Em entrevista ao JPN, o correspondente internacional fala desde Tel Aviv sobre o estado atual do conflito entre Israel e a Palestina, as negociações de paz falhadas, o luto de palestinianos e israelitas e o papel do jornalismo. O repórter tem esperança no papel das novas gerações e não tem dúvidas de que só "com a ajuda dos países árabes mais poderosos" é que o problema pode encontrar solução.
Henrique Cymerman é jornalista e escritor e vive em Israel desde os 16 anos. Nasceu no Porto em 1959, no seio de uma família de descendência judaica que perdeu elementos no Holocausto. A história suscitou a sua curiosidade por Israel. Quanto mais lia, mais essa curiosidade crescia.
Aos 11 anos, disse aos pais que ia mudar-se para Israel, ao que eles responderam: “Quando fores maior, vais decidir.” E teve esse momento de decisão quando se mudou para o país da estrela de David cinco anos mais tarde. Foi fazer voluntariado numa comunidade e apaixonou-se por tudo o que o país oferecia. Num telegrama, escreveu aos pais: “Fico Israel”. Como resposta, os pais enviaram o seu irmão mais velho, Carlos Cymerman, para ver como estava. Os dois acabaram como jornalistas correspondentes em Israel.
Henrique Cymerman trabalha para canais televisivos como a SIC, Univision (EUA) e a Telecinco (Espanha), e os jornais “Expresso” e “La Vanguardia” (Espanha). É também professor universitário e autor de livros como “Conversando com o inimigo” e “O terror entre nós”. Já recebeu várias distinções, entre elas as comendas da Ordem Infante D. Henrique e a Ordem de Mérito do Rei de Espanha, o prémio de reportagens investigativas internacionais Daniel Pearl, e o Prémio dos Direitos Humanos, concedido em Espanha pelo trabalho que fez sobre a visita com o Papa Francisco ao Médio Oriente. Hoje tem a nacionalidade portuguesa, espanhola e israelita.
Nesta entrevista ao JPN, no rescaldo de mais uma operação israelita em Jenin, na Palestina, considerada uma das maiores incursões na Cisjordânia dos últimos 20 anos, Cymerman fala sobre o estado atual do conflito, das tentativas falhadas de paz, do luto por resolver de ambas as sociedades e do papel do jornalismo.
Cymerman recorda que as relações entre Israel e Palestina “estão totalmente paralisadas” e considera que só com a ajuda dos países árabes, como a Arábia Saudita e o Egito, é que o conflito pode caminhar no sentido de uma resolução. Isso e com uma mudança geracional nas lideranças dos dois lados: “O que aconteceu no século XX é história. Precisam de olhar para a frente, e confio nas próximas gerações”, afirmou.
JPN – Acompanha o que se passa entre Israel e a Palestina como jornalista há muitos anos. Como é que classifica o conflito neste momento? Estamos numa altura particularmente distante entre ambas as partes?
Henrique Cymerman (HC) – Depois de muitos anos a acompanhar o tema, tanto a parte israelita como a parte palestiniana, acho que hoje é preciso olhar para este conflito como um conflito regional. Ou seja, ele inclui também outros países árabes da região. Nesse aspeto, estamos num momento muito particular, porque, por um lado, as relações entre Israel e os palestinianos estão totalmente paralisadas, e não há negociações há muitos anos por uma série de motivos, mas, por outro, Israel assinou, há três anos, um acordo de paz com quatro países árabes: os Emirados Árabes Unidos (EAU), o Bahrain, Marrocos e o Sudão. Chamam-se os Acordos de Abraão [originalmente, o acordo envolveu os EAU e o Bahrain; Marrocos e Sudão juntaram-se mais tarde].
Acho que vamos ver mais acordos de paz nos próximos anos. Então, os palestinianos ficam um bocadinho para trás e há uma radicalização grave na Palestina.
Gaza está controlada por um grupo islamita, que não aceita Israel, que é o Hamas, e o Hamas está a tentar apoderar-se da Cisjordânia. Nós vimos no outro dia [de 3 a 5 de julho], por exemplo, em Jenin, no norte da Cisjordânia, uma operação militar israelita precisamente contra o Hamas, porque o Hamas está a tentar apoderar-se da Cisjordânia. É uma luta eterna na Palestina, muito forte.
