730 dias. Este sábado (24), cumprem-se dois anos sobre o início da Guerra na Ucrânia. O JPN ouviu a opinião de José Milhazes e Sandra Fernandes, especialistas em Relações Internacionais, e os testemunhos dos repórteres da RTP, Cândida Pinto e David Araújo, sobre o momento atual do conflito.
“A velha ordem mundial rebentou definitivamente na noite de 23 para 24 de fevereiro, há dois anos atrás”. Quem o diz é José Milhazes, especialista em Relações Internacionais e História do Leste Europeu, ao fazer um retrato do conflito que tem marcado a Europa e o mundo.
De acordo com vários especialistas, as expectativas iniciais da Rússia eram simples: à invasão total da Ucrânia seguir-se-ia uma tomada do poder em Kiev, num conflito rápido. Em poucos meses, “tudo se desmoronaria como um baralho de cartas e o povo ucraniano sairia à rua para receber com beijinhos e abraços as tropas russas”, comenta o antigo correspondente português em Moscovo. Mas não foi isso que aconteceu. A resistência do povo ucraniano provou ser forte e a guerra continua. Já lá vão 730 dias, 11 milhões de deslocados e mais de 10 mil mortes civis (dados da Organização das Nações Unidas).
Ao atingir, este sábado (24), o marco de dois anos, o conflito corre agora nas ruas de Avdiivka e Kupyansk, cidades que, segundo Milhazes, correm o risco de serem cercadas pelo lado russo [o que se veio a confirmar dias após a entrevista]. Na ótica do especialista, do ponto de vista militar, uma derrota “pode nem ser catastrófica, mas terá sérias consequências do ponto de vista moral e político” já que se trata do “primeiro teste à nova direção militar” de Oleksandr Syrskyi, nomeada por Zelensky depois da demissão de Zaluzhnyi.
Já Kiev parece estar “como sempre esteve”. Juntamente com Cândida Pinto, David Araújo, repórter de imagem da RTP, já foi enviado para a Ucrânia sete vezes, passando por mais de 12 cidades. Na altura em que os dois repórteres falaram com o JPN estavam na capital ucraniana e compararam o ambiente de 2024 com o de 2022: “Há movimento na rua, as pessoas vão às compras, há pessoas nos cafés… Aparentemente, na cidade, não se passa grande coisa, mas passa-se tudo”, analisa o repórter de imagem.
Quando a sirene toca, tudo muda: “As pessoas regressam aos refúgios em casa, nos corredores, nas casas de banho, vão para as estações de metro”. David Araújo lembra que durante alguns meses as populações habituaram-se, mas que agora voltam a estar “mais preocupadas, mais tensas.” Aliás, “se durante uma ou duas semanas a sirene não toca, começa a criar-se uma ansiedade muito grande. Voltamos ao ambiente do início”, explica o repórter da RTP.
Ao longo destes dois anos, há momentos a destacar. Sandra Fernandes, professora de Relações Internacionais na Universidade do Minho, fala no “choque” da descoberta de “crimes de guerra” e das ações alegadamente levadas a cabo por militares russos, e que estão sob investigação: “o rapto e a endoutrinação forçada de crianças, retiradas das famílias e forçadas a ir para a Rússia”, “a forma como Mariupol foi completamente arrasada e a dificuldade em retirar as populações” foi, para a professora, muito marcante. Já para Cândida Pinto e David Araújo, que reportaram as “atrocidades” de Butcha e Borodianka, o mais marcante foi “a mortandade e destruição” que devastaram estas duas cidades.
No campo estratégico, José Milhazes destaca a recuperação de uma parte da região de Kharkiv e a atuação inesperada da Ucrânia na Crimeia e no Mar Negro, onde uma parte significativa da armada russa já foi afundada. Para o especialista, “é uma grande surpresa e mostra que os ucranianos sabem combater”. Como explica, “atirar um navio de guerra ao fundo é, às vezes, tão importante como a tomada de uma localidade, do ponto de vista moral e até estratégico.”
Apoio internacional esmorece
A guerra atravessou fronteiras. Apesar de, diretamente, envolver apenas duas nações, o seu impacto global é inegável. Sandra Dias Fernandes explica a necessidade de olhar para todas as dimensões da guerra. No quadro económico, por exemplo, o conflito fez subir os preços mundiais. A Rússia fez do trigo uma arma, atingiu uma grande autonomia do ponto de vista agrícola e transformou-se no primeiro exportador mundial de cereais – um bem essencial. Como afirma a professora, “de repente, a Rússia tornou-se um aliado muito importante para uma série de países por causa das consequências globais da guerra.”
