[Crítica] “Não Sou Nada”, ou “The Nothingness Club”, quebra as regras da biografia tradicional e explora os heterónimos criados por Fernando Pessoa, através de um thriller psicológico que acontece dentro da cabeça do poeta. O novo filme de Edgar Pêra já chegou às salas de cinema e conta com Albano Jerónimo, Victoria Guerra e Miguel Borges nos papéis principais.
Fernando Pessoa e os seus heterónimos fechados numa redação. O realizador português Edgar Pêra agarrou nesta premissa quimérica e fez do seu filme um jogo de sensações e emoções à volta de uma das mais famosas figuras da Cultura portuguesa.
Depois de “Lisbon Revisited”, uma curta-metragem lançada em 2014, o cineasta volta ao universo de Pessoa, desta vez, em “Não Sou Nada”, apostando no território dos heterónimos pessoanos.
Vestidos de maneira idêntica – fato preto, bigode e chapéu -, os heterónimos distinguem-se pelos atores que lhes dão corpo e pelas placas com os nomes nos casacos, enquanto trabalham numa redação que está a preparar o n.º 23 da revista “Orpheu”, da qual Pessoa foi um dos notáveis redatores.
É um filme que primeiro estranha-se e depois entranha-se, para fazer uso do famoso slogan publicitário que o poeta produziu para a entrada da Coca-Cola em Portugal. Há várias maneiras de pensar em Fernando Pessoa, mas só com a audácia de Edgar Pêra foi possível colocar os heterónimos a escrever, jogar matraquilhos e a beber num bar uns com os outros.
Com surrealismo, originalidade e uma pitada de “neón-noir”, a película transcende as obras convencionais com uma abordagem única que retrata a vida e obra do escritor. Ao mesmo tempo, são explorados os cantos mais profundos da sua mente.
O realizador convida o espectador a mergulhar na psique de Fernando Pessoa, criando dois mundos interligados, ainda que na realidade nenhum deles exista.
O hospício, lugar onde Fernando Pessoa, a personagem principal, interpretada por Miguel Borges, está aparentemente internada ou num retiro do quotidiano. E, profundamente conectada a este local, uma redação, presente apenas na mente do Poeta: “The Nothingness Club”. No clube metafórico, trabalham os seus heterónimos para a revista da qual é editor.
O filme, quer na trama, quer na sobreposição das cenas no grande ecrã, trata estes dois mundos de uma forma inseparável. Qualquer coisa que aconteça no hospício afetará inevitavelmente o mundo isolado do “Clube do Nada”.
Assim, neste universo alternativo, a realidade choca com a ficção e cai em “desgraça” com a aparição de Ophelia (interpretada por Victoria Guerra) – considerada a única paixão da vida de Pessoa -, que alterna entre enfermeira e secretária. O paradoxo do coração e da mente resulta em assassinatos e outros acontecimentos misteriosos na redação, evocativos dos clássicos filmes noir. A autodenominada “cinenigmática” aproxima-se do thriller psicológico e policial, sempre com o piano de fundo para aumentar a tensão.
As atenções estão voltadas para Álvaro de Campos, uma impressionante interpretação de Albano Jerónimo, que disputa a autoridade com Fernando Pessoa, numa postura ora alegre, ora desequilibrada.
É compreensível que as palavras proferidas pelas personagens sejam quase, exclusivamente, versos do poeta, oferecendo uma experiência imersiva e autenticamente “pessoana”. O inglês, a outra língua em que o poeta educado na África do Sul escreveu, também está presente na curta. Para os amantes de literatura, é fácil identificar o estilo de cada heterónimo. No entanto, o filme funciona, mediante uma subtil ironia, tanto para quem conhece, como para quem não conhece as obras.
A banda sonora é assinada por The Legendary Tigernam, nome artístico de Paulo Furtado, que também participa no filme como ator.
A escolha da Fábrica do Rio Vizela, em Vila das Aves, como cenário, acrescenta uma camada intrigante à produção. O local, com um “número interminável de escritórios dos anos 30”, como contou Edgar Pêra à Rádio Vizela, revelou-se o cenário ideal para o Clube do Nada, proporcionando a atmosfera de escritório, no interior, e de hospício, no exterior, devido às paredes degradadas do complexo. A concentração das filmagens no local – que apanharam o período Covid – levou até à reescrita do argumento.
É o filme mais ambicioso de Edgar Pêra e foge à biografia tradicional. É um filme inovador que, no final, adquire uma lógica própria. Para isso, é preciso que nos deixemos levar pela efabulação, entre vida e morte, pelo pensamento de Pessoa. Isto porque, não há limites para o pensamento.
Sem dúvida, é um filme feito para ser sentido, já que parece que nada existe, além das sensações. Para sentir tudo de todas as maneiras, Edgar Pêra inventou um universo, não o reproduziu.
O filme estreou em outubro nas salas de cinema do país. Nesta altura, ainda pode ser visto no Porto, no Cinema Trindade – há uma sessão agendada para a próxima quarta-feira, dia 10 de janeiro, às 19h30.
Editado por Filipa Silva