Então, hoje, a única solução que podemos ter no futuro para darmos um passo em frente no tema palestiniano é com a ajuda dos países árabes mais poderosos, neste caso a Arábia Saudita e o Egito, sobretudo, mas também acho que Marrocos, os Emirados e a Jordânia podem vir a ter um papel importante. Não nos esqueçamos que, até 1967, a Cisjordânia pertencia à Jordânia e Gaza ao Egito. Então, eles têm ali uma responsabilidade e uma missão.
A única solução que podemos ter no futuro para darmos um passo em frente no tema palestiniano é com a ajuda dos países árabes mais poderosos.
JPN – Como é que a situação é diferente em Gaza e na Cisjordânia?
HC – Totalmente. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Quando houve o golpe de estado do Hamas, o grupo islamita, em 2007, a Faixa de Gaza foi a primeira georegião do mundo que passou a ser uma espécie de república islâmica. Por isso, a lei lá é completamente diferente da Cisjordânia.
A Cisjordânia está controlada pela Autoridade Nacional Palestiniana, e, de alguma maneira, Israel também tem controlo da Cisjordânia. Enquanto que Israel retirou-se totalmente de Gaza em 2006 e, desde esse momento, Gaza realmente não contém nem colonos nem soldados israelitas. É uma zona totalmente palestiniana, mas controlada pelo Hamas e, indiretamente, pela Jihad Islâmica, que também é um grupo controlado pelo Irão. Enquanto que na Cisjordância temos a Autoridade Palestiniana, que, apesar de tudo, teve negociações durante muitos anos com Israel, e continua a ter. Existe, eu diria, trocas económicas importantes para os dois lados, e também uma colaboração em termos de segurança.
O que é curioso é que há um confronto profundo entre Israel e a Autoridade Palestiniana em muitos aspetos, mas ambos colaboram na luta contra o Hamas para impedir que os islamitas se apoderem da Cisjordância, como aconteceu em Gaza. Digamos que, na Cisjordânia, eles querem uma Palestina secular, até democrática, enquanto que em Gaza o que eles querem é uma república islâmica, ao nível do Irão. Quando eles ganharam as eleições em 2007, o Hamas pretendia acabar com as eleições na Palestina. Assim, é totalmente diferente.
Na Cisjordânia, eles querem uma Palestina secular, até democrática, enquanto que, em Gaza, o que eles querem é uma república islâmica, ao nível do Irão.
JPN – Há a perceção pública de que o conflito é entre Israel e a Palestina. Quem são, neste momento, os atores do conflito e os atores que podem resolver este conflito?
HC – Tentando simplificar, os atores principais do conflito são Israel, por um lado, e a Autoridade Palestiniana pelo outro. O problema é que não existe só uma Palestina, existem duas. Ou seja, o setor da paz de Israel – que, neste momento, está a manifestar-se por questões relacionadas com a Justiça, e outras – normalmente quer que se crie um estado palestiniano ao lado de Israel, mas tem um problema, que é: como explicar à opinião pública israelita o papel do Hamas? Como é que se pode fazer a paz com um movimento que não aceita a tua própria existência?
Mesmo as pessoas que, em Israel, aceitam e impõem a paz – não falemos já de ministros radicais que estão no governo – têm esse problema hoje: como permitir ou fazer com que Israel assine um compromisso com um grupo que não aceita a sua existência.
À volta de tudo isto, eu diria que há dois tipos de protagonistas: há o Irão e os rivais do Irão. O Irão tem uma série de aliados no Líbano, em Gaza, na Cisjordânia, e tenta, de alguma maneira, reforçar os grupos radicais e impedir qualquer acordo entre Israel e a Palestina. No outro lado, estão os rivais do Irão, que são o mundo muçulmano sunita, que [corrente que] representa 75% do mundo muçulmano. São encabeçados pela Arábia Saudita e o Egito.
Na minha opinião, a Arábia Saudita é quem tem a chave, neste momento, para muitas coisas na região – eles são os donos de Meca e Medina, ou seja, quem tem todo o poder moral do ponto de vista muçulmano. O Egito, por ser um quarto do mundo árabe, ou seja, um em cada quatro árabes é egípcio. Então, eles são um bocado os Estados Unidos do mundo árabe, por assim dizer. Estes dois – e outros à volta deles, já disse os seus nomes também -, tentam levar de alguma maneira um compromisso entre os israelitas e os palestinianos. Acredito que a única solução que pode haver passa por eles. Ou seja, o caminho entre Ramala e Jerusalém passa por Riade e pelo Cairo.