Estas repercussões puseram o mundo e, principalmente, as grandes potências em alerta. A guerra chegou às fronteiras da NATO. E desde cedo foi claro que, sozinha, a Ucrânia não iria conseguir enfrentar o gigante russo e, por isso, em fevereiro de 2022 uma onda de apoio vinda do bloco ocidental abraçou a causa ucraniana. Ao longo dos últimos dois anos, os Estados Unidos, a União Europeia (UE), a Alemanha individualmente e o Reino Unido transformaram-se nos maiores financiadores do esforço de guerra ucraniano. Desde o início do conflito, só a UE e todos os seus Estados-membros já deram à Ucrânia mais de 85 mil milhões de euros, 28 dos quais em apoio militar.
Neste contexto e em conjunto com mais 50 países, Portugal também tem participado no apoio à Ucrânia. Contactado pelo JPN, o Ministério da Defesa Nacional explica que “tem doado armamento e outro equipamento necessário para a defesa militar do território ucraniano, da sua soberania e da sua independência, de acordo com as fronteiras reconhecidas internacionalmente”. Já no apoio ao treino de militares das forças armadas, Portugal colabora na missão europeia European Union Military Assistance Mission in Support of Ukraine (EUMAM-Ukraine). No que toca à ajuda humanitária, a UE anunciou na última terça-feira, 20 de fevereiro, uma nova verba de 83 milhões de euros para a Ucrânia.
Já os Estados Unidos da América gastaram, desde fevereiro de 2022, segundo um relatório do Congresso, mais de 44,2 mil milhões de dólares (o equivalente a 40,3 mil milhões de euros) apenas em financiamento militar à Ucrânia. Porém, o eclodir de novos conflitos mundiais, nomeadamente em Israel e em Taiwan, obrigaram à divisão do orçamento destinado à ajuda bélica. Uma guerra longa no Médio Oriente pode significar o fim, ou pelo menos a diminuição, do apoio americano à Ucrânia, uma vez que, como refere Sandra Fernandes “o que vai para Israel não vai para a Ucrânia”. Para além disso, com o avizinhar das eleições americanas no próximo mês de novembro, a possibilidade da vitória republicana põe em risco a continuação do apoio financeiro a Kiev. O futuro é incerto e os ucranianos temem que o apoio diminua.
Cândida Pinto conta que na “linha da frente” a Ucrânia está mais numa posição de aguentar posições do que de fazer ofensivas, porque sem o cumprimento das promessas de ajuda, a Ucrânia não consegue ripostar. “As munições e o equipamento militar gastam-se todos os dias, portanto, não há reposição de equipamentos militares que permitam manter este conflito de uma forma otimista”, opina a enviada da RTP à Ucrânia, em entrevista ao JPN.
Para José Milhazes, “o que se tem feito nos Estados Unidos em nome dos votos é uma vergonha. A ajuda é sempre insuficiente e vem sempre atrasada”. O especialista acusa os norte-americanos de estarem “a brincar com o fogo”, já que a diminuição de ajuda financeira à Ucrânia pode ter repercussões mundiais “muito difíceis de resolver”. A professora da Universidade do Minho, Sandra Fernandes, explica ainda que esta ajuda internacional é decisiva porque “os russos só vão até onde os deixarem ir.”
O “contrassenso” das Nações Unidas
O objetivo da ONU é manter a paz e a segurança internacionais, assim como fornecer assistência humanitária e garantir o cumprimento dos direitos humanos. Setenta e oito anos depois da sua criação, o panorama geopolítico é completamente distinto e as debilidades da sua estrutura vêm ao de cima. Para José Milhazes, fica claro, com a guerra da Ucrânia, “que as Nações Unidas, tal como existem hoje, não funcionam”.
A ação da ONU é, para Sandra Fernandes, “uma pescadinha de rabo na boca”, porque qualquer ação depende da aprovação dos membros permanentes do Conselho de Segurança, que incluem potências antagónicas: a Rússia, que invadiu o território ucraniano, e os Estados Unidos, que apoiam a nação invadida. Assim se torna visível a impotência das Nações Unidas na resolução do conflito.
Dito de outro modo, como explica Sandra Fernandes, ainda que seja a organização internacional onde todos os Estados têm assento – o que não deixa de ser “importante para dar voz aos fracos” -, a ONU “está nas mãos dos poderosos”. Milhazes concorda. O Conselho de Segurança deixa a organização “paralisada” e por isso “é necessário terminar com o direito de veto dos membros permanentes”.
