A 18 de outubro deste ano, a BBC assinalou o seu centésimo aniversário. A propósito, o JPN entrevistou Luís António Santos, antigo jornalista, hoje professor universitário, que passou sete anos no Serviço Mundial da cadeia britânica. Uma estação pioneira e de referência para o jornalismo mundial.

Um simples anúncio de jornal abriu a Luís António Santos as portas do Serviço Mundial da BBC. Uma “aventura” que teve início em 1991 e que se prolongou até 1997, período em que trabalhou também como correspondente em Londres do “Diário de Notícias”.

Em início de carreira como jornalista profissional, o agora professor de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho [também o foi no curso de Ciências da Comunicação da Universidade do Porto, de que o JPN faz parte] encontrou na histórica cadeia de rádio e televisão britânica um mundo novo.

Em entrevista ao JPN, o docente, que foi jornalista por mais de uma década, sublinhou a importância que a agora centenária BBC (ver caixa) teve no estabelecimento dos media públicos de todo o mundo, relembrando também o seu pioneirismo em formatos de televisão e rádio: “A programação infantil que não seria o que é se não fosse a BBC, programas sobre a natureza, com o Sir David Attenborough, que nós achamos extremamente normais, foram criados na BBC, as radionovelas…”, exemplificou.

Os 100 anos da BBC

A BBC (British Broadcasting Corporation) foi fundada a 18 de outubro de 1922, no Reino Unido, por iniciativa de um grupo de fabricantes de rádios e foi pioneira em vários planos da história da comunicação. Teve como primeiro diretor-geral John Reith, que espalhava o ideal de que a principal função do serviço público da BBC era educar, informar e entreter. Era um forte apoiante dos modelos da Carta Real, o documento que determina de forma clara o objeto de atuação, a missão e os principais propósitos públicos da BBC. A atual entrou em vigor em 2017 e é válida até 2027.

O primeiro serviço de rádio desta estação ocorreu no dia 14 de novembro de 1922, através de um programa dividido entre um boletim de notícias e a previsão meteorológica.

As emissões de sinais de televisivos a título experimental ocorreram no ano de 1932, por iniciativa de Jonh Logie Baird, sendo também neste ano que se dá início ao Serviço Mundial da BBC. Em 1936, regularizou-se o serviço televisivo, pioneiro em todo o mundo.

As notícias produzidas por esta estação em português estrearam a 14 de março de 1934, tornando-se na atual BBC News Brasil.

Face ao surgimento da ITV, rede privada, em 1954, a BBC perdeu o seu domínio televisivo, mantendo-o no campo da rádio até aos anos 70. A concorrência foi aumentando com o tempo. 

A BBC é reconhecida pelo seu prestígio jornalístico, como um lugar para a informação fidedigna, rigorosa, de caráter neutro e imparcial, sendo esta uma das questões que constroem a sua identidade.

Atualmente, Tim Davie é o diretor-geral da BBC e as áreas informativas abrangidas por esta estação são inúmeras, desde desporto, cultura, saúde, economia, entre muitas outras. O Serviço Mundial da BBC é caracterizado mundialmente por ter o maior número de emissões no que corresponde a área, alcance de audiências e idiomas transmitidos.

A BBC tem ainda uma forte presença online e nas redes sociais, incorporando a evolução dos tempos e as novas formas de consumo de informação e entretenimento. Além de ser a mais antiga estação pública nacional do mundo, é também aquela que emprega mais pessoas: 22 mil no total, 19 mil só no serviço público.

Em Londres, o português sentiu um grande contraste face à realidade que conhecia em Portugal, sobretudo em aspetos que fazem a imagem de marca da BBC: “Aprendi coisas diferentes sobre a forma de fazer jornalismo, nomeadamente, a ser muito rigoroso na forma como verificamos as informações”.

Uma entrevista a um ativista palestiniano ou uma outra a um líder político africano que “não estava muito equilibrado” são exemplos de episódios que ajudam a explicar como as coisas se faziam na BBC, com debate, muita ponderação e regras bem definidas à mistura.

O ambiente multicultural –  “A cantina da BBC era extraordinária!” – e a relevância que a estação teve em muitos países do mundo dominados por regimes autoritários ou ditatoriais, onde as populações tinham pouco ou nenhum acesso à informação, são também destacados pelo professor.

