Em entrevista ao JPN, Rui Rio falou sobre a infância, a juventude, a vida política autárquica e nacional. Diz que em Portugal se exige de um líder da oposição o que ele não tem condições para dar e que a política, hoje, não se recomenda. Confessa que foi na Câmara do Porto que conquistou a eleição "com mais valor" e recorda um episódio caricato - na altura, muito sério - que lhe provou quão solitário pode ser o lugar de um político.

Nasceu no Porto, em 1957, e começou a “carreira profissional aos quatro anos”. Foi com essa idade que experimentou o “rigor extremo” do Colégio Alemão, que o pai seguia também em casa. Sobretudo depois do evento trágico que marcou a sua infância e a vida familiar. Jovem com gosto pela liderança, atleta e condutor de carros premiado, Rui Rio teve na presidência da Associação de Estudantes da Faculdade de Economia do Porto uma primeira oportunidade de colocar em prática as suas ideias. Aderiu ao Partido Social Democrata (PSD) por uma única razão, como gosta de lembrar: para seguir “o doutor Sá Carneiro”. “Se o doutor Sá Carneiro tivesse ido para o Partido Socialista, eu ia para o Partido Socialista”, atira.

No PSD, Rio foi quase tudo, de vogal a presidente da direção nacional, cargo que ocupou de 2018 a 2022.  Um “recorde nacional de líder da oposição”, brinca, enfatizando o “desgaste muito grande” de quem passa pelo lugar em Portugal. Depois das eleições legislativas de 2022, escolheu cessar funções no partido. Assume que “não estava pronto para o PS ter maioria absoluta” e critica o PSD pelo “disparate” de convocar um congresso pouco antes de os portugueses irem às urnas. A decisão de sair foi “óbvia”, mas deixa escapar que podia ter sido diferente. 

Antes disso, liderou a Câmara Municipal do Porto durante 12 anos e é, até ao momento, o político que mais tempo ocupou o cargo. Se da associação de estudantes guarda boas memórias e da política nacional “mais dissabores”, dos tempos na presidência da Câmara do Porto os sentimentos são mistos. “Tive de andar com o guarda-costas, li muita coisa injusta, mas fizemos coisas e ver essas coisas a acontecer é bom para quem está na vida pública”. Foi lá que viveu a eleição “com mais valor” na sua vida política e desengane-se quem pense que foi a primeira, que a todos surpreendeu.

Nesta entrevista ao JPN, o antigo líder social-democrata garante que a política atual não se recomenda – “é de a gente fugir o mais depressa possível” – e admite que se soubesse o que hoje sabe, não teria ido por aí. 

JPN – Quem é Rui Rio?

Rui Rio (RR) – Eu comecei a minha carreira profissional aos quatro anos. Fui para o Colégio Alemão do Porto aos quatro anos. O normal era entrar-se aos seis para a primeira classe, mas, para tomar contacto com a língua, tinha de se entrar aos quatro para o Kindergarten, que é o jardim infantil. Depois, fiz lá o Ensino Secundário e fui para a Faculdade de Economia do Porto, onde acabei o curso de Economia no ano de 1982, há 41 anos. 

Depois fui trabalhar para um pequeno grupo, que tinha uma empresa comercial e duas industriais. Estive lá nem um ano, porque fui para a tropa. Estive quase um ano e meio na tropa e, entretanto, regressei a esse grupo. Daí, fui para o Banco Comercial Português, que estava na fundação. Depois do BCP, fui trabalhar para a área de mercado de capitais do BCP. Depois de sair do BCP, fui para diretor financeiro das tintas CIN. Depois fui para deputado na Assembleia da República. Estive lá cerca de dez anos, desde fins de 1991 até janeiro de 2002.

Depois ganhei a Câmara do Porto, no fim de 2001. Estive na Câmara do Porto durante 12 anos. De três eleições, ganhei as três. Depois, quando saí da Câmara do Porto, fui trabalhar para diversos sítios.

Depois, fui candidato a presidente do PSD, em 2017, 2018, e estive lá até julho de 2022. E, entretanto, já passou um ano e pouco, e, nesse ano e pouco, sou consultor de um grupo empresarial português, de média dimensão, que tem diversos setores: agricultura, turismo, construção civil, diversos setores, e sou presidente do conselho fiscal de uma empresa também.

Quando era miúdo, tive um irmão que morreu, mais novo que eu, quando eu tinha sete, oito anos. Ele tinha cinco.

JPN – Regressando atrás no tempo, como foi a sua infância? 

RR – A minha infância não foi fácil, foi complicada. Não por razões de ordem material, não porque os meus pais e a minha família não tivessem dinheiro.  

Foi complicada, primeiro, porque a educação que era dada na altura aos miúdos era muito rigorosa, não tem nada a ver com o que é hoje. Entrei para o Colégio Alemão em 1961 e, nessa altura, a educação era de um rigor extremo e no colégio também. Ao ponto de alunos que tinham tido negativa num teste poderem ter de ficar de pé no fundo da sala de aula. Uma brutalidade autêntica. 

E, depois, com um aspeto terrível que aconteceu. Quando era miúdo, tive um irmão que morreu, mais novo que eu, quando eu tinha sete, oito anos. Ele tinha cinco. Faleceu, o que marcou, naturalmente, a minha infância. 

Havia muita gente pobre. Ainda me lembro de ver, pouco, gente descalça na rua, aqui no Porto. Fora do Porto, vi bastante até. Na zona de Viana do Castelo, numa praia onde eu passava férias, as pessoas até tinham dificuldade em calçar os sapatos, porque, como andavam sempre descalças, o pé ficava largo e depois o sapato era um problema quando, ao domingo, queriam ir à missa calçados. Ainda me lembro um pouco disso. 

