Mafalda Lemos, de 21 anos, é natural do Porto e partilhou com o JPN a sua paixão pela guitarra portuguesa. É das poucas mulheres intérpretes deste instrumento em Portugal. Iniciou-se na guitarra clássica, mas, aos nove anos, foi cativada pelo som único da guitarra portuguesa. Agora, entre o Porto e Lisboa, Mafalda dedica-se à composição.
De paixão ao peito e de guitarra portuguesa na mão, Mafalda Lemos vive entre Lisboa e Porto para acabar o curso de composição, na Escola Superior de Música de Lisboa. Quer concretizar o sonho de enriquecer o repertório instrumental da guitarra portuguesa, um instrumento que em Portugal é de domínio quase exclusivo dos homens.
Foi desde sempre apoiada pelos pais, apesar de a própria família nunca ter tido nenhuma ligação às artes: “Na minha família não tenho ninguém na música, mas os meus pais dão muito valor às artes. Eles fazem parte daquela geração que se calhar ainda não tinha muita oportunidade de fazer atividades extracurriculares e conhecer várias áreas. Nunca puderam aprender um instrumento musical, mas foi uma coisa que quiseram proporcionar-me”, conta na entrevista que deu ao JPN.
A música sempre fez parte dos seus estudos. No Porto, frequentou a Escola dos Gambozinos, onde, em regime de ensino articulado, as disciplinas principais eram conjugadas com aulas de música, entre elas, de instrumento e coro. Trata-se de uma escola privada de ensino doméstico. Mas, para Mafalda, os Gambozinos são “muito mais do que isso”, realça. “Eles têm um ensino muito especial e há muito menos alunos. No meu primeiro ano, éramos três. Uma turma de três [alunos]”, conta.
Com apenas sete anos, começou a estudar guitarra clássica acompanhada por Luísa Moutinho. Dois anos mais tarde, trocou-a pela portuguesa.
A mudança repentina de instrumento aos nove anos surgiu num workshop de estudantes universitários a que assistiu no Clube Literário do Porto. “O momento que me está mais presente na memória é a altura em que entrámos todos para um elevador e eles taparam-nos com as capas pretas dos estudantes. E começam a tocar guitarra e perguntam se eu quero experimentar. Aquilo foi assim, tudo bastante mágico. Estava a experimentar a guitarra e disseram que eu tinha jeito. E, na verdade, tinha, porque tocava guitarra clássica. A mão direita não tinha a técnica, mas a mão esquerda apanhava qualquer coisa, porque eu já estava a estudar um instrumento que também pressionava, de facto, os dedos nas cordas”, recorda.
Mafalda relembra que, na altura, encontrar um professor disponível para ensinar a tocar este instrumento marcadamente português não foi tarefa fácil, mas, através de alguns contactos, encontrou Carlos Semedo, do qual foi a primeira aluna.
Os passos dados na música passaram pelo Conservatório de Música do Porto até completar o 8º grau (equivalente ao 12.º ano), onde estudou o repertório instrumental de Coimbra, entre cujos compositores se destacam Carlos Paredes, Octávio Sérgio e Artur Paredes.
Quando concluiu o secundário, Mafalda foi estudar para a Escola Superior de Música, em Lisboa, no curso de Composição, onde frequenta o terceiro ano. Apesar de ter considerado ficar na cidade natal, a guitarrista preferiu partir para a capital.
“Nas artes é complicado, ainda está tudo muito centralizado em Lisboa. Não estou a dizer que é impossível tentar noutros sítios, mas se calhar é mais fácil”, declarou. “Cheguei a ir a Castelo Branco, onde há a única licenciatura em guitarra portuguesa, só que, o que é estudado lá, está mais relacionado com a guitarra de Lisboa e eu não me identifiquei com isso. Não era o que eu queria desenvolver, até, como curso universitário, não estava a puxar por mim. Sentia que não ia ser um desafio”, acrescenta.
Além dos estudos, Mafalda tem dedicado a sua atenção à composição de temas originais. Até agora já compôs “O Silêncio das Andorinhas” e “Senso Incomum”, sendo que a última é a que mais valoriza, uma vez que foi escrita durante o primeiro ano de faculdade e que retrata “uma Mafalda que está à procura de qualquer coisa, a explorar na guitarra qualquer coisa diferente”.