Claro que nem tudo são rosas, e ainda recentemente, na cobertura das cerimónias fúnebres da Rainha Isabel II, o antigo jornalista considera que se cometeram excessos: “Apesar de se tratar de um funeral de Estado e de haver interesse jornalístico na notícia, a sua cobertura põe a notícia numa área de entretenimento, não da informação jornalística”.

Hoje, Luís António Santos acredita que a BBC “soube crescer e ir para outros lugares, tendo uma produção digital enorme”. Com “orgulho especial por ter estado em sete anos dos 100” da BBC, o docente tem uma perspetiva positiva sobre o futuro da estação, esperando “que possa ser um agente de equilíbrio da função mediática não apenas no Reino Unido, mas também um exemplo para outros países”. 

JPN – Como é que começou a sua atividade na BBC e como foi a integração no serviço mundial da cadeia?

Luís António Santos (LAS) – Eu trabalhava no “Jornal de Notícias” e numa rádio. Lembro-me que um colega meu do jornal me disse: “Olha, está aqui um anúncio no ‘Expresso’ para a BBC. Falas bem inglês, podias concorrer.” Achei interessante. Não pensei muito naquilo e concorri. Tinha várias etapas de seleção e a primeira era um teste escrito. A concorrência era grande, tinha mais de 100 pessoas. Fui fazendo as etapas, mas na minha cabeça aquilo não ocupava espaço. Foram testes escritos e, num outro momento, testes de voz. 

Depois, houve uma altura em que recebi uma carta a dizer que queriam conversar comigo. Perguntaram se eu podia ir a uma entrevista a um hotel no Porto. Quando chego à entrevista, dizem-me assim: “Nós, ao Porto, viemos só falar consigo” e eu fiquei em pânico, porque vivia com os meus pais e não lhes tinha dito nada sobre o assunto. Conversámos – eram três pessoas a fazer-me a entrevista – e percebi que já não era uma entrevista, era só uma conversa, eles já tinham decidido. Nessa altura, foram contratadas, em outubro ou novembro, duas pessoas em Lisboa e eu no Porto. Em fevereiro, eu estava lá.

Pedi-lhes para passar o Natal em Portugal, porque estava cheio de medo de dizer aos meus pais: “Olhem, vou-me embora”. A vida era diferente do que é hoje. Quando a gente ia embora, ia mesmo embora. Escrevíamos umas cartas, mas era muito longe. Ir embora era uma coisa muito pesada.

E, pronto, fui para Inglaterra. Eu já era jornalista profissional, portanto, havia coisas ao nível do comportamento profissional que eu conhecia, mas a casa tinha regras muito diferentes. Eu trabalhava no serviço de língua portuguesa, mas passava os dias em formações. Isso foi nos primeiros meses até quase ao verão desse ano. Foi assim que eu comecei essa aventura, um bocadinho à sorte, sem premeditação, mas foi muito interessante, claro.

JPN – E o que é que a sua passagem por lá significou para a sua formação e para a sua carreira?

LAS – Há coisas que aconteceram naquelas circunstâncias, porque estava em Londres, a fazer aquele trabalho, que não tenho a certeza que teriam acontecido se eu estivesse em Portugal, nunca sabemos. Quando fui para Inglaterra, tinha 23 ou 24 anos, e fui a pessoa mais nova de sempre a ir para o serviço mundial da BBC. Estavam lá sobretudo pessoas de idade e acho que me contrataram para terem pessoas novas. Eu aprendi coisas diferentes sobre a forma de fazer jornalismo, nomeadamente, a ser muito rigoroso com a forma como verificamos as informações.

Lembro-me perfeitamente que um dos exercícios para o recrutamento era uma entrevista em inglês a um ativista palestiniano. De facto, era uma pessoa muito envolvida, tinha uma opinião muito forte sobre os israelitas e disse umas coisas pesadas e eu, habituado a Portugal, aproveitei aquelas coisas e pus aquilo no meu trabalho. Posteriormente, disseram-me que não podia pôr aquilo no ar, porque não tinha prova do que o ativista tinha dito. 

Quando estamos a dar voz a alguém, somos corresponsáveis pelo que essa pessoa está a dizer, mas em Portugal não damos importância a isso. Lá, é levado muito a sério, é muito diferente. Aprendi muito sobre a disciplina da produção jornalística. Isso mudou a forma como eu entendia a profissão.

Também foi bastante importante, porque enquanto estive lá fiz um mestrado em política internacional. Senti a necessidade, enquanto jornalista, de aprender mais coisas. Estar em situações mais desconfortáveis do ponto de vista da confiança levou-me a procurar mais segurança com mais formação e informação. 