Lembro-me de, por exemplo, ter passado com uma negativa do atual 6.º ano para o 7.º ano, precisamente a Alemão. E então o meu pai disse-me: “agora, nas férias, vais ter explicações a Alemão para recuperar”. Tinha as explicações com o meu pai sentado ao meu lado. Quem me dava as explicações era uma senhora alemã que vivia na Rua Tenente Valadim.

Um dia, o meu pai, a chegar a casa e eu estava a fazer o exercício para a explicação e ele disse-me: “o que estás a fazer?”. E eu disse-lhe que estava a traduzir um livro de português para alemão. “E estás a fazer diretamente no caderno? Não fazes rascunho porquê? Não tens tempo? Então agora não sais mais de casa até ao fim das férias para teres tempo”. Por isto, eu fiquei agosto e setembro em casa. Com 12 anos de idade. E há mais episódios destes. O meu pai era assim.

JPN – Falou da morte do seu irmão. Como é que uma criança de sete anos lida com a perda de um irmão? 

RR – É muito difícil de dizer. Não sei se isso tem a ver com o nosso subconsciente. Nós dominamos a parte racional, não dominamos o nosso subconsciente. Isso aconteceu em 1965, ele esteve doente entre 1964 e 1965, durante quase um ano. É uma coisa que se passou há quase 60 anos. Tenho muitas lembranças, mas são lembranças mais do quotidiano e menos da minha componente emocional, do que eu sentia na altura.  

Hoje, é muito difícil de responder a isso, embora possa parecer esquisito, uma coisa tão violenta, como é que não te lembras? Acho que há um pouco, talvez, do subconsciente a funcionar, que não deixa vir tanto assim à superfície. Agora, obviamente, que, interiormente, aquilo foi uma brutalidade. Ainda para mais, como éramos miúdos, eu ia fazer oito anos, ele ia fazer seis, eu brincava com ele e com os meus primos. Agora, não consigo ir buscar lá atrás o que é que eu com 8, 9, 10 anos sentia relativamente à falta dele.

JPN – O seu pai gostava que tivesse ido para a Alemanha. A educação rígida que viveu teve um papel importante para moldar a sua personalidade? 

RR – Sim. Moldou-me em termos do meu rigor. Eu já o teria, na minha maneira de ser, mas o facto de, durante os anos mais marcantes da vida, ter convivido com um regime muito rigoroso, podia ter dado para o torto. Mas não, funcionou ao contrário. Ou seja, mantive o rigor, que tenho ainda hoje, não consigo ser de outra maneira. Mas penso que tenho um humanismo diferente daquilo que eu tive de suportar.

JPN – Pelo seu pai exigir tanto de si, fazia com que sentisse necessidade de o impressionar?

RR – Não. O que diziam na altura é que o fenómeno que se passou com o meu pai, para lá do feitio dele, de raiz, é que, ao ter dois filhos e ter perdido um, projetou tudo no outro. Ou seja, normalmente, tem-se dois, perde-se um, o outro fica super protegido. E ele funcionou ao contrário. Era de um rigor extremo e queria que eu fizesse tudo nos termos dele. E o que ele queria era que eu fosse o melhor possível. Na altura, era muito miúdo com 14, 15, 16 anos, não conseguia fazer essa análise assim, mas lembro-me de me darem essa explicação, e provavelmente era isso.  

Depois também havia outras características dele que apagam essas. Características muito positivas, como é evidente.

JPN – E como era a relação com a sua mãe? 

RR – Completamente diferente. A minha mãe era, não digo completamente o oposto, mas em larga medida. Ela fazia o contraponto. Se o meu pai me dava um castigo de cinco dias, a minha mãe tentava ver se era só um dia. A minha mãe e a minha avó, a mãe dela, a minha avó, uma avó muito presente. E, naturalmente, aí, elas as duas sofriam quando viam um miúdo pequenino assim. Penso que era a situação dominante nas famílias portuguesas, na altura. O pai mais rigoroso e a mãe mais benevolente. E, depois, o homem prevalecia fortemente sobre a mulher pela cultura da sociedade e pelas próprias leis. 

JPN – E como é como pai?

RR – Sou muito diferente. Não tenho o poder que o meu pai tinha sobre mim. Para o bem e para o mal. Eu diria que, até certo ponto, para o bem, e, a partir de certo ponto, para o mal. Mas, a partir de uma dada altura, um bocadinho de autoridade, para nos ouvirem com mais atenção, senão não ligam nenhuma, ajuda. Eu tenho mais 44 anos que a minha filha. Fui pai muito tarde e às vezes digo-lhe: “Eu tenho mais de 40 anos que tu. Tu achas que, daqui por 40 anos, sabes o mesmo que sabes hoje?” Isto não quer dizer que o mais velho tenha sempre razão, mas há uma experiência. Não há nada como nós aprendermos à nossa custa, mas se pudermos aprender um bocadinho à custa dos outros, não é pior.

JPN – Nasceu e cresceu na cidade do Porto. Qual é a sua ligação com a cidade? 

RR – É muito grande, desde sempre. É maior do que o normal. Porque vivo aqui no Porto. Se eu tivesse nascido e vivido em Viana, que é a minha segunda cidade, na prática, seria igual. Penso que tenho uma característica de me ligar um pouco mais que o normal à minha terra. 

