Dois anos depois do início da guerra, mais de 6.5 milhões de ucranianos estão fora do país. Estima-se que 90% sejam mulheres e crianças. Alguns milhares atravessaram toda a Europa e vieram para Portugal. O JPN falou com Anatasiia Tsiukh, Mariia Kuznetsova e Natalya, refugiadas que escolheram o Porto para viver. Não sabem quando vão regressar, mas sabem que gostariam de o fazer. “A Ucrânia não vai voltar a ser a mesma”, dizem.
“Ninguém acreditava que a guerra viria aí”, mas dois anos depois a guerra perdura e as marcas são profundas. Anatasiia Tsiukh, refugiada ucraniana, abandonou o país natal no início do conflito e está em Portugal desde junho do ano passado. Como ela, foram muitos aqueles que decidiram abandonar a Ucrânia no decorrer da guerra.
Neste momento, existem cerca de 6,5 milhões de refugiados ucranianos espalhados pelo mundo, cerca de 90% dos quais são mulheres e crianças. Seis milhões estão em países da União Europeia, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).
A sequência de bombardeamentos russos às cidades ucranianas fez com que o medo se alastrasse e a única opção viável fosse sair do país. Anastasiia conta que decidiu abandonar Kiev no primeiro dia de guerra pela segurança do filho, Oleg, na altura com apenas um ano: “queríamos um lugar seguro para ele, principalmente para ele, mas também para nós”, conta ao JPN.
Cândida Pinto, repórter da RTP já enviada à Ucrânia por sete vezes, recorda que a “22 e 23 de fevereiro [de 2022], Kiev era uma cidade vibrante, com músicos na rua, com flores à venda. Dois dias depois, a cidade estava vazia, a cidade estava silenciosa, a cidade arrepiava”.
Ninguém na Ucrânia previa que a Rússia pudesse fazer uma investida desta dimensão. Era pelo menos isso que pensava Mariia Kuznetsova, de 33 anos, natural de Dnipro, antes de tudo começar.
A verdade é que a 24 de fevereiro de 2022 a Rússia invadiu a Ucrânia e a vida nunca mais foi a mesma para quem vivia no país.
O dia em que tudo mudou
O dia 24 de fevereiro de 2022 está bem vivo na memória das refugiadas que o JPN ouviu. Todos os que viveram o terror do primeiro dia de invasão sabem dizer ao certo como tudo aconteceu.
Mariia estava no Chipre, de férias, com o namorado e com amigos. Naquela manhã, acordou muito cedo, por volta das 6h00, talvez por causa das imensas notificações que recebeu. “Os pais dele [do namorado] enviaram-me uma foto da rua perto da nossa casa, e havia uma parte de um míssil. Foi a primeira coisa que vi”, conta. Ainda “meia a dormir”, ligou ao pai, que estava em Dnipro, a quarta maior cidade da Ucrânia, situada no sudeste do país: “Ele estava bem, assustado, mas bem”. Depois contactou amigos e familiares, na tentativa de conseguir tirá-los do país. “Eu estava segura, e eles estavam a tentar comprar medicamentos, comida, água para se esconderem”, lamenta Mariia.
Anastasiia Tsiukh, 40 anos, contou ao JPN que na noite dos primeiros ataques sonhou com a eclosão da guerra: “Nessa noite, sonhei que estava numa sala e ouvia na rádio que a guerra tinha começado, depois ligava para toda a gente a dizer ‘A guerra começou! A guerra começou!'”. Acordou às 5h00 da manhã com uma chamada de um amigo do marido que lhe disse que a guerra tinha eclodido. “Não ouvimos nenhuma explosão, mas ligamos a televisão e ouvimos Putin, aquele homem louco!”, conta a ucraniana.
Apesar de não querer acreditar, ela e a família já equacionavam a possibilidade do conflito começar, por isso, tinham planos – coisas empacotadas, malas feitas. Queriam fugir, sair do país. Foram à bomba de gasolina para abastecer o carro: “Havia uma enorme fila, muito trânsito, imensas pessoas, um ambiente de pânico”, descreve Anastasiia. Só conseguiram sair de Kiev às 15h00 da tarde.
