A meio de um período de grande tensão, os presidentes dos Estados Unidos da América (EUA) e da Rússia reúnem-se esta quarta-feira, em Genebra, Suíça. É a primeira viagem do novo presidente norte-americano à Europa e o primeiro encontro deste com o seu homólogo russo.

A cimeira entre os chefes de estado tem como principal objetivo construir uma “relação estável e previsível que interessa a ambos”, num momento em que esta se encontra no ponto mais baixo “nos últimos anos”, de acordo com Vladimir Putin.

Em março, numa entrevista à ABC News, Joe Biden apelidou o seu homólogo russo de “assassino”. Desde então, acusações de ciberataques a empresas americanas somaram-se às de interferência, quer nas eleições de 2016, quer nas de 2020. Já em maio, Putin tomou o lado de Lukashenko, presidente da Bielorrússia, na questão do desvio de um avião da Ryanair por parte desse país.

Apesar dessa tensão entre as duas potências rivais, o discurso, quer de Putin quer de Biden, tem sido conciliatório e amigável nos últimos dias, com ambos a mostrarem-se abertos a avanços em várias áreas da política bilateral e multilateral entre os países. O foco da cimeira deverá ir para as questões de cibersegurança, de direitos humanos e de armamento estratégico e nuclear.

Villa La Grange acolhe os dois líderes mundiais. A villa do século XVIII, nas margens do Lago Léman, representa mais um passo na neutralidade suíça, recebendo um dos encontros mais significativos do ano no que toca à geopolítica global. Depois de conversações entre os chefes de estado russo e americano e outros oficiais de topo, esperam-se discursos públicos separados.

Joe Biden tem uma conferência de imprensa marcada, na qual deverá responder aos jornalistas e anunciar os primeiros resultados da cimeira. Quanto a Putin, é provável que se dirija a um órgão oficial russo, como o comentador Germano Almeida avançou em entrevista ao JPN.

Uma cimeira de baixas expectativas

Esta é a primeira cimeira entre os líderes da Rússia e dos Estados Unidos, desde 2018, quando Trump e Putin se reuniram em Helsínquia, Finlândia, e o primeiro encontro do presidente russo com Joe Biden, após este ter assumido o cargo de presidente. Por isso mesmo, na opinião do comentador da SIC, José Milhazes, esta servirá mais como forma de “meter um travão na derrapagem” evidente nas relações entre os dois Estados.

Germano Almeida é da mesma opinião, considerando que asituação está tão tensa entre os dois lados, talvez no ponto mais baixo das últimas décadas”. Dessa forma, a cimeira será “mais uma clarificação do que propriamente uma aproximação”. Relembrando as cimeiras passadas, o jornalista recorda que estes encontros “são mais momentos de símbolo e para a fotografia do que propriamente avançar ali com coisas”.

No fundo, o encontro de hoje entre Putin e Biden servirá mais para “apontar caminhos de cooperação na solução de problemas”, segundo José Milhazes. Soluções essas para questões que separam e unem os dois rivais. Embora as expectativas sejam baixas, a cimeira desta quarta-feira pode ser uma ponte de lançamento para negociações futuras e progresso em várias áreas. Contudo, são as divergências, “mais claras” para Germano Almeida, que se destacam e parecem roubar o espetáculo mediático.

Um encontro de opostos

O estado das relações entre EUA e Rússia, como referido anteriormente, é de grande tensão. Várias questões complicadas devem ser postas em cima da mesa. Biden não se deve coibir de as abordar e de enfrentar Putin cara a cara. De acordo com o comentador da SIC, Germano Almeida, “para o próprio consumo interno, é fundamental que o presidente Biden fale de forma clara e diga as coisas na cara a Vladimir Putin”.

Entre as principais temáticas, destaca-se a questão da cibersegurança. Depois de acusações, apoiadas pelos serviços de inteligência americanos, de interferência nas eleições dos últimos anos nos EUA, surgiram já este ano novas suspeitas de ataques informáticos a empresas americanas e mesmo agências governamentais por parte da Rússia. Do presidente norte-americano deve-se esperar pressão. “Joe Biden está agora também a clarificar mais isso e está no fundo a querer com este encontro colocar Putin mais na berlinda”, afirma Germano Almeida.

Para além disso, os chefes de Estado russo e americano devem discutir questões relativas a direitos humanos, como a detenção do opositor russo Alexei Navalny, e o envolvimento de Moscovo no conflito na Ucrânia. Embora pouco se possa esperar quanto a essas problemáticas, o comentador José Milhazes admite que após as eleições legislativas de outubro na Rússia, “tendo o parlamento completamente na mão, como tem, Putin pode dar-se ao luxo de anunciar uma amnistia”.

Já para Germano Almeida, conhecedor da realidade norte-americana, a pressão que Biden tem exercido sobre o homólogo russo “ajuda a demarcar posições e ajuda a posicionar Biden”. O foco em questões de direitos humanos como essa é, segundo o próprio, o principal elemento diferenciador do líder americano relativamente ao seu antecessor, Donald Trump. Germano Almeida descarta ainda uma possível morte de Navalny, a qual não serve os interesses de Putin.

O apoio do chefe de Estado russo ao atual líder da Bielorrússia, Alexander Lukashenko, é outro ponto de divergência. Apelidado de “último ditador da Europa”, o presidente bielorrusso viu-se envolto em polémica após ordenar o desvio de um avião da Ryanair no qual se encontrava um jornalista crítico do seu regime. Putin tomou o seu lado, convidando-o mesmo a passar um dia em Sochi, no sul da Rússia. Germano Almeida descreve essa reação como um “comportamento absolutamente lamentável”.