Notou-se isso ao não ir para a Alemanha, a questão do rigor foi fundamental. O 25 de Abril também. Porque eu teria ido para a Alemanha a seguir ao 25 de Abril. Aliás, fui. Mas estive lá só três semanas, num seminário que tinha de frequentar. Se não tivesse havido o 25 de Abril, a probabilidade de eu ir era um bocadinho maior, mas também porque me custa muito sair do Porto. 

Tive propostas para ir para Lisboa. Não fui. Não queria sair do Porto por nada. Depois, quando fui para deputado, tive de ir. Aí, não tive outro remédio. Mas vinha ao Porto ao fim de semana. E, mesmo agora, quando era presidente do PSD, das muitas críticas que me faziam – apesar de que me faziam críticas a tudo e mais alguma coisa – é que não estava em Lisboa e sim no Porto. E é verdade. Eu tinha aqui um escritório no Porto e, se pudesse, trabalhava a partir do Porto. Estava todas as semanas em Lisboa também, mas não estava os sete dias. Tenho uma ligação muito grande. Repito, acho que não é pelo Porto, mas sim pela minha terra, que é uma coisa diferente. Se fosse outra, teria a mesma ligação.

Na faculdade, fui o primeiro presidente da Associação de Estudantes na Faculdade de Economia.

JPN – Como surgiu o gosto pela economia?

RR – Por exclusão de partes. A minha disciplina preferida sempre foi a matemática, nunca foram as Letras. O meu avô, na altura, pagou ao meu primo e pagaria a mim, uns testes psicotécnicos, que só se faziam em Lisboa, para ver a vocação da pessoa e eu não aceitei. E não aceitei porque, se fosse, achava que ia dar Direito. E, ir para Direito, tinha dois problemas. Um, tinha de sair do Porto, porque só havia o curso em Coimbra; e dois, não tinha matemática, outro problema grave.

Entretanto, na matemática, tive um professor, engenheiro civil, e, às vezes, fazia uns exercícios de engenharia civil e achava aquilo fascinante. Mas também não queria ter só isso. Fui para o meio, que é a economia. Que tem as duas coisas: uma parte de letras e uma parte de ciências.

JPN – Enquanto era estudante, foi presidente da Associação de Estudantes da FEP e membro do Conselho Pedagógico. Sempre teve aptidão para a liderança?

RR – Isso, acho que sim. Quando era mais pequenino, até o meu irmão morrer, não, mas, depois, quando andámos todos a brincar na rua, formei um clube de futebol, de hóquei em patins e em campo, com miúdos de 11, 12, 13 anos. O impulsionador fui eu. Hoje, olhando para trás, há aí qualquer coisa já ligada à liderança.

Depois, ainda no Colégio Alemão, e antes de 25 de Abril, começo a ter as primeiras atitudes políticas com 15, 16 anos. Na faculdade, fui o primeiro presidente da Associação de Estudantes,  na Faculdade de Economia, porque, antes de mim, as associações tinham sido todas de esquerda e não tinham presidente. Era um coletivo que geria aquilo. Também ficou isso aí marcado. E depois, quer na militância, quer na Juventude Social-Democrata, quer depois no partido, acho que se nota que tinha esse perfil.

Com a idade, vai-se perdendo a genica, a força, mas vai-se ganhando a experiência e isso gera um equilíbrio. Por isso, é que há lugares onde é mais aconselhável estar alguém com 40 anos, e lugares onde é mais aconselhável estar alguém com 60.

Rui Rio vive no Porto e tem 66 anos. Foto: Filipa Ferreira/JPN

JPN – Quais são, para si, as características que um bom líder deve ter?

RR – Primeiro, é preciso dar o exemplo, isso é fundamental. Estou a falar de características de um líder a sério e com qualidade. Não posso estar a dizer para se fazer de uma dada maneira e eu fazer de outra. 

Eu entrava na Câmara do Porto às oito e meia da manhã e só saía às nove da noite. Não fazia aquilo para dar o exemplo. Fazia, porque estava empenhado e tinha que fazer e estava lá. Mas, ao mesmo tempo, estava a dar o exemplo.

Depois, é preciso ter sempre a capacidade de olhar para o outro, para o subordinado, quando nós lideramos, e perceber a circunstância em que ele está e até onde é que ele pode ir. Por um lado, para não lhe pedir mais do que aquilo que é sensato, mas, por outro lado, também para não permitir o abandalhamento da situação.

Depois, é preciso ter truques para levar as coisas. Não é bem truques, é uma estratégia. Eu tinha. Na Câmara [do Porto] tínhamos muitas empresas municipais, fundações, etc. Eu, por exemplo, fazia, todos os trimestres, uma reunião com as administrações todas juntas. Cada administração tinha três pessoas e, portanto, fazia uma reunião de 15 pessoas. Naquelas reuniões cada um dizia o que tinha conseguido e os objetivos. Eu estava a liderar a reunião, e, naquela altura, não era só a reunião, estava a liderar toda uma forma de gestão de um grupo grande, e quase não falava.

Foi uma inovação que fiz que foi fundamental para os indicadores das diversas empresas melhorarem, das pessoas se empenharem, porque, por um lado, tinham os outros a perguntar, mas eles também podiam perguntar sobre os outros, e tudo aquilo se tornava um grupo.

Há diversas formas, consoante as circunstâncias, de liderar, desde que também se tenha poder para liderar, porque muitas vezes pede-se ao líder que faça aquilo que ele não consegue, porque não tem poder. Na política nacional, isso é muito frequente. 

A política, hoje, é de a gente fugir o mais depressa possível e não se meter. Coisa absolutamente horrível.

