Foi sob o mote “Palavras que transformam” que Rui Miguel Abreu, jornalista na Blitz e radialista na Antena 3, a rapper Capicua e o documentarista Fábio Silva estiveram à conversa sobre a cultura hip hop no dia 22, na cafetaria do Cinema Batalha.
O poder transformativo do hip hop, o papel da mulher no seio da cultura e os desafios de chegar à casa dos 50 foram os principais temas da sessão “Palavras que transformam“, uma conversa inserida no alinhamento do Porto/Post/Doc deste ano, a propósito do programa que o festival dedicou aos 50 anos do hip hop.
Com moderação Rui Miguel Abreu, diretor da Rimas e Batidas, radialista e crítico de música, a conversa, ocorrida na tarde do dia 22, na cafeteria do Batalha, começou por abordar o caráter interventivo e transformador do hip hop.
Convidada da sessão, Ana Matos Fernandes, rapper conhecida do grande público pelo nome artístico Capicua, notou, a propósito, que “o rap nunca quis ser música de fundo. É uma coisa que interpela, que incita à ação, à mudança de comportamento e ao pensamento”, afirmou. O parceiro de painel, Fábio Gonçalo Silva, documentarista e corealizador do documentário “Hip to da Hop“, concordou e acrescentou: “o hip hop não criou nada, transformou tudo”, ao proporcionar “um espaço de conquista” e de identificação a uma massa votada à invisibilidade: “Tem esta coisa de dizer ‘eu existo, não sou invisível'”, referiu.
O hip hop veio também a estabelecer-se como uma forma de ação afirmativa e como veículo de transmissão de mensagens. Fábio Silva partilhou o seu testemunho e reconhece que o hip hop o ajudou: “Cresci com essa ideia de que, se crescer numa classe social, nunca mais vou sair dali, mas o hip hop mostra-nos que o bairro não sai de nós, mas nós podemos sair do bairro”.
O hip hop nasceu no seio de comunidades desprotegidas e marginalizadas e, em poucas décadas, tornou-se um dos tipos de música mais ouvidos pelos jovens, apelando à sua autoafirmação e à destruição de estigmas territoriais.
Para a rapper Capicua, o hip hop “provou que qualquer puto com uma coluna ou uma placa de som consegue, não só fazer música, mostrando a sua realidade quotidiana, as suas emoções, o seu calão, destruindo estigmas territoriais, como também contagiar positivamente os outros putos do mundo com esse espírito do it for yourself'”.
Em cima disso, o hip hop sempre contribuiu para a inclusão territorial, notou Fábio Silva, a partir do momento em que, por exemplo, as pessoas que fazem hip hop usam o nome do seu bairro de modo ostentatório.
Neste sentido, a rapper completa: “É como se pegássemos no estigma e o virássemos ao contrário, como a comunidade LGBT fez com o termo ‘bicha’, por exemplo: tornar uma coisa que é ofensiva, numa coisa que é bandeira. O hip hop fez isso sempre com a questão do território. Nunca nos afastamos da nossa identidade”.
Hip hop é também, para muitos, sinónimo de empoderamento. Rui Miguel Abreu refere o livro “Can’t Stop Won’t Stop”, “onde se argumenta que não teria existido um Barack Obama na Casa Branca, caso não houvesse uma geração hip hop atrás dele a operar todas essas mudanças”. O moderador da conversa justificou este fenómeno pelo reconhecimento que o hip hop proporcionou às pessoas negras, colocando algumas delas em lugares de poder, nomeadamente na televisão, e a marcar a narrativa.
As mulheres na cultura hip hop
Capicua confessa que “a lição mais feminista da sua vida” veio do hip hop. Contudo, numa cultura que ainda é dominada pelos homens, as mulheres sentem mais dificuldade em construir carreiras sólidas. Ana Matos Fernandes “gostava mesmo de ver mais mulheres a conseguir construir carreiras longas, porque sempre houve mulheres a fazer rap, só que depois vão desistindo, porque o meio não encoraja muito, sobretudo no início”.
A artista acrescentou ainda que os “putos” que marcam presença nos concertos dos “pares”, não são os que estão nos seus: “É muito raro encontrares um puto do hip hop que esteja disponível para se mostrar fã de uma mulher, mesmo que ela tenha skill.”
Além de todos os obstáculos que se impõem no caminho, o envelhecimento também afeta de forma diferente homens e mulheres. Se para os primeiros, ele é apenas “desaconselhado”, para as segundas é “proibido”, ironiza.
É muito raro encontrares um puto do hip hop que esteja disponível para se mostrar fã de uma mulher, mesmo que ela tenha skill.
Dicotomia do hip hop: um meio de partilha e de competição
Na Cafetaria & Bar do Cinema Batalha, o trio debruçou-se ainda sobre duas características aparentemente dicotómicas da cultura: por um lado, a competição, por outro, a partilha e entreajuda.
Para a rapper, que fez do seu hobbie profissão, as duas coisas são de extrema importância: “Primeiro, esse espírito comunitário super colaborativo, de veres as vantagens de cruzar públicos, o pessoal do hip hop faz isso desde sempre, esse espírito de nos valermos. Mas há outra vertente, que é a competição entre pares, com batalhas de MC, batalhas de breakdance, de grafite, que é o que eu acho que fez com que a cultura tivesse evoluído tanto em tão pouco tempo, sem nenhum apoio institucional”.
O espírito competitivo que se vive no hip hop afeta, no bom sentido, todos os seus intervenientes. Segundo Capicua, é “essa coisa de tu te picares com a qualidade dos outros que é boa, porque quanto mais os outros evoluem, mais tu vais evoluir”.
Para muitos, a altivez que os rappers têm em cima de um palco é confundida com “arrogância, uma certa masculinidade tóxica, ou um espírito de intimidação” mas, de acordo com a autora de dois discos em nome próprio e sucessos comerciais como “Vayorken“, esta atitude demonstra apenas “a capacidade de não pedir licença para pegar no microfone, dando uma lição de empoderamento”.
Idadismo no hip hop?
O hip hop é um dos géneros mais consumidos pelo público jovem, mas, chegado aos 50, tem hoje desafios decorrentes dessa condição de cinquentenário.
Rui Miguel Abreu recupera a ideia do idadismo no hip hop, e afirma que foi “vendida uma ilusão de uma juventude eterna, a música de uma pulsão juvenil”. Hoje em dia, “aos 50 anos, somos confrontados com o facto de haver artistas de referência que começam a ficar próximos dos 50 anos”, relembrando Eminem e Jay Z.
Na perspetiva de Capicua, “o rap tem falhado em trazer o público mais velho às salas, convocá-lo”, uma vez que os artistas têm tendência a “fazer como se nada fosse” e a não dar importância à idade que vai avançando, por isso, “vão perdendo o público da sua idade”. O público que assiste aos concertos de rap tem “entre 15 a 30 anos no máximo. A partir daí, as pessoas não vão a concertos de rap, o público de rap é sempre muito masculino e muito juvenil”, concluiu a artista.
Editado por Filipa Silva