O problema é que não existe só uma Palestina, existem duas.
JPN – Mas de que forma? Como é que eles podem ajudar?
HC – Eles têm que ser quem, no futuro, dê garantia que à Cisjordânia não vai acontecer o mesmo que aconteceu em Gaza. Ou seja, que primeiro haja um acordo que Israel se retire, se crie um estado palestiniano, e que, no dia seguinte, o Hamas não se apodere da Palestina toda. Eu vivo em Tel Aviv, ao pé do mar, e estou a cinco quilómetros da Cisjordânia. É a distância de uma avenida em qualquer capital europeia. Se aquilo estiver controlado pelo Hamas, o aeroporto de Ben Gurion [aeroporto de Tel Aviv] não vai poder funcionar, porque eles podem, com mísseis, ameaçar o aeroporto. Ou seja, é uma situação muito difícil e os únicos que podem impedir que grupos radicais se apoderem do futuro estado palestiniano são os países árabes encabeçados pela Arábia Saudita e pelo Egito. E eles têm todo o interesse em o fazer. Acho que essa é uma saída possível para o futuro.
JPN – Acredita que esta é uma guerra religiosa?
HC – Não. Não começou como uma guerra religiosa, mas, infelizmente, nos últimos anos tem cada vez mais elementos religiosos e isso não faz mais do que complicar o conflito. Quanto mais religioso for o conflito, mais falta de soluções tem, mais difícil é de chegar a um compromisso, porque quando tu és o dono da verdade absoluta, não estás disposto a chegar a um compromisso. Esse é o grande perigo que temos, que é: conforme os anos vão passando, o conflito, que tem uma base territorial, e eu diria também uma base cultural, sociológica e até económica, pode transformar-se num conflito religioso cada vez mais, e quanto mais tempo passar mais difícil será de resolver.
JPN – Quando fui à Cisjordânia, em maio de 2022, apercebi-me que era comum as pessoas de ambos os lados conhecerem alguém que já tinha falecido fruto deste conflito. Ouvi muitas pessoas a dizerem, principalmente na Cisjordânia, “já não queremos a nossa terra de volta, nós já só queremos que nos deixem em paz”. Mesmo que as coisas ficassem como estão – com os colonos a viverem na Cisjordânia -, mesmo que se reconhecesse um estado palestiniano, temos sempre o problema de o Hamas poder ir para a Cisjordânia. Em suma, as autoridades parecem distantes de um acordo. As pessoas refletem também essa distância? Como é que acha que as duas sociedades encaram o conflito?
HC – O Hamas já está na Cisjordânia, e está cada vez mais. Isso é um problema muito sério e interno palestiniano, e eles estão extremamente preocupados com isso. É por isso que não há eleições na Palestina há 16 anos. Eu lembro-me quando estava com o Jimmy Carter, ex-presidente dos Estados Unidos, e ele era observador nas eleições. Ele dizia: “Estas são eleições democráticas, sem dúvida”. Mas o que aconteceu é que foram eleições democráticas nas quais se votou [pela vitória de] um grupo não democrático, o Hamas e, a partir daí, a democracia ia acabar. É por isso que não há eleições há 16 anos, porque sabem que o Hamas pode vir a ganhar.
O tema do luto é um tema extremamente importante que se trata muito pouco e é uma excelente pergunta. Eu acho que, nas duas sociedades, havia uma situação de pós-trauma, e esse é um dos motivos pelos quais ainda não se chegou a um acordo de paz entre as duas partes e que todas as negociações que houve, desde as Conferências de Paz de Madrid, em 1991, não se chegou a mais acordos. Em parte, é pelo lado psicológico. As duas partes têm umas feridas muito profundas e é muito muito difícil. É um trabalho, mais que para negociadores, para psicólogos: tratar as duas sociedades. Eu acredito que em Israel, que é uma sociedade profundamente democrática, se a população tivesse a segurança de que não haveria perigo como resultado de um acordo, o acordo podia acontecer. Lembro-me de vários momento nos quais estivemos muito próximos disso.