JPN – Foi atleta federado de atletismo no Centro Desportivo Universitário do Porto (CDUP), participou em corridas de carros e teve até uma banda durante a juventude. Como é que foram essas experiências?

RR – Tive uma banda, sim, mas só no colégio, uma coisa pequena. Nas corridas de carros, fui campeão quatro vezes. Era uma coisa que existia nos anos 60, antes do 25 de Abril. Havia alguns clubes aqui no Porto, havia em Lisboa, e depois faziam-se campeonatos. Funcionavam como os campeonatos da Fórmula 1. Ganhei quatro, depois fiquei em segundo num, depois fiquei em terceiro e depois desisti. Ganhei isso quando era jovem, 10 anos, 11, 12, 13, 14, por aí. Isso era importante porque, para um miúdo, conseguir ganhar esses campeonatos, era uma forma de afirmação.

Embora, se agora recuarmos, na festa de entrega das taças, nos quatro campeonatos que ganhei, não recebi nenhuma. Em todos eles, o meu pai castigou-me. É brutalidade. Não estou a falar de uma pessoa com 20 anos, mas sim de uma criança. Na altura, não percebia, mas foi importante para a minha afirmação pessoal. Tinha muito jeito… deve ter sido a coisa em que tinha mais jeito na vida, porque quase não treinava e ganhava tudo [risos].

No atletismo, era velocista. Fazia 100, 200 metros, cheguei a fazer 400, salto em comprimento, apesar de não ter corpo para isso, porque era muito magrinho. Tinha muita velocidade, mas não tinha força. Foi importante em termos de saúde e é até hoje porque ao sábado de manhã ou ao domingo de manhã, faço uma corrida, ao fim destes anos todos.

Também era relevante porque tinha os amigos da minha rua, os amigos do colégio alemão, os amigos da corrida de carros, os amigos do atletismo, os amigos das férias em de Viana… Ainda ontem tive um jantar com três amigos que andaram comigo no atletismo há muitos anos. É das coisas que, claramente, repetia, não tenho dúvidas nenhumas.

JPN – A política sempre esteve presente na sua vida? 

RR – A política esteve quase sempre presente, se eliminarmos os primeiros anos de idade, onde ninguém é político [risos]. Mas, mais ou menos a partir dos 15 anos, comecei.

Naquela altura, era um bocadinho diferente. Hoje, alguém que tenha 20, 30 anos e se mete na política, tem mesmo de ter, lá dentro de si, um impulso muito forte. A política hoje é de a gente fugir o mais depressa possível e não se meter. Coisa absolutamente horrível. Na altura, não era tanto assim. 

O principal impulso que tive para entrar na política, no tempo do Estado Novo, foi a hipocrisia que existia. Na política, há sempre um bocado de hipocrisia, mas, quando os regimes se aproximam do fim, o discurso torna-se muito mais hipócrita. Aquilo que era o discurso oficial, seja dos políticos, das instituições do regime, das instituições públicas, da igreja, do governo, tudo aquilo era um discurso absolutamente hipócrita. As pessoas diziam uma coisa que não tinha nada a ver com a realidade. Que é, aliás, o que hoje se nota já também. O que é um sinal claro de esgotamento do regime e da incapacidade para resolver as coisas.

Na altura, começou a irritar-me e foi isso que me mobilizou para a política antes do 25 de Abril. No 25 de Abril, o que me mobiliza é a mesma coisa, ao contrário. Já não há hipocrisia, vamos construir uma democracia, com liberdade, como era a Alemanha. No Colégio Alemão ensinavam-me aquilo que não se ensinava nas escolas portuguesas, o que era a democracia, o fascismo, o comunismo… Isso também me ajudou a entrar mais cedo. 

Tenho uma tendência grande, e acho que ainda bem, para afrontar e para pôr em causa os interesses instalados, que é uma coisa dificílima na política.

JPN – A primeira eleição para a presidência da Câmara Municipal do Porto foi uma surpresa em 2002. Quando assumiu o cargo, teve dúvidas da sua capacidade?

RR – Não. Não tive dúvidas da minha capacidade, embora tivesse 44 anos. Essa ausência de dúvidas também estava ligada à minha inexperiência. Começamos por entrar mais de cabeça, sem medir tanto as consequências. Fazemos aquilo que tem de ser feito, o que nós achamos que deve ser feito. Se eu, na altura, fosse mais experiente, teria tido algumas dúvidas. Não é um elogio. Havia uma certa inconsciência ainda na altura.

JPN – Foi líder da Câmara Municipal do Porto durante 12 anos e, até agora, é a pessoa que ocupou o cargo durante mais tempo na história da cidade. Como é que descreve este período em que trabalhou naquela e para aquela que é a sua cidade?

RR – Tenho uma tendência grande, e acho que ainda bem, para afrontar e para pôr em causa os interesses instalados, que é uma coisa dificílima na política. Se me perguntarem qual é a maior característica que me distingue na política, acho que é essa. A marca de chegar e, se está mal, tem de estar bem, custe o que custar.

Quando eu chego à Câmara, tinha havido 12 anos seguidos de gestão do Partido Socialista, com dois presidentes. Estava instalado na câmara, nas empresas municipais e em tudo, o Partido Socialista. Os funcionários ou eram do PS ou então tinham aderido ao PS. Quando entra alguém para renovar, reformar, gera uma reação brutal.