A ineficácia da ONU, bem como a discussão do avanço dos apoios à Ucrânia, levam a que o “Ocidente entregue de bandeja a Putin” todas as vantagens para a perpetuação da guerra. Os tempos alargados para a tomada de decisões na UE e nos Estados Unidos “jogam a favor de Moscovo”, conclui Milhazes.
“Dois pesos, duas medidas”
No rescaldo dos acontecimentos de 7 de outubro de 2023 em Israel, emerge outro conflito que captou a atenção mediática e o apoio do principal aliado do exército ucraniano. A fadiga em relação à Guerra da Ucrânia começou com o impasse no campo de batalha, mas a eclosão da guerra Israel-Hamas condenou o conflito no leste da Europa a passar para segundo plano.
Nos media, os espaços anteriormente dedicados a notícias sobre a guerra europeia, foram substituídos pela guerra no Médio Oriente. Os ataques russos mais recentes passam despercebidos, camuflados pela estagnação da guerra agora mais vezes apelidada de “adormecida”. Ainda assim, para José Milhazes, “está bem acordada”, uma vez que a guerra continua, mesmo que os media não a cubram.
Com a diminuída atenção mediática, a Guerra na Ucrânia perde importância na opinião pública, e sem a pressão da população, os governos não sentem o peso da responsabilidade para ajudar o país invadido, o que se revela muito perigoso para Kiev, que depende dos apoios dos países ocidentais para enfrentar a Rússia.
Em entrevista ao “Expresso”, Kelly Grieco, investigadora do Reimagining US Grand Strategy Program, confessa: “sem uma grande alteração no campo de batalha, não creio que a Ucrânia seja capaz de recuperar essa atenção mediática num futuro próximo”. Vítima da fadiga mediática, a Ucrânia, para ser resgatada desse esquecimento, precisa, segundo os analistas, de fazer “algo espetacular para chamar a atenção”. Isso, ou de ser vítima de “uma nova forma [russa] de chocar a consciência moral do mundo”.
O apoio à causa israelita é um problema para os ucranianos, mas também para a comunidade internacional, segundo a professora de Relações de Internacionais. Sandra Fernandes considera que “há claramente um desconforto cada vez maior com o apoio incondicional americano a Israel”. Os EUA têm, segundo a especialista, “dois pesos, duas medidas” – condenam a invasão russa e, por isso, enviam apoio à Ucrânia, mas no Médio Oriente, suportam Israel, que tem vindo a organizar investidas no território palestiniano. A ideia de “que a vida de um palestiniano vale menos do que a de um ucraniano, ou do que outro ser humano” mancha a imagem dos EUA e dos seus aliados, “portadores de uma visão humana”, no panorama mundial.
Cândida Pinto cobriu os dois conflitos. Em ambos os casos só pôde reportar a partir do território de uma das forças beligerantes. No Médio Oriente, esteve sempre em território israelita – a entrada de jornalistas em Gaza não é permitida -, sem acesso “à invasão e destruição de Gaza”. Já na Ucrânia esteve sempre junto “da população que foi invadida e dos militares que estão a defender o seu país”. São “experiências muito diferentes”, conta.
Em qualquer caso, conclui Cândida Pinto, “a guerra é sempre horrível em qualquer sítio. Essa tragédia é comum”.
Acabar ou ganhar a Guerra?
Entramos no terceiro ano de Guerra no território ucraniano e já se somam mais de 10 mil mortes civis. Segundo o relatório da Missão da Monitorização dos Direitos Humanos da ONU na Ucrânia (HRMMU), nestes dois anos, estão confirmadas 30.457 vítimas civis no que se descreveu como um “custo humano horrível “. Cândida Pinto viveu de perto as atrocidades da guerra e afirma que “não há uma família que não tenha um filho, um marido, um avô, um pai, uma irmã, civil ou militar que não tenha sofrido com o conflito, muitas vezes de forma fatal”. Isto tem um peso muito grande na sociedade, “cada vez se nota mais esse cansaço, esse desgaste emocional e psicológico”.
Uma questão que se coloca é o que querem os ucranianos: acabar com a guerra ou ganhá-la? Sandra Fernandes acha que existe uma “força anímica muito grande” de Kiev em vencer a guerra. A recente substituição do Chefe das Forças Armadas, Valerii Zaluzhni por Oleksandr Syrsky, comprova esse desejo de continuidade do esforço de guerra. Refrescar o exército da Ucrânia com uma nova forma de pensar tem, precisamente, como objetivo dar um novo lanço e rumo ao conflito. Sandra Fernandes explica que, apesar das perdas, os ucranianos estão decididos a continuar a guerra e a vencê-la.
