Ao longo de nove dias, as salas do Batalha e do Passos Manuel foram palco para o cinema lusófono, no maior festival de cinema documental do Porto. Houve analógico e digital, objetividade e metafísica e, acima de tudo, muitas histórias. Passamos em revista alguns dos filmes que integraram a competição.

Ricardo Leite usou a câmara analógica como um olho para dentro de si próprio em “Lucefece”. Foto: Still do filme/D.R.

Lucefece: where there is no vision, the people will perish, de Ricardo Leite, sagrou-se o grande vencedor da categoria Cinema Falado, a secção que o Porto/Post/Doc dedica ao cinema lusófono desde a primeira edição, em 2014.

Ricardo Leite apresentou, nos dias 21 e 23 de novembro, a nova obra, produto de gravações analógicas, reveladas à mão pelo próprio realizador, há mais de vinte anos.

Em “Lucefece” acompanhamos o percurso existencial do autor, desde a infância até aos dias de hoje. Ao longo do filme, são-nos revelados, de uma forma por vezes crua e por outras introspetiva, os acontecimentos que marcaram a vida de Ricardo Leite, desde a morte da irmã à prisão do pai, passando pelo nascimento dos filhos e a influência destes na sua espiritualidade e identidade.

Na entrega do prémio, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores, esta referiu a “materialidade química, quase alquímica, física do próprio filme”, já que as imagens, coloridas e simbólicas, foram feitas à mão, bem como a “extraordinária originalidade na sua viagem introspetiva que vai além, atrás, acima dele”.

Na categoria Cinema Falado foi ainda distinguido “2720”, de Basil da Cunha, uma obra que explora a vida na Reboleira, na Grande Lisboa, num labirinto de ruas e pessoas, lugar já explorado pelo realizador, por ser lá onde vive durante metade do ano.

Filme de Basil da Cunha foi distinguido com uma menção honrosa. Foto: Still de "2720"/D.R.

Este ano, foram 13 os filmes – entre curtas e longas – selecionados para a secção onde impera a língua portuguesa, mas nem todos obedeceram estritamente ao pressuposto. Exclusivamente falado em alemão, “Naquele dia em Lisboa”, de Daniel Blaufuks, é um dos exemplos que o comprovam – tal como “Onde Está o Pessoa”, de Leonor Areal.

A curta-metragem, criada a partir de alguns rolos de película de 1940 descobertos pelo realizador português – com a curiosidade de terem pertencido a um cineasta alemão que viria a vencer um óscar de melhor direção de fotografia – retrata a realidade dos refugiados da Segunda Guerra Mundial

O filme de Blaufuks não foi o único a focar-se nos temas da imigração e da interculturalidade. Melanie Pereira, realizadora de “As Melusinas à Margem do Rio”, dedicou a sua primeira longa-metragem à integração – ou a falta dela – dos imigrantes no Luxemburgo. O filme da antiga estudante da Escola Superior Artística do Porto arrecadou o maior número de prémios no DocLisboa este ano, mas no PPD ficou de fora do palmarés.

No filme, Melanie é realizadora, atriz, narradora e entrevistadora de quatro mulheres, nascidas ou crescidas no Luxemburgo, com pais nascidos noutros países.

O documentário gira em torno das dificuldades sentidas pelas mulheres em adaptarem-se a uma nova cultura, identificando-se simultaneamente com outras, e no papel que assumem numa sociedade vista no filme como estratificada e elitista.

A escolha exclusiva de mulheres surgiu para Melanie com “naturalidade”: “Gosto sempre de dar voz às mulheres”, confessou a autora ao JPN à margem da entrevista que deu ao Grande Ecrã especial que o JPN dedicou ao Porto/Post/Doc. “O João Canijo também só trabalha mulheres e acho que nunca lhe perguntam porquê, é uma opção dele, e não é por eu ser mulher que quero dar-lhes voz”, acrescenta.

