Desta vez afastados dos palcos, o JPN foi conhecer as histórias de quem se apaixonou por esta arte e decidiu fazer dela vida. São elas Soraia Sousa, Inês Sincero e Carolina Gomes.

É o segundo ano consecutivo em que se celebra o Dia Mundial do Teatro longe dos palcos. Deixamos de poder estar fisicamente presentes no sítio onde se ouve e vê o mundo todo de uma vez. Para os atores que nos abrem novos horizontes, a saudade de pisar o palco e vestir outras “peles” é cada vez maior.

Este sábado, é dia de recordar a magia do teatro: celebra-se a liberdade de poder ser, o medo de falhar, a intensidade, os aplausos, os holofotes e, acima de tudo, as histórias. Porque o teatro vive disso, de histórias.

Soraia Sousa: “Às vezes os atores querem tanto arranjar trabalho, que se esquecem do que querem como artistas”

Ao sabor do vento, foi descobrindo o que realmente queria. Se, no início, tudo começou por uma mera brincadeira, agora, faz disso vida. Teatro, cinema e moda são aquilo que a ocupam. Ela, que não gosta de estar parada. 

Soraia Sousa é atriz, licenciou-se na ESMAE e este último ano mostrou ser um ano de mudança. A paixão pelo teatro surgiu por mero acaso, através de um casting, e foi aí que percebeu que nunca algo a tinha fascinado tanto: “Por uma brincadeira, chamaram-me para um casting e eu fiquei. Só que esse casting era dividido, então nós ficávamos um mês a ter aulas de teatro e íamos sendo expulsos.” Foi a praticar exercícios das nove às 18 horas, que descobriu que o teatro era o caminho a seguir: “ Foi nessa semana que eu percebi: É mesmo isto que eu quero fazer.” conta-nos a atriz. 

Depois de perceber que a arte da representação era a sua grande paixão, arregaçou mangas e começou a trilhar o caminho que a levaria a tornar-se uma profissional na área: “Fiz um curso na Academia Contemporânea de Espetáculos, no Porto, com o Pedro Almendra. Tentei entrar na ESMAE, mas não consegui. Estive um ano na ESAP, mas o que queria mesmo era entrar na ESMAE ou na ESTC, em Lisboa. Por isso, durante um ano estive a fazer um curso de fim de tarde no Chapitô, em Lisboa. Depois, sim, entrei na ESMAE. Acabei o curso. Quando acabas o curso pensas: E agora?”.

E agora, concluída a licenciatura, surge o dilema de como será dali para a frente e, claro que, quando começou pensou “Se calhar não vai dar, mas eu tenho de tentar”. A verdade é que, para a atriz, o curso de teatro da ESMAE é “mesmo muito completo” e exigente e, ainda que no futuro não se vingue, as oportunidades que se consegue ter, valem sempre a pena, confessa: “Eu estive a trabalhar com o Nuno M. Cardoso, com o Gonçalo Amorim e isso são experiências que, mesmo que cá fora não tenhas, já valeu mesmo de muito.”

Ainda assim, Soraia Sousa foi sempre tendo trabalho na área e, sempre que tudo parecia mal e pensava em desistir, “acontecia alguma coisa que me fazia voltar ao teatro.” Ao longo do curso sempre foi explorando novas áreas, nomeadamente, a do cinema: “Fui fazendo muitas curtas metragens assim, muita asneira mesmo, mesmo para aprender.” Sentiu que a altura certa para experimentar era aquela: “Ok, para fazer coisas mal, é durante o curso, então desdobrei-me”.

Terminado o curso, esteve num grupo de teatro no Porto, fez espetáculos musicais de Natal e deu aulas de teatro em Óbidos, com o ator Pedro Giestas. Nos últimos dois anos, esteve também com uma companhia de teatro de circo, a Malatitsch, e fez espetáculos de rua. Consegui nestes últimos dois anos misturar mesmo tudo. Eu tinha trabalho certinho e achava que isso não ia mudar, até vir a pandemia“, revela.

Soraia Sousa sentiu o impacto da pandemia logo no início. Fazia sempre as feiras medievais, no entanto, a chegada da Covid-19 começou a cancelá-las e a atriz ficou com o tempo totalmente livre: “Quando a pandemia começou, eu achava que não era nada. Começamos depois, sim, a ter feiras canceladas. Foi uma, depois outra, depois outra…até anunciarem mesmo que as feiras iam ser fechadas e eu fiquei sem nada para fazer”. 