Luís António Santos nos estúdios da BBC no início da década de 90. Foto: D.R.

JPN – Quais foram os principais desafios enquanto português a trabalhar numa cadeia britânica de renome?

LAS – Houve desafios do ponto de vista pessoal, que são desafios muito simples – estar numa sociedade que se organiza de maneira diferente, com uma língua diferente, em que o acesso às fontes é feito de uma certa forma. A forma como as instituições se organizam é um pouco mais formal do que aqui. Durante algum tempo, fiz Desporto no “Jornal de Notícias” e, às vezes, ia ao Estádio das Antas e íamos até à porta do estádio onde estava o senhor Soares. Os jogadores vinham do treino e ele deixava-nos entrar e sentar nuns banquinhos no balneário a entrevistar os jogadores. Não havia, como hoje, um diretor de comunicação, um assessor a dizer que perguntas podíamos fazer, nada. Em Inglaterra, era tudo muito mais formal. Tínhamos lugares para estar, era tudo muito diferente. Íamos para o Palácio da Rainha e tínhamos que ir de fato. Até os cameraman, o que eu achava extraordinário.

Tive de me adaptar à forma como aquela sociedade funciona, criar uma rede de fontes nova, por estar num sítio novo. Eu trabalhava em português para África e, logo, as minhas fontes passaram a ser todas novas em Moçambique, Angola, São Tomé, Cabo Verde, Timor Leste… Falávamos com pessoas que lutavam pela independência, que muitas vezes se encontravam no mato ou falávamos com padres para ter números de telefone. Isto foram tudo desafios para mim. 

Outro desafio relativo à experiência profissional tem a ver com o lidar com pessoas de todo o tipo de proveniências. A cantina da BBC era extraordinária. À volta de uma mesa ouviam-se falar seis línguas diferentes, no mínimo.

Ter contacto com o sistema de produção também, dominado pela língua inglesa. Escrutinavam muito os repórteres portugueses quando apresentavam propostas de reportagem. Tinha a sensação de que não confiavam muito em nós. Não gostava disso, mas tínhamos de lidar com essas situações.

Outro desafio, teve a ver com o facto de ser também correspondente do “Diário de Notícias”. Tinha a missão de cobrir assuntos de política inglesa. Isso ajudou-me a perceber melhor o lugar onde vivia, logo tudo me proporcionou um momento de grande conhecimento também sobre o mundo, não só sobre política.

JPN – Existiu alguma altura ou caso especial que o marcou na sua passagem pela BBC?

LAS – Lembro-me de fazermos uma entrevista a um líder político importante na altura, de um país africano, e de ele não estar, digamos, muito equilibrado. Estava um pouco ‘transtornado’ por substâncias. E nós fizemos uma entrevista enorme e não pusemos nada no ar. Pensei que, se fosse em Portugal, ia para o ar e a gente ‘queimava’ o homem. Depois de alguma discussão, decidimos não publicar e, não me lembro de que lado estava, mas lembro-me de pensar que ainda bem que tivemos espaço para discutir – isto é um luxo.

Também na altura da discussão da independência de Timor, aconteceram em Inglaterra negociações entre os timorenses e os representantes do governo da Indonésia. Cheguei a ir a várias reuniões e a criar relações com pessoas de importância no governo timorense, porque as coisas eram muito emocionais e fortes. Lembro-me de pensar que esse foi um momento especial, que transcende o jornalismo. Sentia a responsabilidade daquilo, que era muito importante.

Também do ponto de vista pessoal, lembro-me de duas bombas do IRA [o Exército Republicano Irlandês] terem explodido em locais muito próximos de mim – uma dentro de um autocarro junto ao edifício onde trabalhava e outra perto de minha casa, o que foi algo completamente fora do normal.

JPN – Houve algo que o surpreendeu no contacto com o funcionamento interno da BBC?

LAS – Passei a ser muito sensível ao assunto de que é preciso haver um serviço público de media – a BBC é a primeira entidade de serviço público de media, tendo criado isso noutros países. É um espaço que tem todas as garantias para ser autónomo e que pode ser diferente das outras empresas, que têm pressão comercial sobre elas. Do ponto de vista jornalístico, isso significa dar mais voz a coisas que não aparecem nos media, poder fugir da agenda normal, poder ser mais livre na escolha dos temas. Percebi que isto era central na forma como a casa era gerida.