Lembro-me de uma coisa extremamente importante, de que quase ninguém fala: o terrorismo suicida do Hamas e da Jihad não começou nos piores momentos da ocupação israelita da Cisjordânia e de Gaza, começou quando havia mais esperança de paz, depois dos Acordos de Oslo, de 1993.
Lembro-me de momentos em que se falava da criação de um estado Palestiniano e o governo de Israel estava disposto a negociar isso. Lembro-me que o grande general da paz, Yitzhak Rabin – eu fui o último a entrevistá-lo, 24 horas antes do assassínio dele por um radical [em 1995] -, estava disposto a compromissos extraordinários. Lembro-me de estar com ele quando explodiu um autocarro com bombistas suicidas. Havia dezenas de vítimas e tiravam os cadáveres dos autocarros. Eu estava com Rabin a fumar um cigarro, ele pálido, e as palavras que ele dizia eram: “porquê agora? porquê agora?”. Ou seja, porquê agora, que temos esperança de paz, vêm estes grupos e tentam apagar a luz ao fim do túnel.
O terrorismo começou nos melhores momentos, não nos piores, porque queria parar o que achavam que era uma traição, que era negociar com o inimigo e chegar a um acordo com ele. Então, há muitos aspetos psicológicos dentro deste conflito, que são agravados também pelos temas religiosos.
O terrorismo suicida do Hamas e da Jihad não começou nos piores momentos da ocupação israelita da Cisjordânia e de Gaza, começou quando havia mais esperança de paz.
JPN – Gostava de pegar nesta parte dos acordos que mencionou e ligá-los à minha próxima pergunta, que é relativa ao direito internacional. A relatora especial da ONU para a Palestina, Francesca Albanese, fez uma declaração, na qual acusou Israel de transformar a Palestina numa prisão a céu aberto. Não é flagrante a violação de direitos humanos por Israel nos territórios palestinianos? Como é que o direito internacional tem condições para se aplicar?
HC – A última instituição que pode julgar o que aqui está a acontecer, é a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Porque se formos analisar o que eles fizeram nos últimos anos e o número de decisões que eles tomaram em diferentes conflitos do mundo nas últimas décadas, vamos ver que há uma disporporção total e absoluta relativamente ao conflito entre Israel e a Palestina. É dez ou 15 vezes mais do que qualquer outro conflito.
Por exemplo, assassínios no Darfur: um milhão de mortos; agora na invasão da Ucrânia, ou nos conflitos dos Balcãs – em todo o conflito entre Israel e todo o mundo árabe, não só na Palestina, houve menos de 100 000 mortos nos últimos 100 anos. Na Síria, desde 2011, houve pelo menos meio milhão de mortos, e eu acredito que o número real é superior. No entanto, se formos a ver as resoluções da Comissão de Direitos Humanos, praticamente não falam da Síria. Ou seja, há um desequilíbrio muito grande na atitude da comunidade internacional em relação ao conflito entre Israel e a Palestina.
Há aqui muitas questões, o que não quer dizer que não haja violações de direitos humanos pelos dois lados durante todos estes anos. Por um lado, Israel continua a ocupar um território e continua sem ter fronteiras definidas – é o único pais do mundo que ainda não tem fronteiras definidas. Tem-nas com o Egito e com a Jordânia, com quem já assinou a paz, e de alguma forma também com o Líbano – a comunidade internacional aceitou a fronteira -, mas com a Palestina da parte da Cisjordânia não tem. Em Gaza, Israel retirou-se totalmente e a fronteira está determinada, ou seja, não há um problema de fronteira com Gaza mas há, sim, com a Cisjordania, e isso é crítico para os dois lados.
Em qualquer caso, os direitos humanos não se podem isolar do direito de um pais a defender-se quando é atacado, em poucos anos, por mais de 200 bombas humanas, ou seja, pessoas que vêm e que se explodem dentro do pais. Qualquer nação que respeite os direitos humanos, como um pais da Escandinávia, por exemplo, que são os grandes defensores dos direitos humanos, acho que se defenderia numa situação assim, na qual mais de mil civis são assassinados por terrorismo nas ruas das suas cidades.