A mesma coisa relativamente à cidade, porque ela própria estava enquistada. Havia um conjunto de empreiteiros que ganhavam as obras todas, havia os tipos da denominada cultura que levavam subsídios para tudo e mais alguma coisa. Havia o poder do futebol. Havia os jornalistas também. A dada altura, comecei a relacionar-me com isso tudo de uma forma independente. Isso gerou na cidade reações grandes. Tive, contra mim, os jornais, o presidente do Futebol Clube do Porto, os agentes culturais, por exemplo, do Teatro do Campo Alegre que estavam habituados a ter subsídio e mais subsídio e, em troca, vinham até ao jornal dizer bem. Comigo não era assim. 

JPN – O equilíbrio e rigor das contas da autarquia e a aposta na requalificação dos bairros do Porto foram algumas das grandes bandeiras enquanto esteve à frente do Município. Enquanto político, define-se como uma pessoa rigorosa?

RR – Claramente. As contas em ordem, em grande parte, devem-se ao curso que tirei, mas a maior parte decorre da minha forma de ser. Por todos os sítios onde passei, só com a exceção das tintas CIN, encontrei as finanças em muito mau estado. Encontrei na Câmara, encontrei no Partido, encontrei em J. Batista.

A Câmara do Porto tinha um endividamento brutal, tinha despesas quer variáveis, quer fixas, que era preciso pôr em ordem. E foi posto, com moderação. Demorou 12 anos, começaram a estar bem, mais ou menos, para o fim de dez anos, porque senão matavam-me durante a cura. 

Fez-se isso, e, atualmente, por aquilo que me é dado a observar, continua equilibrado, com um passivo baixo. Apanhei aquilo com um passivo brutal, e não é só passivo, é passivo bancário, é passivo aos fornecedores, são os contratos assinados que depois se refletem em custos mais à frente, era uma coisa terrível. Foi posto na ordem. Não sei conviver com as coisas desequilibradas. 

JPN – Esse rigor já foi confundido com frieza e arrogância?

RR – É muitas vezes confundido. Por exemplo, na altura, investi 200 e muitos milhões de euros em bairros sociais. A reabilitação das escolas do Porto, que eram 50 escolas, onde poderei ter gasto mais uns 30 milhões. É uma coisa eminentemente social. Quando eu cortava os subsídios à denominada cultura, dava subsídios, mas em circunstâncias muito rigorosas, e cortei muitas outras coisas desse género, festas e festarolas, esse dinheiro era para aplicar ou na redução do passivo ou na reabilitação dos bairros sociais.

Quem está na política, tem de ter isto na cabeça. A malta vê a rua asfaltada, bate palmas, gosta muito e vota nele. Isto [investir nas escolas e bairros] não se vê, porque demora muitos anos a ver-se. Isso que dizem de frieza, não quero ser arrogante, mas acho que é por alguma insuficiência intelectual. As coisas têm de ser vistas com mais abrangência.

JPN – Alguma vez foi mal abordado na rua por alguém em algum espaço público? 

RR – Muito pouco. Tenho de fazer um esforço para me lembrar de uma situação assim. Talvez em campanha eleitoral. Daí sim. A falar com este e com aquele na rua, levamos respostas que não gostamos. Já fiz cinco campanhas sendo o centro das atenções, três no Porto e duas nacionais. Podem dizer-me, a dada altura: “vocês são todos iguais”. Agora, ir na rua e dirigirem-se a mim de uma forma agressiva, só me lembro de situações ligadas ao futebol, em 2003, 2004, 2005. Aí sim. Mas não se dirigiam a mim, diretamente. Eu ia num passeio e eles no outro e davam dois gritos, pareciam que estavam na selva. Ou, então, passavam de carro e punham a cabeça de fora, aos gritos, a insultar. Mas não vieram ter comigo a dizer “você fez isto e aquilo”. Isso não. 

Foi um disparate o que o PSD fez, uma coisa absolutamente disparatada, que é fazer um congresso a 17 de dezembro, com eleições a 30 de janeiro. Isto não existe.

JPN – Entre 1982 e 1984, foi vice-presidente da Juventude Social-Democrata (JSD). Foi eleito deputado à Assembleia da República pelo PSD em 1991, foi também Secretário-Geral do partido, Vice-Presidente e eleito Presidente em 2018 do Partido Social Democrata. Com tudo isto, o que é que o PSD significa para si?

RR – A minha relação com o PSD começou antes do PSD nascer, digamos assim. Porque, a seguir ao 25 de Abril, não aderi propriamente ao PPD. A seguir ao 25 de Abril fui para onde o doutor Sá Carneiro foi. O doutor Sá Carneiro fundou um partido, que era o PPD, eu fui para o PPD. E disse uma vez isto, quase que me matavam no partido: “Se o doutor Sá Carneiro tivesse ido para o Partido Socialista, eu ia para o Partido Socialista”. Foi logo um 31. A estupidez é uma coisa abundante. Mas a verdade é essa.

Eu era um fã do doutor Francisco Sá Carneiro, era em quem me revia. Quando se dá o 25 de Abril, eu vou atrás dele, como é lógico. Como provavelmente hoje há gente que venha atrás de mim, numa coisa ou noutra que eu possa fazer.

JPN – Depois das eleições legislativas de 2022, que deram a vitória ao Partido Socialista (PS), escolheu cessar funções no PSD. Foi uma decisão óbvia ou difícil de tomar? 

RR – Foi uma decisão óbvia. Se os partidos e, neste caso, o PSD, funcionassem com alguma racionalidade, eu tinha acabado de ser eleito [Rio foi reeleito nas diretas de 27 de novembro; as legislativas foram em janeiro do ano seguinte]. Foi um disparate o que o PSD fez, uma coisa absolutamente disparatada, que é fazer um congresso a 17 de dezembro, com eleições a 30 de janeiro. Isto não existe.