Ainda assim, “cortaram-me nesse lado e foi o ano que mais trabalhei em publicidade. Portanto, eu sinto mesmo que a minha vida tem sido, não lhe chamo sorte, mas tem caído tudo nas alturas certas.” Para além do teatro, a moda é um outro mundo onde Soraia Sousa vive. Apesar de ter trabalhado mais nessa área, o tempo livre continuava a ser grande e, por isso, decidiu, “na loucura”, ir para Lisboa viver e está agora a fazer um laboratório de teatro de Tiago Vieira: “Se tenho oportunidade de fazer o laboratório de teatro dele, é agora, porque não estou a fazer mais nada”.

Para Soraia Sousa, a vida tem corrido e encontrado o seu rumo. Reconhece o esforço que é preciso fazer para que a vida assim corra e afirma: “Eu acho que um ator em Portugal – não sei como é nos outros países – mas, um ator em Portugal não pode estar à espera que o aceitem num casting. Um ator em Portugal não pode mesmo estar à espera de ser selecionado, muito menos ficar dececionado com nãos. Acho que o ator em Portugal lida com nãos como ninguém”.

O último ano foi mau para muitas pessoas e áreas, e o teatro e Soraia Sousa não são exceções. Ainda que tenham existido momentos difíceis, a atriz retira as melhores lições que esta pausa  lhe poderia ter trazido: “Foi um ano em que eu andava a fazer feiras medievais e eu adorei, mas parar fez com que eu percebesse que aquele não era o meu caminho. Às vezes os atores querem tanto arranjar trabalho, querem fazer isto e querem trabalhar na área, que se esquecem um bocado do que querem realmente fazer e do que querem como artistas. O que querem ser. Claro que eu adoro estar em feiras medievais, mas eu como atriz, quando entrei na ESMAE, não era esse o meu objetivo”.

Inês Sincero: “Eu sentia que o meu dia só começava a sério às 18h30, que era quando eu tinha ensaios”

No percurso de Inês Sincero, há uma personagem principal que sempre ofuscou as outras: a leitura. Tudo começa com a leitura e tudo nela se encerra. Sempre gostou de ler e de histórias. Conta-nos, entre risos e num tom poético que lhe é muito característico, que chegou a uma altura em que não vivia sem, pelo menos, ler uma história por dia – “por mais cliché que seja dizê-lo”. 

O gosto pela leitura levou-a, inevitavelmente, ao gosto pela escrita. Mais tarde, estes interesses traduziram-se na necessidade de dar vida às próprias “balelas” – e é precisamente aqui que começa a nascer o “bichinho do teatro”, como muitos lhe chamam. 

Tudo “nunca passou muito disso” – até ao secundário. “No 10.º ano, eu tomei a iniciativa e perguntei aos meus pais se podia ir fazer uma oficina de teatro e assim foi”, explica. Entre workshops de fins-de-semana, as bases começaram a crescer e é no 12.º ano que, com a universidade a aproximar-se, decide “ir tirar teimas” e fazer um curso pós-laboral de teatro. Do curso resultou um grupo de amigos que decidiram continuar a fazer coisas juntos. 

A segurança de saber que tinha com quem praticar teatro fez Inês Sincero querer ir forma-se noutra coisa, para que pudesse ter também um dito “trabalho normal”. Decidiu inscrever-se “um bocado às cegas” no curso de Ciências da Comunicação na Universidade do Porto, em 2018 – uma decisão influenciada, mais uma vez, pelo gosto da leitura e da escrita. As coisas acabaram por correr bem, mas não como estava à espera: “Eu sentia que o meu dia só começava a sério às 18h30, que era quando eu tinha ensaios. E viver das noves horas da manhã até às 18h30 era um bocado moroso” – e isso foi o suficiente para perceber que “não estava no sítio certo”.

Continuou no curso de comunicação, porque “não tinha nada a perder”, mas o seu foco passou a ser as provas para entrar no curso de interpretação da ESMAE. Não foi aceita à primeira, mas tentou no ano seguinte e conseguiu. Estar já às portas do seu ano de finalista num curso com melhores perspetivas de emprego e uma crise pandémica não a assustaram ou tão pouco abalaram as suas convicções. “Pouco me interessa estarmos em ano de tempestade ou não, porque esta é uma vontade mais antiga do que a tempestade”, garante Inês.

Agora, já estudante de teatro, confessa-nos que, apesar das adaptações a que a pandemia obrigou, se sente uma “sortuda” por ter a oportunidade de poder estar a estudar, ao invés de trabalhar, numa fase de tão pouca esperança que o setor atravessa. “Porque aquilo que eu não estou a aprender artisticamente agora, eu tenho aqui o meu quarto e posso fingir que aprendo, posso inventar que aprendo, posso ‘experimentar’ que aprendo. Se eu estivesse a trabalhar, se eu vivesse da minha arte – seja lá o que isto for – neste momento, eu não podia inventar que punha pão na mesa, nem podia inventar que trabalhava”.