Cândida Pinto também viveu este dia de perto. Para a repórter, apesar de ter ido para Kiev com o objetivo de cobrir a iminência desta guerra, o efetivo desencadear do conflito foi uma “enorme surpresa”.
“Acordámos com explosões à volta de Kiev, com sirenes a tocar, com as pessoas todas no hotel a correrem para irem para o bunker”, descreve numa entrevista dada ao JPN a partir da Ucrânia, onde volta a estar como repórter.
Cândida Pinto e o repórter de imagem David Araújo dormiram as primeiras noites nesse bunker, no piso -2 do edifício, “cheio de gente, com muitas crianças”. A repórter relembra que naquele abrigo as crianças eram “muito pequenas. Com um ano e meio, dois anos, três anos”. “O medo era palpável entre as pessoas e as crianças não choravam. Não havia uma birra, não havia nada”, recorda com admiração. Foi esse silêncio arrepiante que a impressionou.
A repórter da RTP conta também que viu Kiev esvaziar-se em dois dias: “criaram-se filas de trânsito, imensas pessoas a fugirem com receio de que a cidade fosse arrasada”. Kiev, a sétima maior cidade da Europa antes de estourar a guerra, terá passado de uma população de 3 milhões – algumas estimativas referem 3.6 milhões – para menos de um milhão de habitantes em março de 2022. A cidade encheu-se de checkpoints, que controlavam as entradas e saídas da capital. Todos queriam tentar salvar-se.
Porto seguro
O sonho de ver o oceano, umas férias já planeadas ou simplesmente (e principalmente) o facto de ser “o mais longe possível”. As histórias partem de origens diferentes, mas o destino levou-as à mesma cidade, o Porto. Ainda assim, até cá chegar, o caminho não foi fácil.
Natalya, tem 49 anos, estava em Kharkiv, no leste do país, e fugiu quando a invasão em larga escala começou. Foi para a casa de uns familiares numa aldeia, que acabou por ficar cercada pelos militares russos. A família passou um mês “debaixo das bombas” até o exército ucraniano conseguir libertar uma parte do território. Mal tiveram oportunidade, foram para o norte do país e depois acabaram por abandonar a Ucrânia para “o mais longe possível da guerra”- Portugal.
Já Anastasiia conta que depois de sair de Kiev passou três dias na fronteira com o marido e o filho, pequeno, onde viveram à custa da solidariedade e boa vontade dos que também queriam fugir. “Tivemos ajuda de imensas pessoas. Traziam-nos comida e tudo o que era necessário para o bebé.”
Daí, foram para a Roménia e, um mês depois, para França. Até junho do ano passado, ficaram a viver em casa de uma família francesa que elogia pelo acolhimento. Contudo, a imprevisibilidade da duração da guerra levou o casal a procurar uma solução mais estável e Portugal foi a escolha.
A ucraniana Mariia explica que Portugal ofereceu, desde o início do conflito, boas condições e uma política de proteção aos refugiados vindos da Ucrânia, daí ser a escolha de muitos. Segundo o Ministério da Defesa, “logo em 2022, foram acolhidas no nosso país mais de 50 mil pessoas em fuga da guerra, cidadãos ucranianos e de outras nacionalidades residentes em território da Ucrânia.” Já em 2023 residiam em Portugal 59.350 refugiados ucranianos, 3.042 dos quais no Porto, o terceiro município com mais proteções temporárias concedidas, segundo o Serviço de Estrangeiro e Fronteiras.
Tudo o que ficou para trás
“A minha vida era incrível, acho que era até perfeita”, relembra Mariia. Agora, está segura, mas não descansada, ou não tivesse os pais “bloqueados na parte ocupada da Ucrânia”. Para a refugiada, “essa é a pior parte”. Mariia revela que um dos momentos mais sufocantes pelo qual passou foi quando o seu pai desapareceu durante duas semanas. “Não sabíamos de nada, pensávamos que ele já não estava vivo”, diz. Como conta a refugiada, as tropas russas acharam que o seu pai era um espião e por isso ficaram com o seu carro, todos os seus pertences e mantiveram-no preso, em Nova Kakhovka numa prisão subterrânea, sem comida. De longe, já a quilómetros da sua terra-natal, Mariia acompanhou toda a história sem poder confortar o resto da família.
