Harry, uma promessa no mundo da moda, e Killa Was Here, artista conhecido por uma arte capaz de ultrapassar barreiras e fronteiras, desafiam a indústria da moda nacional e plantam as sementes de uma nova era de expressão nas calçadas portuguesas. O JPN esteve à conversa com os dois artistas sobre o seu percurso, as suas inspirações e o futuro deste estilo em Portugal.

Galeria do artista, que entretanto fechou no Porto, ficava na Rua do Rosário. Foto: Beatriz Santos/JPN

Para muitos, o streetwear é mais do que uma moda: é um conceito, que representa uma comunidade, cujas raízes podem ser culturais, musicais ou desportivas. Uma rápida pesquisa no dicionário pela palavra “streetwear” vem acompanhada da seguinte definição: um estilo de roupa urbano e casual, com origem nos anos 70 e 80, no coração de Nova Iorque.

O estilo foi inspirado num conjunto de culturas e manifestações artísticas e, como todas as vertentes da moda, passou por diversos ciclos. Criado por skaters, rappers e surfistas, o streetwear foi, por muito tempo, marginalizado e associado à falta de poder económico e à rebeldia juvenil. No entanto, à medida que os anos foram passando, o “estilo de rua” foi sendo influenciado por novas tendências, novas inspirações, novas marcas, novas comunidades e novas caras. 

Após a licenciatura em Gestão, Killa Was Here, natural da cidade Invicta, percebeu que, afinal, a arte era o caminho. O nome artístico nasceu da junção da alcunha que tinha no mundo dos combates – “Puto Killa” –  e uma expressão usada na cultura grafitti, onde os artistas assinam com o nome artístico seguido de “was here”, para deixarem a sua marca. Killa quer fazer o mesmo. “Eu assino com Killa Was Here como se fosse a minha tag. É como os grafitters fazem, basicamente”, revelou ao JPN.

Depois de a primeira exposição, que realizou, em 2019, num estúdio minúsculo, ter sido um grande sucesso, Killa percebeu que o futuro estava traçado. O artista afirmou não se limitar a uma forma específica de arte e não ter medo de experimentar e se desafiar a si mesmo. Não consigo categorizar a minha arte”, confessou.

O nome artístico nasceu da junção de uma alcunha no mundo dos combates e a cultura grafitti. Foto: Beatriz Santos/JPN

“Eu gosto de pintar em duas dimensões, flat, mas também gosto de fazer algumas coisas de realismo. Gosto de fazer escultura, gosto de fazer roupa… mas depois quero fazer outras coisas, como cerâmica ou pastéis de óleo. Por isso, se me tivesse de caracterizar, caracterizava-me como artista”, afirmou.

Apesar de ter começado a trabalhar com tintas e telas, o desejo de entrar no mundo da moda esteve presente desde o princípio. Com um passado de casacos e calças pintadas e riscadas, o artista, de 26 anos, encontrou, através da moda, outro meio de expressar a sua arte. Mas como Killa, nascem outros artistas que começaram do zero e procuram vingar na indústria, querendo fazer a diferença.

Um desses artistas é Harry, criador da “Innocent Wear” e “YOUNG BLOOD CONCEPT. Da ilha da Madeira para o continente, a marca atravessou o oceano atlântico e ganhou notoriedade nas redes sociais. Recentemente, estreou-se em palcos nacionais através de estrelas da indústria musical, como Van Zee, Bispo e Julinho KSD, que começaram, também, a vestir-se de maneira “Inocente”.

Em entrevista ao JPN, o jovem designer partilhou como criou a sua marca com apenas 15 anos e como o curso de multimédia que frequentava teve influência no seu percurso. O seu interesse pessoal por estilos de moda diferentes e a impossibilidade de comprar peças das suas marcas de sonho geraram uma questão: “E se eu próprio o fizesse?”. Embora o início tenha sido turbulento, o tempo e experiência permitiram a Harry dar grandes passos, num caminho longo ainda por percorrer. “Fiz a primeira coleção numa gráfica shady”, contou.