Fui eleito líder, mas só tomo posse no congresso. Levou a que eu, nas eleições, tivesse um mês e meio de mandato. Ora, mandaria o bom senso que a pessoa ficasse, principalmente, porque as eleições nem sequer seriam quatro anos depois [seriam cinco anos depois]. Cinco anos é [um período] longo demais. O cargo do líder de oposição é muito pesado. Dessa perspetiva, até fazia algum sentido [ficar], desde que eu dissesse, como disse, que “candidato a primeiro-ministro não sou nunca mais”. Podia era prestar o serviço de gerir o partido, dirigir o partido, fazer a oposição, poupando quem me pudesse suceder. Isso fazia algum sentido se houvesse racionalidade, mas não há.

Considerando que já fui duas vezes candidato a primeiro-ministro e, desta vez, os outros tiveram maioria absoluta… não sou mais. Chega. Já tenho recorde nacional de líder da oposição. Nunca ninguém esteve tanto tempo. Se ficasse mais quatro anos e tal, era quase recorde mundial. Isso não faz sentido. Por isso, vou-me embora. Era óbvio.

Muita gente diz agora: “se você estivesse, agora é que ganhava”. Pois, está bem, se a minha avó tivesse rodas era um camião. As coisas são como são. Há pessoas que dizem isso até em tom crítico, dizendo que devia ter ficado. As pessoas esquecem-se o que é que teria acontecido se eu tivesse ficado. Se eu já tinha sido permanentemente atacado, então, numa situação daquelas era absolutamente insuportável. É uma decisão mais do que óbvia, ter de sair naquelas circunstâncias.

Não estava pronto para o PS ter maioria absoluta.

JPN – Estava pronto para perder?

RR – Não estava pronto para o PS ter maioria absoluta. Eu achava, pelo contacto na rua e pela experiência, que quem ganhasse, ia ganhar com uma margem escassa, com 2%. Era isto que achava que ia acontecer.

O PS consegue a maioria absoluta com menos votos da história da democracia portuguesa. Conseguem com 41 e tal [por cento]. Nunca ninguém com 41 consegue a maioria absoluta. Teve muita sorte pelo método. Por exemplo, em Bragança, perdemos um deputado por 14 votos, em Portalegre por cento e tal. Eles têm muita sorte, porque vão buscar os últimos dos diversos distritos. Mas, mesmo que não tivessem conseguido os 41%, era uma diferença grande. Nós tivemos 29%, há uma diferença de 12. Nunca contava com uma diferença de 12, até porque a diferença aumentou relativamente a 2019.

Pese embora o PSD tenha subido – nós subimos, tivemos mais percentagem, mais votos, mas menos deputados. Tínhamos tido 27 e, agora, tivemos 29%, exatamente certos. Foi demais. Mas foram umas circunstâncias muito especiais.  O António Costa disse isto e é verdade. As eleições foram num domingo. Se fossem na segunda, as pessoas já tinham votado diferente, principalmente se soubessem o resultado.  

Nessas eleições, fui vítima de uma coisa que também já usufruí. Aqui, há uma concentração de votos no Partido Socialista, pela esquerda, pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda, principalmente, porque ficam muito pequeninos, para evitar a vitória do PSD. Há ali um voto útil, que depois deu mais do que, quem votou, queria. Quem votou queria que o PS ganhasse, mas não queria que tivesse maioria absoluta.

Já usufruí disso quando ganhei a primeira vez a Câmara do Porto. Estou convencido que a maioria votou em mim para que o Fernando Gomes não tivesse maioria absoluta, porque, segundo eles, ele tinha traído o Porto [quando aceitou, a meio do mandato, o cargo de ministro da Administração Interna]. Não votaram exatamente em mim para eu ganhar, e foram tantos a fazer isso que eu ganhei. Penso que foi assim. É o contrário de 2022.

JPN – Está convencido que foi isso que aconteceu agora?

RR – Sim. Há uma percentagem significativa de votantes no PS que, se soubessem o resultado, não teriam votado, porque a ideia não era dar uma maioria absoluta ao PS, a ideia era evitar que o PSD ganhasse. E, em alguns casos, entre aqueles que queriam evitar que o PSD ganhasse, estavam os que não confiavam na questão do Chega. Ou seja, apesar de eu ter dito que não levava o Chega, as pessoas olharam para mim como um político normal e disseram “ele disse uma coisa, mas faz outra”. Enganam-se. A partir do momento em que disse não, é não.

Rui Rio foi o primeiro presidente da Associação de Estudantes da FEP. Foto: Filipa Ferreira/JPN

JPN – Deixar a liderança do partido foi o encerrar de um capítulo na sua vida? 

RR – Isso foi. Porque é um cargo, diria, estupidamente exigente. Digo estupidamente, de propósito. Não precisava de ser tão exigente. O líder da oposição, na política portuguesa, sofre um desgaste muito grande, porque pedem ao líder da oposição, muitas vezes, aquilo que ele não tem condições para dar.

Não sei se foi pela primeira vez, mas comigo foi assim: quando acontecia qualquer coisa de mal ao governo e ao PS, em vez de se ver o PSD como alternativa, não. O PSD levava pancada também, porque aquilo corria mal e o PSD não fazia nada. 

Imaginemos, o Serviço Nacional de Saúde está mal e o PSD não faz nada. O PSD, na oposição, a única coisa que pode dizer é que está mal e que gostaria que estivesse diferente. Isso não altera o Serviço Nacional de Saúde. O que é que o líder da oposição pode fazer? Não pode fazer nada.