Os pais e irmã de Anastasiia também ficaram para trás. O seu filho, Oleg, agora com três anos, ficou sem ver os avós durante um ano e meio. Para comemorar o aniversário, a família encontrou-se em Budapeste, na Hungria, mas Anastasiia não esconde a dificuldade de estar longe dos seus entes queridos.
Para além da família, ficaram também para trás muitos amigos. Apesar de ainda manter contacto com alguns, a distância também corta relações: “Parei de falar com muitas pessoas porque estão longe, todos espalhados por diferentes países.” diz Mariia Kuznetsova que confessa também já não falar com alguns russos que conhecia pelas opiniões divergentes em relação ao conflito.
Para trás, ficaram também os destroços do que eram as cidades ucranianas, o caos e a guerra. Cândida Pinto já passou por mais de 12 cidades ucranianas nestes dois anos de conflito e descreve como vê a paisagem: em Borodianka, “nós olhávamos em 360º e estava tudo destruído”; em “Butcha apercebemos-nos da mortandade, da violência, das atrocidades cometidas pelos russos”.
A repórter da RTP explica a realidade da guerra no território: “um país que está um pouco dividido ao meio entre a zona onde há combates de artilharia pesada e onde está a linha da frente, e a zona onde há ataques aéreos”. Em Zaporizhia e em Dnipro, “as sirenes, os alarmes de ataque aéreo estão a tocar a toda hora”. É um pânico constante.
Kiev, onde Mariia e Anastasiia viviam por altura do eclodir da guerra, a quarteirões uma da outra, “é uma cidade que tenta fazer a sua vida”, conta Cândida Pinto. “Está como sempre esteve”, diz o repórter de imagem. Há movimento na rua, pessoas nas compras e nos cafés, a guerra já não passa por Kiev. Contudo, “quando há uma sirene…”, instala-se o pânico. As pessoas refugiam-se “em casa, nos corredores, nas casas de banho, na rua, vão para a estação de metro”, explica o repórter de imagem.
Ainda assim, “se a sirene não toca, por exemplo durante uma semana ou duas semanas, começa a criar-se uma ansiedade: ‘Mas a sirene não toca? Mas o que é que se passa? Ao menos que toque para ver se acontece alguma coisa’; é uma ansiedade muito grande”, explica o jornalista. A verdade é que naquela cidade, aparentemente, “não se passa grande coisa, mas passa-se tudo”, conclui.
“Obrigada, Portugal”
Lyudmyla Artysh é a vice-presidente do núcleo do Porto da Associação dos Ucranianos em Portugal, uma associação sem fins lucrativos que dá apoio na integração de ucranianos em Portugal.
Apesar de estar no país há 23 anos, a “consciência cívica” de Lyudmyla só despertou quando eclodiu o conflito em larga escala, em 2022: “tive uma grande necessidade de ajudar com alguma ação”, confessa. Começou como voluntária, a ajudar no núcleo da associação em Vila Nova de Gaia, a recolher bens para enviar para a Ucrânia, mas rapidamente foi preciso aumentar os esforços. Criaram um núcleo na Área Metropolitana do Porto, reunido no CIAP – Centro de Incentivo à Partilha, em Matosinhos, para “acolher os recém-chegados, para os ajudar a conhecerem-se, passarem algum tempo e ajudar a integrarem-se na sociedade.”
Lyudmyla Artysh destaca a importância do convívio entre as crianças: “elas sentem a mudança de uma forma mais brusca” e por isso “é bom que se encontrem pelo menos uma vez por semana para brincarem com os seus amiguinhos que falam a mesma língua, que partilham a mesma mentalidade, a mesma perceção do mundo. Assim acabam por se sentirem em casa.”
Miúdos ou graúdos, associados ou não, “a organização ajuda toda gente”, nas mais diversas áreas. No início da guerra houve uma grande mobilização, não só na coleção de bens para enviar para a Ucrânia, mas também para receber os refugiados.