Arte que inspira arte

Os dois artistas admitem usar a música como inspiração para a criação das suas coleções. No caso de Killa, esta influência é visível na nomenclatura de várias peças que desenha, inspiradas nas músicas favoritas.

Já Harry, de 22 anos, tem outro tipo de ligação: criou a maioria das coleções da Innocent Wear em conjunto com Van Zee, um artista recente no panorama nacional, que para além de compositor e músico, é também amigo chegado do jovem madeirense. “Estamos a crescer juntos”, afirma Harry.

Van Zee, em coleção por lançar. Foto: Tommy Loureiro

Juntos na amizade e no trabalho, Van Zee está diretamente ligado ao projeto de Harry. Em sessões de estúdio, realizam o processo de brainstorming e, assim, nascem algumas das mais famosas coleções da marca, desenhadas, segundo o próprio, em grande número e em relativamente pouco tempo. “Existem sempre designs a mais”, contou Harry. Já a criação das peças é, normalmente, acompanhada de uma banda sonora de fundo e um ambiente descontraído. “É daí que vem o processo criativo…é estar com o pessoal no estúdio, a discutir e a ouvir boa música”, relata.

Para além da música, Harry contou ao JPN quais os designers que inspiram o seu trabalho: Clint 419, o dono da marca de streetwear “CORTEIZ” baseada em Londres, que é descrito como um “businessman do caramba”, e o americano Cole Buxton, fundador da “Represent Clothing”

Harry mantém os pés assentes na terra e questiona-se, de forma retórica, sobre a possibilidade de uma coleção com marcas notáveis de roupa: “É impossível fazer uma colaboração com a Nike, não é?”. Já sobre as personalidades que gostaria de ver com as suas criações, afirmou que adoraria ver o músico Lon3r Johny com uma peça sua, embora sinta que pode estar para breve. O sonho de todos os sonhos? Para Harry a resposta é fácil: “A nível internacional, acho que é a resposta de qualquer dono de marca… seria o A$AP Rocky.”

Em entrevista ao JPN, Killa Was Here disse que o processo criativo passa por transferir as suas experiências de vida para as peças que cria. Entre temas como a “morte”, o “amor” e a “saudade”, afirma que não gosta muito de pintar ou de relatar acontecimentos que estejam fora do seu meio e que procura sempre dar um toque de genuinidade e naturalidade à sua arte.

A lágrima e o meio sorriso distorcido representam, para o autor, a depressão e a ansiedade que os jovens enfrentam atualmente. Foto: Killa Was Here/Instagram

“Se calhar é uma perspetiva um bocado egoísta, mas é 100% genuína. Quero deitar cá para fora e é por aí que costumo ir”, frisou.

Um dos exemplos é o seu símbolo icónico: o smile, cujo sentido vai para lá do literal. A lágrima e o meio sorriso distorcido presentes representam, para o autor, a depressão e a ansiedade que os jovens enfrentam na atualidade. “Apesar de, no final, se calhar não se notar tanto que são temas mais obscuros e mais profundos, porque, com os smileys e as borboletas coloridas tudo fica numa versão muito feliz e alegre, normalmente tenho alguma inspiração twisted e mais dark por trás”, afirmou.

As redes sociais e o seu papel na ascensão da streetwear

Para a Harry, a rede social TikTok, muito utilizada atualmente pela geração Z, é uma trend-setter, dando o exemplo da marca Nude Project, que se tornou viral a níveis extremos e internacionalizou-se através da ativa e influente participação nas redes.

O artista madeirense tem uma presença ativa na rede social TikTok desde 2021, onde já soma 79,7 mil gostos e onde os números continuam a subir. “Acabei por fazer alguns vídeos no TikTok e arranjei aí alguns clientes”, comentou.  

Killa, por outro lado, não aderiu ao TikTok, porque não se identifica com a aplicação, embora reconheça que teve um impacto positivo no streetwear e na moda em geral, principalmente entre influencers. “Cria-se ali uma comunidade de pessoas que gostam daquilo que tu estás a criar e acho que nesse sentido é espetacular”, disse. Killa é ativo na rede social Instagram, onde partilha maioritariamente a sua arte, coleções e exposições com os seus 12,3 mil seguidores

Licenciatura em Artes: Será mesmo necessário?