Ainda assim, a professora acredita que as populações mais idosas, que já viveram a Guerra Fria, têm uma posição singular: “estão verdadeiramente cansadas e apenas querem que tudo pare, que a violência pare, que as privações parem”.
O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, também já acusa o cansaço, segundo David Araújo. “Zelensky no dia 24 ou 25 era uma coisa e quando nós o entrevistamos, em agosto, não era a mesma pessoa”, recorda. O repórter de imagem descreve o presidente ucraniano como um homem muito cansado, mas, mesmo assim, determinado e resiliente – um líder da sua causa.
Cândida Pinto recorda, ao JPN, que, nos primeiros dias do conflito, os EUA ofereceram a Zelensky a possibilidade de sair do país. Ao convite, o presidente terá respondido com um “Não! Não! Eu vou ficar aqui. Não abandono o meu povo”. “Ele tem essa responsabilidade, assumida e cultivada por ele”, afirma a repórter. Volodymyr Zelensky, há dois anos que resiste e que tenta vencer a guerra: “Isto foi o que ele prometeu aos ucranianos”, acrescenta Cândida Pinto.
A capacidade que os ucranianos têm tido em resistir e enfrentar a brutalidade do conflito provém do exemplo de Zelensky, diz Sandra Fernandes que retrata a sociedade ucraniana como um povo resiliente “em que a população civil é verdadeiramente um apoio muito grande aos soldados que vão para a frente de batalha”. Existe uma mentalidade de grupo – a Ucrânia quer ganhar a guerra.
Contudo, quando questionada sobre a Ucrânia atual, Cândida Pinto confessa: “aqui está inverno, está frio no exterior e algum frio também a trespassar as pessoas. Há muita neblina e acho que é esta neblina de inverno que caracteriza a situação que a Ucrânia está a viver atualmente – uma grande incerteza”.
Sem fim à vista
Para Cândida Pinto, “o futuro é uma incógnita.” Em 1991, Moscovo reconheceu a independência da Ucrânia e, três anos depois, assinou o Memorando de Budapeste, onde garantia segurança e integridade da nação ucraniana. Porém, “nesta altura, tudo isto é uma fantasia” e há milhares de cenários podem acontecer. Para já, como explica a professora Sandra Dias Fernandes, “não há perspetiva para o fim da guerra” e é utópico “imaginar um fim como nos filmes onde param as hostilidades, a fronteira fica definida e acabou.”
Historicamente, “os russos estão habituados a braços de ferro, a relações de força” e por isso, para a professora da Universidade do Minho, especialista em assuntos da União Europeia e da Rússia, as condições para um possível cessar-fogo só estarão reunidas quando “a Rússia achar que já não consegue mais do que aquilo que já conseguiu”. Porém, José Milhazes alerta para o perigo de um final que sele um acordo contrário aos interesses ucranianos, sob o risco “dos apetites da Rússia poderem aumentar” a seguir.
Ainda que se avizinhem eleições na Rússia, marcadas para o próximo dia 17 de março, “a Rússia é um regime autoritário e não há qualquer dúvida sobre a reeleição de Putin”, afirma, com certeza, a professora Sandra Fernandes. Aliás, a morte de Alexey Navalny, o maior opositor e crítico do Kremlin, e a rejeição da candidatura de Boris Nadezhdin à presidência do país só mostram que “o sistema está claramente bloqueado, centralizado e que a Rússia não é uma democracia”. “Putin, se quiser, fica no poder até morrer”, acrescenta. “A não ser que aconteça algum milagre”, José Milhazes não tem dúvidas que o regime não irá mudar e que Putin irá vencer com uma votação à volta dos 80% – “votação essa, fabricada, claro!”
Cândida Pinto mantém a esperança de ainda vir a noticiar o fim da guerra. A questão é: “de que lado?”. Como explica, “uma coisa é a guerra terminar, outra coisa é saber quem é que a venceu”. Sandra Fernandes diz que, “se de facto a Ucrânia perder os seus apoios e for controlada pela Rússia, poderá equacionar-se a anexação da Bielorrúsia que, neste momento, é um Estado fantoche”. A professora acredita que, dificilmente, a Ucrânia poderá voltar às fronteiras que tinha antes do dia 24 de fevereiro de 2022: “Isso só é possível se a Rússia colapsar”, mas confessa que “não se derrota uma potência nuclear.”
Ainda assim, perante uma multiplicidade de cenários de difícil previsão, José Milhazes prefere responder com a frase do futebolista João Pinto: “prognósticos, só no fim do jogo.”
Editado por Filipa Silva