Estive a falar há dias no parlamento do Canadá. Falei no parlamento espanhol e no senado francês nos últimos seis meses, e o que eu disse é: “Meus senhores, se querem ajudar o Médio Oriente, deixem de adotar essa posição de condenação a um dos dois lados – e aqui vale tudo, vale na parte israelita e também condenar a parte palestiniana – e tentem ser construtivos, tentem encontrar soluções, ajudar a encontrar soluções e a entender os medos reais das duas partes”. É só assim que se pode mudar de narrativa e tentar conseguir um compromisso salomónico.
Há um desequilíbrio muito grande na atitude da comunidade internacional em relação ao conflito entre Israel e a Palestina.
JPN – O jornalismo deve ser isento, mas muitos órgãos de comunicação social não são isentos sobre este conflito e dizem que é não é possível sê-lo. Há liberdade de informação quanto a este conflito, tanto na Palestina como em Israel? Que leitura faz, que está aí, do modo como os principais órgãos de comunicação social cobrem este conflito?
HC – Israel é um dos países com mais liberdade de informação que eu conheço. Ou seja, do ponto de vista de informação e de liberdade, nesses aspetos, aqui são totais. Infelizmente, na Palestina não é assim, porque, hoje em dia, é uma autocracia, como acontece na maioria dos países do Médio Oriente, se não em todos. Talvez a Tunísia seja uma pequena exceção, mas não totalmente.
Em qualquer caso, aqui há 25 canais árabes, entre eles, Al Jazeera e a NBC da Arábia Saudita – estão todos aqui: canais libaneses e canais do Qatar, que são inimigos de Israel – têm televisões aqui. Esta manhã, estive a cobrir manifestações contra o governo em Israel no aeroporto de Ben Gurion, e estavam lá os canais árabes a transmitir sem qualquer problema. Infelizmente, televisões – já nem digo israelitas, até mesmo europeias – não podem ir a alguns destes países do Médio Oriente. Simplesmente, param-nos, detêm-nos na rua, porque, muitas vezes, não dão licença.
Quanto aos meios de comunicação ocidentais, ou a alguns de comunicação na Europa – sobretudo na Europa -, acho que há uma combinação de ignorância brutal. Há, eu diria, um superficialismo por parte de alguns meios de comunicação que se limitam a dissecar coisas que saem aqui e ali e noutros meios de comunicação; ou, por exemplo, em algumas agências noticiosas que têm interesses próprios. Também há muitíssimos estereótipos, e dizia o Einstein que é mais fácil destruir um átomo do que destruir um estereótipo.
Devíamos fazer um processo de reflexão muito profundo. Neste conflito não há índios e cowboys. É um conflito de duas verdades opostas e é preciso tratar isso dessa maneira: não há bons e maus nesta história. É uma história na qual há duas narrativas confrontadas e é preciso entendê-las. Quem quiser ajudar a fazer a paz, o que tem de fazer é aproximar-se das duas partes e mostrar empatia às duas partes, e não pôr-se numa posição de julgamento como vemos demasiadas vezes, numa espécie de fake news.
Eu vejo isso demasiadas vezes nos meios de comunicação de alguns países e é tremendo. Ensino na universidade e dou muitas conferências também na Europa, Estados Unidos e na América latina, e digo isso abertamente aos meus colegas: por favor, informem-se antes e sobretudo lembrem-se das bases do jornalismo: não misturar opinião com informação. Ouvir as duas partes antes de determinar.
Esta zona do mundo, Israel e Palestina, é a zona com mais jornalistas estrangeiros por metro quadrado. Só num bairro de Jerusalém vivem 400 correspondentes estrangeiros, mais do que em toda a África, onde há 250 correspondentes, então temos muita responsabilidade nas mãos.
“Neste conflito não há índios e cowboys. É um conflito de duas verdades opostas e é preciso tratar isso dessa maneira: não há bons e maus nesta história. Quem quiser ajudar a fazer a paz, o que tem de fazer é aproximar-se das duas partes e mostrar empatia às duas partes”
JPN – Ainda relativamente ao jornalismo, acompanhei as notícias sobre a morte da jornalista americano-palestiniana Shireen Abu Akleh. Quem se informou pelo “The Washington Post” leu uma narrativa completamente diferente da de quem se informou por Al Jazeera, que dava todo um contexto da relação entre Israel e os Estados Unidos da América, enquanto o “The Washington Post” dizia que era do interesse de Israel e dos Estados Unidos que houvesse uma investigação para averiguar responsabilidades. Disse agora que é importante informarmo-nos. Quem quer informar-se sobre um conflito com imparcialidade, o que deve fazer?