No entanto, é também por uma necessidade de documentar as suas próprias experiências que optou pelo tema da busca da identidade numa sociedade multicultural Em relação ao cinema luxemburguês, “muito industrial e ainda focado em temas como a Segunda Guerra Mundial”, considera os filmes portugueses “muito autorais”, conta, mas sem que isso constitua um entrave, já que “tem os seus meios de distribuição, não deixa de ser um cinema importante, que tem o seu público e é seguido”.

O filme de Melanie Pereira conta o testemunho de cinco mulheres imigradas no Luxemburgo. Foto: Still do filme/D.R.

Melanie Pereira promete ainda a inserção de “As Melusinas à Margem do Rio” na plataforma de streaming HBO num futuro próximo, bem como o começo de uma nova produção, um filme biográfico sobre a avó.

Um olho cá dentro, outro lá fora

Do Luxemburgo para o Brasil, a seleção lusófona do Porto/Post/Doc incluiu, este ano, várias geografias. 

Em “Samuel e a Luz”, o foco é uma família que se adapta a uma nova realidade. Foto: Still do filme/D.R. Foto: Still do filme/D.R.

Vinícius Girnys é brasileiro e passava férias em Ponta Negra, uma aldeia piscatória em Paraty, no Brasil, numa época em que quase não havia turistas. O motivo para isso era um: Ponta Negra não tinha eletricidade, e a vida era feita à luz das velas.

Quando Vinícius ouviu falar da chegada da luz, decidiu levar uma equipa para junto desta comunidade, para acompanhar, ao longo de seis anos, a chegada da luz e, em consequência, do turismo ao local.

O resultado foi “Samuel e a Luz”, uma longa-metragem que documenta a história íntima de uma família que teve de se adaptar a uma nova vida após a chegada da eletricidade.

Olívia Pedroso, diretora de fotografia, contou ao JPN, à margem de uma das sessões de exibição do filme, que a introdução da equipa na comunidade, que nunca tinha visto câmaras de filmar, foi feita aos poucos: “Nós gravávamos cerca de duas horas por dia, no máximo, porque, no resto do tempo, conversávamos sobre o filme e com eles, para estarmos mais próximos e não ser apenas aquele olhar externo que conta algo que não nos pertence”.

O filme acaba também por expor alguns problemas da família, como a secundarização da mulher. Sobre isso, Olívia Pedroso confessa que o facto “levantou muitas questões morais” à equipa, sobre a forma como deviam “expor ou não expor questões íntimas de família”.

“Havia muita coisa que nos contavam fora das câmaras, mas depois propúnhamos que o representassem e eles improvisavam”, revela a diretora de fotografia. Olívia acredita que “há um poder da ficção dentro de um documentário”, existindo cenas que requerem planeamento e regravação.

“Lindo” concentra-se nos caçadores submarinos ilegais de São Tomé e Príncipe. Foto: Still do filme/D.R.

Também Margarida Gramaxo descobriu uma história fora de Portugal: Lindo, um pescador subaquático com quem fez amizade na ilha de Príncipe, em São Tomé e Príncipe, conta a sua história num filme homónimo. “Lindo” é um documentário sobre a caça das tartarugas, que passa a ser proibida na ilha, mas que serve de sustento aos locais.

Levando os próprios pescadores a discutir assuntos relacionados com sustentabilidade e o futuro do planeta, o filme, repleto de longas imagens subaquáticas que apelam à reflexão, retrata também a mudança dentro de uma comunidade pouco instruída, mas surpreeendentemente sensível.

A realizadora, após a exibição no Batalha, contou ao público que trabalhou “muitos anos sem investimento”, mas que “não conseguia largar esta história”, e “cresceu com o filme”: “a mudança é sempre um tema muito interessante”, comenta.

Além destes, concorreram também na secção Cinema Falado os filmes “À Procura da Estrela” de Carlos Martínez-Peñalver Mas; “Astrakan 79”, de Catarina Mourão; “Big Bang Henda” de Fernanda Polacow; “Cinzas e Nuvens” de Margaux Dauby; “Onde Está o Pessoa”, de Leonor Areal; “Verdade ou Consequência” de Sofia Marques; e “Visão do Paraíso” de Leonardo Pirondi.

Editado por Filipa Silva