[Crítica] “Não Sou Nada”, ou “The Nothingness Club”, quebra as regras da biografia tradicional e explora os heterónimos criados por Fernando Pessoa, através de um thriller psicológico que acontece dentro da cabeça do poeta. O novo filme de Edgar Pêra já chegou às salas de cinema e conta com Albano Jerónimo, Victoria Guerra e Miguel Borges nos papéis principais.

“Não Sou Nada” estreou em janeiro de 2023 no Festival de Cinema de Roterdão, nos Países Baixos. Está em exibição no Cinema Trindade, no Porto. Foto: Nádia Neto/JPN

Fernando Pessoa e os seus heterónimos fechados numa redação. O realizador português Edgar Pêra agarrou nesta premissa quimérica e fez do seu filme um jogo de sensações e emoções à volta de uma das mais famosas figuras da Cultura portuguesa.

Depois de “Lisbon Revisited”, uma curta-metragem lançada em 2014, o cineasta volta ao universo de Pessoa, desta vez, em “Não Sou Nada”, apostando no território dos heterónimos pessoanos. 

Vestidos de maneira idêntica – fato preto, bigode e chapéu -, os heterónimos distinguem-se pelos atores que lhes dão corpo e pelas placas com os nomes nos casacos, enquanto trabalham numa redação que está a preparar o n.º 23 da revista “Orpheu”, da qual Pessoa foi um dos notáveis redatores. 

É um filme que primeiro estranha-se e depois entranha-se, para fazer uso do famoso slogan publicitário que o poeta produziu para a entrada da Coca-Cola em Portugal. Há várias maneiras de pensar em Fernando Pessoa, mas só com a audácia de Edgar Pêra foi possível colocar os heterónimos a escrever, jogar matraquilhos e a beber num bar uns com os outros. 

Com surrealismo, originalidade e uma pitada de “neón-noir”, a película transcende as obras convencionais com uma abordagem única que retrata a vida e obra do escritor. Ao mesmo tempo, são explorados os cantos mais profundos da sua mente.

O realizador convida o espectador a mergulhar na psique de Fernando Pessoa, criando dois mundos interligados, ainda que na realidade nenhum deles exista.

O hospício, lugar onde Fernando Pessoa, a personagem principal, interpretada por Miguel Borges, está aparentemente internada ou num retiro do quotidiano. E, profundamente conectada a este local, uma redação, presente apenas na mente do Poeta: “The Nothingness Club”. No clube metafórico, trabalham os seus heterónimos para a revista da qual é editor.

O filme, quer na trama, quer na sobreposição das cenas no grande ecrã, trata estes dois mundos de uma forma inseparável. Qualquer coisa que aconteça no hospício afetará inevitavelmente o mundo isolado do “Clube do Nada”. 

Assim, neste universo alternativo, a realidade choca com a ficção e cai em “desgraça” com a aparição de Ophelia (interpretada por Victoria Guerra) – considerada a única paixão da vida de Pessoa -, que alterna entre enfermeira e secretária. O paradoxo do coração e da mente resulta em assassinatos e outros acontecimentos misteriosos na redação, evocativos dos clássicos filmes noir. A autodenominada “cinenigmática” aproxima-se do thriller psicológico e policial, sempre com o piano de fundo para aumentar a tensão.

As atenções estão voltadas para Álvaro de Campos, uma impressionante interpretação de Albano Jerónimo, que disputa a autoridade com Fernando Pessoa, numa postura ora alegre, ora desequilibrada. 

É compreensível que as palavras proferidas pelas personagens sejam quase, exclusivamente, versos do poeta, oferecendo uma experiência imersiva e autenticamente “pessoana”. O inglês, a outra língua em que o poeta educado na África do Sul escreveu, também está presente na curta. Para os amantes de literatura, é fácil identificar o estilo de cada heterónimo. No entanto, o filme funciona, mediante uma subtil ironia, tanto para quem conhece, como para quem não conhece as obras. 

A banda sonora é assinada por The Legendary Tigernam, nome artístico de Paulo Furtado, que também participa no filme como ator. 

A escolha da Fábrica do Rio Vizela, em Vila das Aves, como cenário, acrescenta uma camada intrigante à produção. O local, com um “número interminável de escritórios dos anos 30”, como contou Edgar Pêra à Rádio Vizela, revelou-se o cenário ideal para o Clube do Nada, proporcionando a atmosfera de escritório, no interior, e de hospício, no exterior, devido às paredes degradadas do complexo. A concentração das filmagens no local – que apanharam o período Covid – levou até à reescrita do argumento.

É o filme mais ambicioso de Edgar Pêra e foge à biografia tradicional. É um filme inovador que, no final, adquire uma lógica própria. Para isso, é preciso que nos deixemos levar pela efabulação, entre vida e morte, pelo pensamento de Pessoa. Isto porque, não há limites para o pensamento. 

Sem dúvida, é um filme feito para ser sentido, já que parece que nada existe, além das sensações. Para sentir tudo de todas as maneiras, Edgar Pêra inventou um universo, não o reproduziu. 

O filme estreou em outubro nas salas de cinema do país. Nesta altura, ainda pode ser visto no Porto, no Cinema Trindade – há uma sessão agendada para a próxima quarta-feira, dia 10 de janeiro, às 19h30.

Editado por Filipa Silva