“’O Silêncio das Andorinhas’ foi a primeira [música] que escrevi. Ainda estava muito colada às referências, ao Carlos Paredes. E acho que pode perder-se um pouco por isso, não por ele não ser uma boa influência, mas porque, no fundo, as coisas também se tornam mais importantes. E são coisas mais interessantes quando nós estamos à procura de um caminho nosso”, observou.
Há muito que Carlos Paredes é uma referência para Mafalda. “Se calhar é uma resposta um pouco básica dizer que Carlos Paredes é a minha maior referência, mas não há como fugir”, contou.
Perante um repertório muito limitado e “influenciado pela tradição”, a guitarrista pretende contribuir para alargá-lo e deixar a sua perspetiva sobre a guitarra portuguesa, uma vez que o mesmo “já quer fugir para algo mais”. “É a guitarra portuguesa e pode-se tocar junto com um violino, uma flauta, etc.”, disse.
Guitarra Clássica vs. Guitarra Portuguesa
À conversa com o JPN, Mafalda Lemos traçou algumas diferenças entre a guitarra clássica e a guitarra portuguesa. Apesar de a técnica ser semelhante, a forma de tocar é diferente.
“As posições são diferentes, porque a afinação é diferente. Ou seja, num sítio onde eu vou tocar, na guitarra clássica, tocava um dó, nesta vai ser outra nota, porque a corda está com uma tensão diferente”, explicou.
Outra característica que separa a guitarra clássica da portuguesa é o número de cordas: a clássica tem seis, enquanto a portuguesa tem doze, agrupadas duas a duas.
Sobre o nível de dificuldade, Mafalda gosta de pensar que todos os instrumentos são igualmente difíceis, “porque têm os seus próprios desafios”. “Há aqueles que, se calhar, no início é mais fácil obter logo um som, como o piano, que, em princípio, não vai ter um som horrível. Toca-se na tecla e sai um som. O martelo bate lá na corda e pronto. Mas não quer dizer que seja mais fácil por isso. Mas, no início, é mais imediato do que se calhar alguém que está a aprender violino”, exemplifica.
Há dois tipos de guitarra portuguesa: a guitarra portuguesa de Lisboa e a guitarra portuguesa de Coimbra. Distinguem-se facilmente pelo som (a de Lisboa tem um som mais agudo), forma (a de Lisboa é mais arredondada e ligeiramente maior, enquanto a de Coimbra tem uma caixa de ressonância mais larga e achatada) e pela voluta (a de Lisboa tem a forma de caracol e a de Coimbra tem forma de lágrima).
O instrumento ícone do fado acaba por ser uma preocupação para Mafalda pelo facto de se prender muito a este género musical. Apesar de ser “muito atrativo para os turistas, [o instrumento] fica por aí. Isso é uma pena, porque acho que é um instrumento com muitas possibilidades. Não há um instrumento igual a este”, aponta.
“A guitarra portuguesa pode ser explorada de outra forma”, acrescenta. A guitarrista portuense procura despertar o interesse do público para a música instrumental, caminho que começou a ser desenvolvido por Artur e Carlos Paredes: “Pena que não haja tanto espaço para o lado do intérprete que se entrega a um instrumento exterior ao corpo, que também é mágico de outra forma”, adverte.
Para Mafalda, o futuro é incerto, já que é “muito nova” e está a “tentar perceber em que é que” se sente “bem”. “Gosto de tocar e agora estou a perceber que gosto de compor”, confessa. No entanto, admite que pode vir a ensinar a tocar guitarra portuguesa.
A jovem guitarrista de 21 anos apresenta-se em público desde muito nova, tendo já tocado na Casa da Música, Rivoli, Coliseu do Porto, Voz do Operário, entre outros espaços culturais. Recentemente partilhou o palco com a guitarrista Luísa Amaro e atuou, no ano passado, na cerimónia dos prémios de novos talentos do Grupo Ageas Portugal.
Editado por Inês Pinto Pereira