas, para que possa haver uma adaptação desde o início e um cuidado na progressão da gravidez, para que a pessoa se sinta segura num ambiente que é operacional. Para mim, isso é reconfortante, saber que a própria instituição se adapta e apoia a mulher até à gravidez. Posteriormente, na gestão da vida com os filhos, é exatamente igual à situação de um homem.

JPN – Relativamente à distribuição de chefias por mulheres, qual é a sua perspetiva?

LV – Efetivamente, se percorrermos o país, constatamos que não existem muitas mulheres comandantes ou chefes dos serviços, mas isto está explicado pelo facto de o número de mulheres ser menor. Quando falamos de Oficiais Superiores, também há uma quantidade de mulheres reduzida a continuar a carreira. Por isso é que foi há pouco tempo, em 2018, que surgiu a primeira General mulher nas Forças Armadas.

JPN – Acha que, no futuro, o receio que muitas mulheres ainda sentem em relação às Forças Armada vai ser completamente ultrapassado? 

LV – O que estamos a fazer aqui hoje, e o que os centros de divulgação fazem, é muito importante: passar o testemunho. É importante que os media observem e ouçam relatos de outras mulheres. Na semana passada, fui convidada para ir a um infantário. Eu achei que os miúdos não iam perceber nada do que eu ia dizer, mas depois percebi… têm de se habituar desde cedo a ver uma mulher fardada. Os miúdos adoraram. Mostrei imagens de mulheres a fazer exercício ao lado de um homem, mulheres fardadas… E eles perguntavam-me: “Então e tu conseguias fazer isso tudo sozinha?”. Portanto, penso que é importante que estas ações desde o infantário às creches, às escolas e até entrevistas como esta, sejam divulgadas. A divulgação é muito importante. Cada vez mais penso que as mulheres, não só no Exército, mas a nível de desporto, já estão muito mais integradas. Penso que ainda vamos ter alguma adaptação, mas não acho que esteja assim tão longe. Quem sabe, um dia, uma filha minha com quinze anos já ache perfeitamente normal uma mulher ingressar nas Forças Armadas. Ainda podem existir alguns tabus e medos, mas também nos cabe a nós, Forças Armadas, fazer este tipo de divulgação e de esclarecimentos.

JPN – O que diria a outras mulheres que sentem o apelo da vida militar, mas têm dúvidas, ou porque não se sentem capazes, ou porque acham que é um meio muito masculino?

LV – Se elas sentem o chamamento, assim como eu e outras mulheres sentiram, chegou a altura de acreditarem nelas. Se há algo que se sente, acreditem. Seja um homem, ou uma mulher. No Exército, o mesmo [receio] pode passar-se com homens, ou porque nunca praticaram muito exercício físico, ou sempre foram mais tímidos na escola, ou nunca foram o rapaz mais forte do grupo… Nós aqui não somos máquinas, somos seres humanos. Quem sinta um chamamento ou uma curiosidade, tem de acreditar, e depois vai ver que para além de se surpreender a si próprio, vai estar a fazer algo que eu considero que é um privilégio, que é servir o país. Todos nós servimos, de várias formas, mas se calhar esta é uma forma especial. Não estamos aqui só porque gostamos, mas estamos aqui em prol de algo maior do que nós. Nada se obtém sem esforço e dedicação. Há dificuldades em todo o lado. Cabe a cada um acreditar em si, e lutar.

Artigo editado por Filipa Silva

Este trabalho foi realizado no âmbito da disciplina TEJ-Imprensa – 2º ano