“Criamos uma base de dados para perceber” quem conseguiam ajudar, em que áreas, “quem tinha transporte, conseguia ajudar com transporte, quem tinha alguma base de alojamento, que autocarros é que os podiam ir buscar, para onde iriam”, conta a vice-presidente do núcleo do Porto.
Para além disso, foi essencial ajudar a fazer chegar a informação já que a incompreensão da língua era uma barreira constante. Tatyana, de 36 anos, está em Portugal há oito e explica que “a logística burocrática não é fácil porque nem todos falam inglês e muitos precisam de ajuda no português. “Nós, como estamos aqui há muitos anos, conseguimos ajudar”, refere. Dar a conhecer todo o apoios que podem receber e ajudar a perceber onde é que se procura a informação é crucial. “Ir com eles à Segurança Social, ao centro de emprego, à Câmara Municipal”, são ações comuns. Agora, o que Lyudmyla nota ser o mais necessário é o apoio psicológico: “no início, todos achavam que iam ficar um mês, dois meses, meio ano. Agora custa muito aceitar que a situação não vai ser assim e que se vai prolongar.”
Um dos pilares da Associação também assenta sobre o apoio político à Ucrânia. Lyudmyla considera fundamental chamar a atenção através dos protestos, movimentos e manifestações que organizam, com o objetivo de “obter mais apoio político” para o seu país.
Natalya está no Porto há um ano e meio e foi uma das refugiadas apoiadas pela Associação de Ucranianos no Porto. Pouco ou nada fala em português, mas não deixou de agradecer ao nosso país pela hospitalidade: “Obrigada, Portugal!”
Mariia Kuznetsova acha que teve muita sorte, tem um apartamento que adora com o namorado, ambos trabalham remotamente – ela é business developer de uma empresa de desenvolvimento de software – e estão a aprender português: “somos muito felizes”.
Há esperança?
O futuro é marcado pela incerteza. Apesar de terem encontrado em Portugal um porto seguro, as saudades da Ucrânia e da antiga vida, pausada pelo barulho das bombas, crescem dia após dia.
“Isto muda a forma como tentamos planificar a vida. Não sabemos onde vamos estar no próximo ano, ou daqui a dois ou três”, explica Mariia Kuznetsova. A refugiada revela que tenciona ter filhos e, por isso, tão cedo não irá regressar a Kiev. “A Ucrânia não vai ser segura nos próximos cinco, dez anos e não vai ser seguro criar lá um filho. E não é só por causa da Rússia; há muitos territórios que estão cobertos de minas e explosivos e isso é super perigoso”, justifica.
Como muita gente, Anastasiia pensava que ia poder voltar rapidamente, “mas depois veio a primavera” e deixou de acreditar. A esperança de um fim próximo para a guerra começou a esvanecer e “já não é a mesma que tinha no início, quando tudo começou”. O povo ucraniano está cansado, tudo mudou e, no ponto de vista de Anastasiia, “a Ucrânia não vai voltar a ser a mesma”. Lyudmyla também considera que “quanto mais tempo demora a guerra, menos pessoas voltam”.
Mariia também espera que a guerra acabe. “Não quero que ‘congelem’ a guerra como faziam, mas sim que terminem com ela e que devolvam todos os territórios à Ucrânia”. O que mais preocupa a refugiada é não se ver um fim próximo: “Não vemos um caminho nem uma solução para isto”. A ucraniana de Dnipro queixa-se da falta de informação sobre o conflito e do que chama a “normalização do sofrimento do seu povo”.
“A informação [sobre a guerra] já não agita os media. As pessoas começaram a tolerar o facto de continuarem a matar ucranianos. É assustador. Não é normal alguém bombardear um país na Europa“, conclui.
Os dois anos sobre o início da Guerra na Ucrânia são lembrados este sábado, 24 de fevereiro, em Lisboa e no Porto, onde se vai fazer uma marcha lenta entre os Leões e a Câmara Municipal. A iniciativa é promovida pela Associação de Ucranianos no Porto.
Editado por Filipa Silva