Também percebi que a existência de regras ajuda toda a gente a perceber com o que conta. Livros que indicavam que tipo de palavras podia usar ajudavam-me a medir o discurso. A BBC escolhia palavras o mais neutras possíveis pensando muito nesse assunto para designar diversas situações. Isso ajudava-me a ter menos dúvidas no que estava a fazer.

JPN – O que é que acredita que a BBC significa para o jornalismo internacional?

LAS – Sobretudo nos últimos cinco ou sete anos, a BBC tomou algumas decisões danosas para a sua independência. Mas acho que isto é um episódio e estamos a falar de 100 anos. À partida, é relevante, mas é um episódio, um momento e tenho a expectativa que algumas coisas serão corrigidas nomeadamente ao nível da interferência do governo, que começou a querer nomear pessoas para a BBC e isso nunca aconteceu no passado. 

A BBC tem uma imagem muito forte, é dos sites mais conceituados ao nível internacional e isso tem a ver com essa força, durante estes 100 anos, na construção de uma imagem de prestadora de serviço público de informação e não só. A BBC foi pioneira na produção de novos formatos televisivos – programação infantil, que não seria o que é se não fosse a BBC, programas sobre a natureza, com o Sir David Attenborough, que nós achamos que são extremamente normais e foi na BBC que foram criadas. 

Falamos ao nível televisivo, mas também podemos falar na rádio. É a BBC que tem os formatos de radionovelas, de grandes debates, de um fenómeno que ainda hoje se destaca que é o Island Records. E hoje já não creditamos essas coisas à BBC. Tem um lugar central na história da comunicação social no planeta.

O que a BBC fez, na altura em que eu trabalhava nos seus serviços, por países que, em determinados momentos da sua história, não tinham regimes muito favoráveis à disseminação de informação, é de um valor absolutamente incalculável.

É muito difícil explicar o que a BBC significa para o jornalismo internacional, mas acho que tem bastante importância por criar uma ideia de serviço público, por ter criado novos formatos televisivos agora adotados no mundo inteiro, por ter dado ao jornalismo um lugar central na ideia de serviço público e porque nunca há uma necessidade de apresentar uma imagem positiva da Inglaterra – apesar da compreensível ideia de uma identidade britânica por arrastamento, nunca me senti pressionado a falar bem da Inglaterra.

A importância da BBC para países que passaram por momentos menos bons do ponto de vista político é ainda muito valorizada nesses países. Não podemos ficar parados no passado, hoje em dia a BBC tem uma produção digital enorme – soube crescer e ir para outros lugares.

Temos de reconhecer esse lugar único na história. Se for num contexto europeu, é essencial, mas mesmo em contexto mundial é um lugar extremamente especial.

JPN – Como caracteriza a cobertura e o posicionamento da BBC perante a morte da Rainha Isabel II?

LAS – Esses são sempre os lugares de maior fragilidade para uma empresa. As coisas que eles fazem são para o Reino Unido, mas depois são difundidas para o resto do Mundo. Mas a ideia que temos em Portugal de que esta cobertura foi extremamente exagerada, eventualmente, começa em Inglaterra e eu diria que o lugar onde é mais justificável ser exagerado é em Inglaterra. É mais justificável que a BBC, a Sky News, a ITV tenham exagerado na forma como cobriram este evento do que a RTP ou a SIC ou a CNN que transformam aquilo num evento que se passou em Portugal. Não se ouviu falar de outra coisa durante 12 dias, é absolutamente inenarrável. 

E é essa a crítica que fazem ao departamento jornalístico no Reino Unido também – a BBC fez cedências ao entretenimento – apesar de se tratar de um funeral de Estado e haver interesse jornalístico na notícia. A sua cobertura põe a notícia numa área de entretenimento, não da informação jornalística.

JPN – Qual acredita que será o futuro da BBC?

LAS – Uma vez mais porque acredito que poderá haver mudança no governo do Reino Unido – e digo isto como cidadão português com uma ligação emocional à BBC – porque a BBC é mais do que uma empresa britânica que trabalha e opera no Reino Unido, tem uma marca global – espero que a BBC tenha um futuro muito relevante, em que lhe seja garantida autonomia de funcionamento, autonomia financeira e que possa ser um agente de equilíbrio da função mediática não apenas no Reino Unido, mas também um exemplo para outros países. Há leituras mais pessimistas que a minha, mas espero que seja possível isso acontecer. Tenho um orgulho especial por ter passado lá sete anos dos cem, portanto espero que sobreviva muito mais.

Artigo editado por Filipa Silva