HC – Ler as duas – ou as várias – narrativas, e sobretudo sair do papel de tentar julgar um dos lados. Eu digo isso por experiência, por segui-lo, desde os primeiros momentos da Primeira Intifada [1987-1993], e posso dizer que, após três décadas, considero-me uma pessoa informada, mas sinto que ainda tenho que continuar a informar-me, ou seja, nunca deixar de aprender e pensar que já compreendi tudo.
Vejo demasiada arrogância nalguns meios de comunicação ocidentais, e citar a Al Jazeera não acho que seja uma espécie de prémio para os meios de comunicação portugueses ou de qualquer lugar do mundo.
Lembrem-se de uma coisa: a Al Jazeera pertence ao emir de um país que é uma ditadura, que é o Qatar, que tem os seus próprios interesses. É, no fundo, uma televisão com um país e não um país com uma televisão. É um país muito pequeno, mas com muito dinheiro, que está próximo da Irmandade Muçulmana, que é um grupo integrista fundamentalista islâmico. Ou seja, é preciso compreender tudo isso quando uma pessoa vai citar e vai ouvir o que dizem. Posso dizer claramente, como quem segue os acontecimentos desta região há muitos anos, que a Al Jazeera em árabe não é uma fonte fiável. É uma fonte totalmente parcial e eu acho que é preciso cuidado quando se cita a Al Jazeera; é melhor em inglês do que em árabe, é menos parcial, apesar de também o ser porque, no fundo, recebem o salário do emir do Qatar.
Al Jazeera tinha um homem, que era um dos líderes da Irmandade Muçulmana, um grupo que é a base de todos os grupos radicais – não só o Hamas e Jihad, mas também o Daesh, o estado islâmico,a al-Qaeda e muitos mais grupos mais salafistas radicais que nos querem devolver ao século VII na forma de vida, que apoiam cortar as mãos dos ladrões e lapidar as mulheres adulteras. Isto são coisas que o Sheik Yusuf al-Qaradawi [falecido em 2022, considerado um dos líderes mais importantes] da Irmandade Muçulmana, dizia todos os dias nos seus programas de Al Jazeera, ou seja, citar o que disse um canal com este tipo de ideologia, com este tipo de editorial, eu acho que é um bocadinho problemático e tenho a impressão que os próprios meios de comunicação que o fazem não sabem quem estão realmente a citar. É preciso muito cuidado e, sobretudo, diversificar fontes.
JPN – Israel tem uma grande vantagem ao nível do armamento. Estas vantagens fazem deste conflito com a palestina uma luta injusta?
HC – A vantagem pode ser que Israel é um país mais tecnológico. É um país que investiu muito na alta tecnologia, que teve muito êxito na ciência e tem boas universidades. Tudo isso tem um mérito próprio. Israel não tem por que pedir desculpa por isso, eu espero é que os países árabes vizinhos – e já esta a acontecer em alguns deles, começando pelos palestinianos – aprendam com esse modelo israelita e, em vez de investirem em coisas que muitas vezes não dão nenhum resultado no futuro, que invistam nisso: na ciência, na alta tecnologia, na inovação. Isso é o que lhes vai trazer um futuro melhor.
Hoje, um dos dramas em Israel ter um rendimento per capita superior ao do Japão e da Alemanha, e os palestinianos na Cisjordânia têm 55 mil dólares por ano, aproximadamente, e os palestinianos em Gaza têm menos de mil dólares por ano. Ou seja, as diferenças são muito grandes também do ponto de vista económico. Quando houver um acordo de paz no futuro, todos podem vir a ganhar e isso pode equilibrar. De alguma forma, que com isso a região ganhe este desenvolvimento científico e económico que Israel está a viver desde os anos 90 do século passado.
JPN – Mas o que fez Israel ter um crescimento tão grande e a Palestina um decrescimento?
HC – Israel investiu em 1995 na alta tecnologia. Hoje, a alta tecnologia representa 50% das exportações israelitas. Agora, Israel está a investir na inteligência artificial. Para já, a Palestina nunca existiu como um estado, existe sim Cisjordania e Gaza.