Em palco, é preciso cumprir um conjunto de regras para a segurança de todos os estudantes. O uso de máscara é obrigatório. Foto: Inês Sofia Pereira

Estava a estrear um espetáculo quando a conjuntura do mês de janeiro a obrigou a ir para casa. Criar uma peça online foi uma hipótese que não teve vontade de explorar, mas o tempo confinada permitiu-lhe fazer com mais calma algo que “no mundo normal” não poderia fazer durante dois meses inteiros: o trabalho de leitura de uma peça. Sempre a leitura. O poder fazer novas interpretações, poder refletir, poder dedicar-se ao trabalho teórico e poder conversar. Algo que, “apesar de parecer só conversa” é “muito importante”.

A sua maior ambição, para quando acabar o curso, é conseguir fazer teatro todas as semanas – “o que é mesmo difícil”. Até lá, espera conseguir perceber também se é mais “artista”, ou se a sua luta é mais  “política e mais social”. “Para já posso dar-me ao luxo de andar a apalpar, no final do curso não vou poder. Mas até lá eu vou ter respostas, tenho a certeza”.

Carolina Gomes: “Tu deixas as tuas preocupações à porta da sala de ensaios.”

Cresceu entre os corredores das salas de espetáculo e era na plateia – entretida lá com os seus desenhos – que esperava pelo pai, ligado ao ramo. Um dia, ficou aborrecida com os desenhos, fugiu das cadeiras e foi dar ao palco. Foi aí que lhe deu um clique, quando um holofote a iluminou: “Calhou eu estar mesmo onde o projetor ia ser ligado.” Se no início a sensação de medo do escuro lhe causou a sensação de “pânico”, depois a luz acendeu-se e o pensamento foi: “Ah! Sim, pronto, é isto.”

Carolina Gomes não estuda teatro, mas essa arte faz parte de si. Desde sempre que se lembra de viver neste mundo. Se, no início, por influência do pai, depois começou ela mesma a desenhar o seu perfil e, mais tarde, na vida, voltou a fugir para os palcos – desta vez para os do clube de teatro da sua escola. A Máquina das Nuvens rapidamente se tornou a sua casa, a sua companhia. Foi lá que começou “bocadinho mais a sério” e, até hoje, continua lá.  

Alguém que nos transmite tanta paixão para com o teatro, leva-nos a questionar o porquê de a sua formação não ter envergado pela área, mas Carolina Gomes explica: “Infelizmente, a área da cultura, em Portugal, não é de todo muito valorizada, nem vista como essencial e trabalhar única e exclusivamente como atriz pode ser muito complicado.” 

“Em tudo o que envolva representar, tu tens que pegar nas tuas experiências de vida e, de certa forma, transformá-las e adaptá-las à situação em que te encontras. Eu acho que quanto mais experiências dessas nós tivermos, melhor.” Por isso, a atriz acredita que o seu caminho até chegar ao sonho da representação, passa também por outras áreas fora das artes do espetáculo. 

O sonho comanda a vida e, para Carolina Gomes, a viagem pelas artes performativas está bem longe de terminar. O futuro é promissor: “Este ano vou-me candidatar ao mestrado em Interpretação, na ESMAE e, ao mesmo tempo, vou começar a preparar candidaturas para ir estudar para o estrangeiro.” O ideal seria, claro, atingir os seus objetivos sem ter de sair do país, mas “infelizmente não existe essa possibilidade e tenho que me fazer à vida porque não vou diminuir o meu sonho, ou diminuir as minhas expectativas porque aqui não temos esse apoio.”

As ambições para o futuro são grandes, ainda que o teatro esteja numa fase de sobrevivência e que seja muito difícil fazer valer a arte nos dias de hoje: “Não vou mentir, é muito difícil fazer teatro, ou qualquer arte performativa. As pessoas dizem que o teatro está-se a reinventar.Ok, sim, mas não. Nós estamos a sobreviver como podemos”.

O teatro é uma arte intensa, inigualável e, ainda que não haja motivação: “às vezes nem me apetece ir aos ensaios, mas forço-me a ir”, vale sempre a pena: “Depois saio de lá sempre com o pensamento “Ah, ok, então é por isto que… Ok, já me lembrei outra vez porque é que tu queres ser atriz.” É o meu happy place. Tu deixas as tuas preocupações à porta da sala de ensaios”.

Artigo editado por João Malheiro