Relatório de centro universitário que estuda segurança pública no Brasil revela que o número de abordagens de cidadãos negros é largamente superior ao resto da população, além de denunciar práticas de cunho racista durante essas ações. Polícia Militar não comenta os números, mas demarca-se das acusações de racismo.

Polícia Militar de Espirito Santo está em greve há uma semana

A Polícia Militar é visada pelo relatório apresentado este mês pelo CESeC. AgênciaBrasilFotografias/flickr

Quase duas em cada três abordagens policiais realizadas na cidade do Rio de Janeiro, no Brasil, têm como alvo cidadãos negros. Os resultados do relatório “Elemento Suspeito – Negro Trauma”, apresentado este mês pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), revelam que as interpelações de pessoas negras por agentes de segurança (63% do total) superam, proporcionalmente, o total de negros que residem na capital (48%). Além disso, o relatório expõe que ações de cunho racista durante as operações tornaram-se mais comuns e recorrentes nos últimos 20 anos. 

O boletim reitera que esse contexto é independente do cenário em que ocorre. Seja de carro, a pé, nos transportes públicos ou na praia, os cidadãos negros são sempre os mais parados pela polícia. Sobre isso, Sílvia Ramos – coordenadora do CESeC – refere no documento que o “viés racial, a seletividade, o ‘racial profiling’ nas abordagens é parte da engrenagem racial e racista que estrutura a sociedade e, em particular, a justiça criminal”. 

No mês de maio de 2021, a equipa de estudo do CESeC realizou 3.500 entrevistas presenciais a jovens negros e brancos, condutores de veículos descaracterizados de transporte de passageiros, estafetas, e praças negros da Polícia Militar (organização similar à GNR), em pontos de fluxo da cidade fluminense. Ao todo, 739 pessoas responderam por completo à entrevista – compondo “uma amostra aleatória representativa de idade, cor, escolaridade, género e local de moradia dos habitantes do Rio” e representa cidadãos cariocas “que já foram abordados pela polícia” – explica o relatório.

Fundado em 2000 na Universidade Cândido Mendes, o CESeC é uma das primeiras instituições académicas brasileiras totalmente dedicadas ao estudo da violência e segurança pública no país.

O “elemento suspeito”

“Bigodinho fininho e loirinho, cabelo com pintinha amarelinha, blusa do Flamengo, boné”. Essa é a descrição dada pelos polícias participantes no inquérito quando questionados sobre qual o perfil dos alvos das operações de segurança. Um retrato que coincide com a aparência dos jovens negros moradores de favelas e periferias.

“Considerando que essa é a estética e a cultura de jovens pretos e favelados, o discurso de policiais militares costura o inimigo ao inumano – o negro. Cria-se, então, uma racialização da população e de territórios negros, desumanizando ao construir ‘elementos suspeitos’”, lê-se no relatório.

Em consequência, homens negros com menos de 40 anos que recebem até três salários mínimos (3.363 reais, o equivalente a 624 euros) e que são moradores de favelas e periferias são apontados pelo estudo como os “super parados”pessoas que já foram paradas por agentes de segurança mais de dez vezes ao longo da vida. Os entrevistados que fazem parte desse grupo afirmam que estão tão acostumados às abordagens que, quando elas não acontecem, parece “que aconteceu algo estranho”. “Eles tentam imprimir que a gente é o suspeito. A gente acaba até duvidando da própria honestidade” – relata um jovem negro.

“As abordagens policiais são defendidas como parte de uma prática capaz de produzir segurança para sujeitos brancos em uma sociedade estruturada no racismo. De outro lado, além da vergonha e da humilhação, uma série de efeitos psíquicos e traumáticos já vão sendo identificados e interferem na vida de milhares de cariocas e brasileiros”, comenta Diego Francisco, pesquisador do CESeC, no relatório.

Revistas físicas

Com base no levantamento, os autores do estudo concluem que metade das abordagens são seguidas de uma revista física – procedimento em que o abordado tem as mãos imobilizadas, pés afastados e o corpo apalpado para a busca de drogas, armas ou objetos ilegais. Os entrevistados relataram que durante a ação foram vítimas de agressões verbais e tratados com desrespeito. De entre as expressões mais comuns, o CESeC destaca “neguinho”, “meliante”, “Seu Jorge”, “Bob Marley”, “escurinho”, “favelado”, “moleque”, “ganso” – em referência a quem já tem passagem na polícia ou tem envolvimento com droga –, e “marmita” – mulher de traficante. 

No que diz respeito às mulheres, os cabelos e as carteiras são o foco da revista. O estudo aponta que foram inúmeros os relatos de mulheres que tiveram as suas tranças “afro” inspecionadas ou os pertences despejados em cima do carro da polícia ou no chão. O polícia jogou tudo da minha mala na rua, não achou nada e foi embora. Eu fiquei ali olhando tudo no chão. Fui começando a recolher e as pessoas que estavam assistindo vieram me ajudar. Foi muito ruim, muito humilhante”, conta uma entrevistada negra. 

Exposição à violência

Além das abordagens, o relatório mostra que os negros são fortemente expostos a outros tipos de violência policial. No contexto das operações de segurança nas favelas, trocas de tiros e confrontos de agentes com criminosos são cenários recorrentes. “Os moradores de favelas são diretamente prejudicados pelas operações, que são tão danosas quanto ineficientes”, diz o boletim.

Entre os entrevistados, mais da metade dos respondentes negros já presenciou agressões físicas de polícias a pessoas, teve a sua casa revistada, bem como conhece alguém preso, ferido ou morto pelos agentes de segurança.

“Policiamento é racismo”, acusa CESeC

O boletim “Elemento Suspeito” teve a sua primeira edição em 2003. Depois de quase duas décadas, no relatório afirma-se que o discurso de “viés racial” e as tentativas de reformar a polícia “chegam ao seu esgotamento à vista do amontoado de corpos acumulados no tempo”. Ao comparar os resultados das duas edições, conclui-se que ameaças e intimidações durante as ações policiais aumentaram 253%, enquanto o uso de armas em abordagens cresceu 188%.

“Em 2003, dizíamos que nossa pesquisa era sobre policiamento e racismo. Em 2020, dizemos que policiamento é racismo e que é impossível pensar as relações entre polícia e sociedade sem entender que o racismo é constitutivo e estruturante do policiamento e do fazer policial”, comenta Sílvia Ramos no mesmo documento.

O que diz a Polícia Militar

Mesmo sem comentar diretamente os dados apresentados no boletim, a Secretaria de Estado da Polícia Militar (SEPM) alega, em comunicado enviado ao JPN, que a Polícia Militar é “uma corporação mais que bicentenária com uma missão central de defender a sociedade do Rio de Janeiro” e que suas ações “são baseadas em protocolos rígidos, treinamentos e orientação”.

“A maioria do contingente policial militar vem das classes de base da sociedade, incluindo as comunidades carentes, o que torna nossos policiais parte do contexto estrutural, histórico e social em que atuam”, afirma a SEPM. “Vale lembrar que a Corporação foi uma das primeiras instituições públicas do país a ser comandada por um negro e hoje mais da metade de seu efetivo de praças e oficiais é composto por afrodescendentes”, referem na mesma nota.

Artigo editado por Filipa Silva