Adicionalmente, o mesmo comentador relembra um outro tópico muitas vezes esquecido no meio da equação: o Open Skies Treaty. O tratado abrange um programa de voos desarmados de vigilância sob o território dos Estados aderentes. No entanto, este não conta com os EUA entre os países signatários e, entretanto, a Rússia também já abandonou o mesmo. Assim, para Germano Almeida, este “está condenado ao fracasso”.

Desse modo, o jornalista José Milhazes considera as “divergências fortíssimas”, perspetivando uma guerra de palavras entre os dois líderes na cimeira desta quarta-feira: “o Biden acusa, o Putin desmente, e isto é palavra contra palavra”. Porém, para Milhazes, “haverá eventualmente algum ponto de contacto”, perspetiva partilhada por Germano Almeida.

Das divergências para a convergência

As divergências são muitas e bem visíveis, mas a retórica dos últimos dias mostra disposição para uma melhoria futura. Biden mudou da postura inicial relativamente a Putin para uma mais elogiosa, considerando-o um “adversário digno”. Putin reconhece, em entrevista à NBC News, a experiência de Biden, que vem com “algumas vantagens [e], algumas desvantagens”. No fundo, os pontos de convergência estão lá e, para o comentador Germano Almeida, são até “mais duráveis” do que aquilo que divide os dois

Ainda em fevereiro, concretizou-se um dos principais pontos de contacto entre russos e americanos, com a renovação do Tratado de Redução de Armamento Estratégico New START. No atual contexto, apesar das ameaças provenientes de países como Irão e Coreia do Norte, tal acordo continua a ser de enorme relevância pois, como aponta Germano Almeida, EUA e Rússia possuem mais de 90% do arsenal nuclear do mundo.

O Tratado estará em vigor até 2026, mas a cimeira pode ser uma ponte de arranque para algo mais. Do lado de Moscovo, existe abertura para progressos nessa área: “Nós estamos preparados para este trabalho”. Para Washington, a renovação do New START “é só o começo dos nossos esforços para abordar os desafios securitários do século XXI”, nas palavras do secretário de Estado, Antony Blinken.

O comentador José Milhazes destaca essa questão “da limitação e redução dos armamentos estratégicos”, avançando que o foco na cimeira e após esta estará na possível elaboração de “um novo tratado” e em “como é que ele vai ser elaborado”. Germano Almeida questiona ainda o papel da China na questão, a qual motivou mesmo Trump a adiar uma renovação do Tratado já antes acordado.

Para além disso, tanto Germano Almeida como José Milhazes destacam outros temas com convergência de interesses de ambos os presidentes, como o combate à pandemia, a luta contra o terrorismo, a questão climática, a guerra no Afeganistão, o Acordo Nuclear do Irão e até mesmo a corrida ao espaço.

No que diz respeito ao Acordo Nuclear com o Irão, o comentador da SIC, José Milhazes, destaca a “atitude mais aberta” de Biden e a influência russa em relação ao país. Apesar de admitir “o reatamento de conversações” e o “regresso ao acordo”, dada a concórdia entre os líderes das duas nações, aponta que pouco deve sair da cimeira. Germano Almeida refere também as opiniões comuns de Biden e Putin quanto ao Irão.

Apesar dos pontos em comum, não se devem esperar “grandes saltos em frente”, como diz José Milhazes. Para Germano Almeida, a cimeira “terá mais um efeito simbólico”. Tal não invalida, contudo, que algum progresso possa ser feito e que o encontro contribua para acordos e entendimentos futuros.

A ameaça chinesa que paira sobre a cimeira

Embora o foco esteja no encontro de titãs na geopolítica global, muita da atenção do presidente Biden foi para a China no seu discurso na cimeira da NATO, que ocorreu esta segunda-feira. De algum modo, esta atitude demonstra uma maior preocupação face à China e uma mudança das “placas tectónicas da geopolítica”, considera Germano Almeida.  

O comentador considera a China, “sem dúvida, o maior rival” dos EUA. Já José Milhazes destaca a ameaça da China “para o Ocidente” associada à sua forte “expansão económica”, a qual põe em causa o lugar dos Estados Unidos como a maior potência económica mundial.

De certa forma, a própria China poderá dificultar a discussão entre EUA e Rússia. Isto porque, segundo Germano Almeida, “a China e a Rússia são aliados mais ou menos de conveniência”, especialmente, na questão das vacinas, e, por isso, podem desafiar os Estados Unidos. 

Contudo, o comentador da SIC, José Milhazes, considera que, apesar de “a Rússia utilizar o papão da aliança com a China para conseguir cedências do Ocidente”, a Federação Russa “está a ser utilizada para tirar as castanhas do fogo”. Assim, a China ameaça igualmente a Rússia, cuja supremacia económica já é “pouco significativa”. Germano Almeida considera mesmo que “a influência da Rússia acaba por ser maior do que o seu verdadeiro poder”, atribuindo todo o mérito à liderança de Putin.

Deste modo, Germano Almeida admite que pode surgir a possibilidade de “uma certa aproximação [dos EUA] à Rússia para travar a China”, algo que não foi possível com a administração Trump que “teve sempre uma grande contradição” com a nação russa.

No fim, as convergências e divergências devem-se manter e pouco deve mudar. As expectativas são baixas, mas estão lá, para que a cimeira desta quarta-feira consiga dar o pontapé inicial a algo mais e a um fortalecimento de relações entre russos e americanos. Contudo, como afirma o jornalista José Milhazes, citando o antigo futebolista João Pinto, “prognósticos só no fim do jogo”.

Artigo editado por João Malheiro