O líder da oposição, na política portuguesa, sofre um desgaste muito grande, porque pedem ao líder da oposição, muitas vezes, aquilo que ele não tem condições para dar.

JPN – E, hoje, como é a sua relação com o partido? 

RR – A relação direta com o partido não é nenhuma. Sou militante. Não é nenhuma, no sentido de não participar nas reuniões. Encerro um capítulo, porque tenho uma carreira longa de partido. Fui praticamente tudo. Fui vogal da Direção Nacional, fui secretário-geral da Direção Nacional, fui vice-presidente da Direção Nacional, fui presidente da Direção Nacional, fui membro do Conselho Nacional, fui congressista muitas vezes, fui deputado pelo partido, fui presidente da Câmara pelo partido. 

Não deixo de ser militante do PSD, como é lógico. Por mais que eu até possa querer fugir, acabo sempre por não fugir das notícias e de uma avaliação interior que faço. Agora, não a faço em público, porque não quero fazer aos outros o que fizeram a mim.

JPN – No mundo da política, ainda ficam objetivos ou sonhos por cumprir ou já está tudo feito?

RR – Não. Não fica nenhum sonho por cumprir. Ou seja, há muito para fazer. Há muito mais para fazer hoje do que havia há um ano, e há um ano muito mais do que havia há dez. Precisamente pelo desgaste que o regime tem e pelos sinais de pré-falência que o regime apresenta. Portanto, há muito para fazer, cada vez mais, e cada vez mais pesado. 

JPN – Recordando todo o seu percurso, que momentos o marcaram mais durante a vida política?

RR – A segunda vitória na Câmara do Porto. A primeira vitória da Câmara do Porto é aquela que fica na história, por ninguém esperava que eu fosse ganhar. No entanto, a segunda tem mais valor, porque, durante o meu primeiro mandato, fiz muitas roturas, fiz muita coisa com custos políticos elevados, mas que tinham de ser feitas, para o bem comum.  Aquela guerra que me moveram, não fui eu que me movi, mas que me moveram no futebol. E, apesar disso, eu vou à eleição, consigo ganhar e com maioria absoluta. A eleição de 2005 é, para mim, a eleição com mais valor que eu tive.

Já a de 2009, em que volto a subir a votação, já foi mais fácil. 2005 foi mesmo uma eleição difícil. Estava em avaliação há quatro anos e quatro anos ainda era pouco tempo para se perceber bem o que eu estava a fazer. Se tivesse sido candidato em 2013, se a lei permitisse e se eu quisesse, penso que ainda teria tido um bom resultado. Marca-me mais as coisas da Câmara do que no PSD.

A margem de manobra, hoje em dia, para se fazer alguma coisa pela sociedade, pelas pessoas, pelo país, é cada vez mais reduzida. Muitos boicotes, muitos interesses instalados, muita mentira. Se as pessoas não conseguem descodificar bem aquilo que são as notícias, e, fundamentalmente, aquilo que são os comentários, e uma parte significativa das pessoas não consegue descodificar, o político fica com uma imagem que não tem nada a ver com aquilo que ele é.

Via coisas na televisão sobre mim, em que mentiam todos os dias, e eu olhava e dizia assim: “Quem vê isto e não conhece a verdade, deve achar que eu sou maluco”, porque um tipo que dissesse aquilo que diziam que eu dizia e fazia é um tipo que não bate bem da cabeça. Aí também está muito da impopularidade e da baixa qualidade dos agentes políticos. As pessoas com mais qualidade, mais bem-intencionadas não estão para isto. Por isso, entram os que têm menos qualidade e que se preocupam menos que distorçam o que eles dizem.

Imagine um artigo de opinião que diz que eu fui à China e na China fiz isto e aquilo e que isso não se faz, que devia ter feito desta maneira. E, a seguir, outro artigo de opinião. E está toda a gente a discutir que eu na China fiz não sei o quê e, na origem, eu nem à China fui. É preciso ter uma robustez muito grande para aturar isso tudo. Eu tenho bastante, mas há quem tenha mais. O António Costa, pelos vistos, tem mais do que eu, desse ponto de vista. Encara com mais desportivismo ainda. Agora, para as pessoas normais isto é insuportável.

Desliguei o telefone, sentei-me no gabinete e pensava: “O que é que eu faço? Anulo o jantar ou mantenho o jantar? Anulo o jantar, matam-me. Mantenho o jantar, há um atentado e morrem 40 ou 50 pessoas, a começar por mim próprio, provavelmente”.

JPN – A política trouxe-lhe mais alegrias ou dissabores?

RR – Como estive muitos anos na política, essa pergunta confunde-se um bocado com a nossa própria vida. Trouxe-me dissabores e trouxe-me alegrias. Agora, por exemplo, na associação de estudantes, as alegrias foram maiores que os dissabores. Depois, na Câmara do Porto tive muitos dissabores, tive de andar com o guarda-costas, li muita coisa injusta, mas fizemos coisas e ver essas coisas a acontecer é bom para quem está na vida pública. Na liderança do partido, diria que os dissabores foram talvez superiores às alegrias. Também há, mas tive a oportunidade de ver muitos comportamentos do ser humano que eu gostaria de não ter conhecido, de não ter visto.

JPN – Se pudesse voltar atrás, haveria alguma coisa que faria de forma diferente?

RR – Sabendo o que sei hoje e, se isso fosse possível, nunca teria ido para a política. Tenho uma filha com 22 anos, ela mete-se pouco em política. Se ela me perguntar um conselho e quiser seguir o conselho, eu digo não. Claramente não. Mas digo mesmo. Eu não teria ido para a política, porque teria tido uma vida mais tranquila, teria ganho mais dinheiro. Teria sido diferente, se tivesse sido uma carreira normal de economista, de gestor. Mais gestor do que economista, até.