Se nas redes sociais os artistas fazem apostas diferentes, os dois têm pontos em comum noutras dimensões. Harry, que estudou multimédia, e Killa, que se licenciou em gestão, procuram inspirar jovens que não têm uma licenciatura no campo das artes nos seus planos, mas que têm grandes ambições na arte por concretizar

No que diz respeito ao percurso profissional, Killa refere que o facto de não ter estudado artes “teve muitas coisas boas e coisas menos boas”. Por um lado, a falta de ensinamento académico à volta das artes levou, de certa forma, a algumas limitações técnicas. Por outro lado, o conhecimento que ia adquirindo através de documentários, filmes e livros não o aborrecia de todo: “Aprendi tudo de forma genuína. Estava a ler e a aprender, porque realmente queria. Nesse sentido, correu muito bem para mim”, relatou.

Segundo o artista, apesar de os jovens licenciados com os quais já se cruzou apresentarem um talento notável e uma “bagagem técnica muito boa”, a falta de confiança na sua arte é evidente, para Killa, devido a um “ego esmagado” que os limita. “Os alunos saem da escola de artes a achar que não dá para se ser artista em Portugal, que não dá para fazer dinheiro, que têm de fazer assim e têm que fazer assado, senão não vão ser ninguém”, resume.

A quebra de barreiras de género no “estilo de rua”

Com o aumento da consciência social, algumas questões sobre a divisão de peças de roupa por categorias binárias têm sido levantadas. Na sua coleção com a “Lion of Porches”, colaboração de que se orgulha muito, Killa foi questionado sobre em que categorias as suas peças se encaixavam. Para o artista, a roupa não se define em género, já que a moda é para todos

Harry, que também não categoriza as suas coleções por género, acredita que estamos a caminhar para um mundo unissexo e usa a recente aparição de homens em crop tops, peça tipicamente feminina, como prova dos avanços. A utilização de peças associadas a cada um dos sexos é vista como sendo “cada vez mais mais aceite pelo público em geral”.

Killa partilha da mesma opinião, referindo que as marcas, estilistas e designers portugueses estão um passo à frente e a roupa segmentada por género vai deixar, eventualmente, de existir. “Acho que, sem dúvida, o caminho a longo prazo será tudo fundir-se e ser só moda, em vez de ser moda masculina ou moda feminina. É esse o caminho. Vai ser uma coisa transversal”, afirmou.

O futuro da streetwear em Portugal

“As pessoas vestem-se e dá para perceber imenso as características delas pela forma de vestir”, referiu Harry , dando conta de que as roupas são mais do que tecidos, um reflexo de quem os veste e uma expressão de arte.

Sobre o mercado português, os autores consideram que há ainda algum conservadorismo: “Se não estiveres em Portugal, não é preciso teres coragem. É preciso sair da bolha de Portugal e também perceber que não é estranho estares com roupas um bocado diferentes. Em Portugal, há certos tabus e é isso que estamos a tentar mudar”, afirmou Harry.

Quanto a fazer a mudança, Killa sente que está num bom caminho. O artista considera que a sua colaboração com a “Lion of Porches” foi um grande passo em frente. No que toca à valorização do talento que existe nesta geração e na que vem a seguir, Killa espera que outras grandes marcas portuguesas colaborem não só com ele, mas também com outros jovens artistas do país. 

Dentro da streetwear, são lançadas cada vez mais coleções unissexo e a sustentabilidade está na boca de todos. Apesar de Harry acreditar que é difícil transformar uma marca streetwear numa fonte de renda principal no mercado português, o exemplo de Killa serve de inspiração para uma geração que tem cada vez mais espaço para criar e florescer.

Editado por Filipa Silva

Este trabalho foi realizado no âmbito da disciplina de TEJ Online – 2.ºano.