Vou contar uma conversa que tive com o presidente palestiniano, o Mahmoud Abbas. Ele disse-me uma vez, numa sinceridade total: “O grande drama nosso, palestiniano, é que os nossos líderes em 1947 não aceitaram a partilha desta zona, a que hoje está um estado judaico e um estado palestiniano. Disseram que não porque queriam tudo”. O que aconteceu foi que, no fim, Israel aceitou o seu estado e os palestinianos não. Israel ganhou a Guerra da Independência e eles continuam à espera de um estado 75 anos mais tarde, enquanto que Israel já existe há 75 anos [Israel assinou a sua Declaração de Independência em 1948].
HC – Ou seja, a Palestina já teve oportunidades durante a história, começando pela partilha proposta pelas Nações Unidas a 29 de novembro de 1947, e eles disseram que não, porque ouviram o que o mundo árabe lhes disse: “Deixem que nós conquistemos tudo e vocês ficam a ter todo o território”. Esse foi o primeiro grande drama. Depois, houve momentos no processo de paz nos quais parecia que eles podiam chegar a ter um estado palestiniano, por exemplo, no ano 2000, quando tanto o primeiro-ministro israelita como Bill Clinton propuseram a Arafat [ex-presidente da Palestina] 96% da Cisjordância e ele não aceitou. Os palestinianos perderam várias oportunidades ao longo da história e espero que a próxima geração de lideres palestinianos seja mais pragmática na sua forma de dirigir o seu próprio estado, porque é do interesse deles e é do interesse de Israel que exista um estado palestiniano – com a condição que viva em paz, ao lado de Israel.
JPN – Como são as relações entre Israel e os Estados Unidos hoje?
HC – São muito profundas. É verdade que este governo atual tem uma crise com o partido democrata norte-americano, mas, apesar de tudo, existe uma aliança profunda e extremamente importante. A propósito, nos primeiros anos de Israel não existia essa aliança com os Estados Unidos. Israel tinha uma aliança com a França que durou até à Guerra dos Seis Dias [em 1967], e depois acabou e começou a haver uma aproximação com os Estados Unidos, onde existe uma comunidade judaica importante. Acho que, ainda para a próxima geração, a relação entre Israel e os Estados Unidos é muito importante. É uma relação que tem motivos ideológicos, políticos, económicos, e é uma base extremamente importante.
A relação com os Estados Unidos é muito importante, mas não é suficiente. A União Europeia é o principal cliente de Israel hoje em dia. Existem diferenças do ponto de vista político entre Israel e a União Europeia e, agora, Israel tem uma relação crescente com a China, com quem começa a ter algum tipo de vinculo económico. Curiosamente, a China é um dos poucos países do mundo onde não existe anti-semitismo, que é um fenómeno que está a crescer muito na Europa.
Voltei hoje de manhã de Abu Dhabi, dos Emirados, e encontrei lá nos últimos dias um rabino que disse que se sente totalmente seguro nos Emirados, no Bahrain e na Arábia Saudita. Ele vai lá, veste-se como rabino e sente-se totalmente seguro. Recebe o máximo respeito, enquanto que isso simplesmente não acontece em algumas capitais europeias, onde as pessoas odiaram vê-lo como um rabino, tal como acontecia na Segunda Guerra Mundial, em Londres, Paris e Bruxelas. Isso mostra que há um problema na Europa que, justamente, na China não existe, o que é muito curioso. Israel começa a ter, diria, uma relação maior tanto com a China como a India, e, daqui a poucos anos, os dois países serão 40% da humanidade.
JPN – Como vê o futuro deste conflito?
HC – Estamos num momento muito crítico. É um momento de troca de gerações na liderança. Eu vi hoje muitos jovens manifestantes em Tel Aviv contra o governo, e pensei “algum destes jovens pode vir a ser, ainda nas próximas gerações, que substituam os atuais líderes, e podem ser eles que façam a paz”. Oxalá! É a minha esperança. Eu acho que chegou o momento de uma troca da geração na liderança em Israel também, e espero que isso aconteça porque é preciso um novo discurso. É preciso mudar muitas coisas. O que aconteceu no século XX é história. Precisam de olhar para a frente, e confio nas próximas gerações.
Editado por Filipa Silva