JPN – Considera que a vida política é solitária?

RR – Depende dos cargos, há cargos solitários. O primeiro-ministro é solitário, algumas vezes; o Presidente da República é solitário, muitas vezes. O presidente da câmara é solitário, algumas vezes. O líder da oposição é solitário.  

Por exemplo, isto agora tem piada, mas, na altura, não teve graça nenhuma. O Euro 2004 abriu no Porto, com um jogo entre a Grécia e Portugal. No dia anterior, houve um jantar na Alfândega, oferecido pelo presidente da Câmara às delegações e a muita gente, cerca de 800 pessoas. Vinha o primeiro-ministro, o ministro da Grécia, provavelmente o presidente da UEFA. Por volta das três da tarde, recebo um telefonema do primeiro-ministro, que me diz: “Acabam de ser presos nove terroristas no Porto”.

Na altura, foram os serviços secretos ingleses que nos alertaram, porque nem nós tínhamos capacidade para isso. Ou seja, iam fazer um atentado naquele jantar. Nós tivemos o 11 de Setembro, o 11 de Março em Espanha e aquele dia era o 11 de Junho. Batia certinho.

Na chamada, ele disse-me: “Como o jantar é oferecido por si, decida como quiser, se quer anular o jantar ou se quer fazer o jantar. Nove estão presos, mas podem andar mais ou menos. Tenho aqui o Conselho a falar com o diretor nacional da PSP, que é quem está a coordenar a parte de segurança”. Eu desliguei o telefone, sentei-me no gabinete e pensava: “O que é que eu faço? Anulo o jantar ou mantenho o jantar? Anulo o jantar, matam-me. Mantenho o jantar, há um atentado e morrem 40 ou 50 pessoas, a começar por mim próprio, provavelmente”. Era algo secreto, não podia divulgar. A primeira decisão que eu tomei foi que a minha mulher não ia, porque tinha uma filha pequenina. Depois falei com o diretor nacional, ele foi-me dando informações, alterámos aquilo tudo e, à última hora, as pessoas entraram por outra porta.

Os telhados estavam cheios de snipers, de atiradores e mantive aquilo. Acabou por não acontecer nada. E o primeiro-ministro depois até acabou por dizer: “Eu, por acaso, não posso ir, surgiu aqui uma coisa”. Se teve imprevisto ou não, não sei [risos], mas aqui está uma situação que se passou comigo e que foi solitária. 

JPN – Então que conselhos é que daria ao Rio de há 20 anos atrás? 

RR – Perante as dificuldades e perante as múltiplas tarefas que há a fazer, é possível gerir, politicamente, com mais calma. Um bocadinho mais de prudência do que aquilo que são as minhas características, talvez. Ou eram. Diminuir um pouco a resistência à mudança. Houve circunstâncias na vida que eu podia, talvez, ter feito com a habilidade que a experiência traz.

Agora, chegado à liderança do partido, eu já tinha essa experiência, já fiz um bocado mais assim. Hoje em dia, a sociedade está muito extremada e, por consequência, a política também, em que muitos olham para os grupos como tribos. Eu sou da tribo do partido A, eu sou da tribo do partido B, da tribo do partido C, logo, eu sou contra as outras tribos e ele não faz nada de jeito, está tudo mal. Isto é a melhor receita para o descalabro e para a estupidez, como é evidente. Mas é o que temos.

Olhando ao trajeto todo, o conselho que me podia dar, em algumas circunstâncias, é: “calma, ainda não, primeiro aquilo, depois aquilo”, e não tanto ao mesmo tempo.  

Ainda ontem passei pelo YouTube, numa entrevista minha à TVI, perguntaram-me porque é que ainda não tinha dito que votava contra o Orçamento do Estado do ano de 2020. E eu disse: “O Orçamento do Estado tem de ser estudado, e, apesar de ser normal que o partido da oposição vote contra, se assim for, quero dizer porque é que voto contra o Orçamento do Estado, tenho de estudar isto”, e a jornalista sempre a insistir. A experiência que me traz é para eu não ir a correr à televisão dizer que sou contra, como eles querem. Ou seja, ter calma, estudar e haver mais seriedade.

JPN – Além do doutor Francisco Sá Carneiro, que outras influências tem? 

RR – Em Portugal, o Sá Carneiro. Um pouco o doutor Balsemão, que estava com o doutor Sá Carneiro na ala liberal da Assembleia Nacional. Depois, o Willy Brandt, na Alemanha. E o Helmut Schmidt, também. Também tenho uma admiração especial por Gandhi, mas esse morreu e eu ainda não era nascido. É uma figura histórica, é diferente. Pelo Mandela, tenho uma admiração muito grande. Acho que temos quase todos. 

Agora, mais diretamente a influenciar a política, eu diria Sá Carneiro e, por exemplo, o próprio Mário Soares, mas eu era mais o doutor Sá Carneiro. Apreciei, segui, li, ouvi. Tenho noção que há muita gente que me diz que tenho algumas parecenças na maneira de ser com ele, e terei. Só com uma diferença. Acho que, dentro das parecenças, eu sou mais moderado. Ele era muito radical e corajoso. É aquela frase que eu digo muitas vezes, e que me aplico a mim também: “Ainda que todos, eu não”.

Editado por Filipa Silva

Este trabalho foi originalmente publicado no jornal “O Essencial” realizado no âmbito da disciplina de AIJ/Online e Imprensa – 3.º ano