No momento mais calmo do turno das quartas-feiras, Beatriz Liberal conversa com os restantes voluntários à entrada do núcleo Re-Food Foz do Douro, um pequeno edifício na sombra do Centro Regional do Porto da Universidade Católica. Os beneficiários já vieram buscar o jantar preparado pelos voluntários que chegaram às 18h00. À hora da entrevista, pelas 21h30, já estes tratam da limpeza do espaço enquanto esperam pela equipa da rota das fontes de alimento, que foi levantar o desperdício do dia pelos restaurantes, hipermercados, hóteis e confeiteiras da zona portuense.

Beatriz assume a pasta dos voluntários no núcleo da Foz do Douro desde a sua fundação, em 2011. “Eu vi o projeto em Lisboa e achei a ideia muito engraçada. Tinha tempo na altura e queria dedicar-me ao voluntariado. Poder ajudar os outros é uma coisa de que gosto”, conta.

Da vontade à execução

Quando, em 2013, a voluntária contactou a equipa de Lisboa – a única cidade com núcleos Re-Food até então – falaram-lhe de Francisca Mota, uma estudante portuense na capital que estava já a mover esforços para criar o primeiro núcleo no Norte. Depois de um ano de trabalho e da “famosa reunião sementeira” na Católica, fundou-se, em 2014, o Re-Food Foz do Douro: “o primeiro núcleo no Porto, com muito orgulho”, exclama Beatriz.

Quatro anos depois, o projeto que nasceu com Hunter Halder, um americano a viver em Lisboa, acaba de inaugurar o seu 47º núcleo em Portugal e está já a dar passos lá fora, com a Itália como pioneira da Re-Food International.

Por cá, na Foz do Douro, 4.880 quilos de comida desperdiçada foram recolhidos das cerca de 60 fontes de alimento – locais de recolha de comida – e depois entregues às 30 famílias (86 beneficiários no total) associadas ao Re-Food, só no passado mês de outubro.

Adesão “incrível”

“Aumentando o número de beneficiários, aumenta o número de recolhas e também a capacidade de funcionamento aqui do centro”, explica Beatriz Liberal ao JPN, garantindo que os números estão a aumentar quando falamos de fontes de alimento e, sobretudo, de voluntários interessados. Segundo Beatriz, a adesão é “incrível”. “Temos imensa procura para fazer voluntariado”, tanta que o núcleo da Foz do Douro consegue funcionar todos os dias da semana sem necessidade de reforço de pessoal.

Nos últimos anos, a Re-Food tem apostado nas campanhas online, além das caminhadas solidárias e dos jantares – o próximo é esta quinta-feira – que não só contribuem para a angariação de fundos como fortalecem a imagem da organização junto dos portugueses. “O nome Re-Food está a ser muito divulgado e acho que as pessoas se identificam com o projeto”, reflete Beatriz. Conta ainda que já receberam turistas que participam em turnos enquanto passam férias no Porto, e que há uma forte presença estrangeira no corpo regular de voluntários.

Beatriz Liberal é uma das fundadoras do Refood Foz do Douro e coordena os voluntários. Foto: Inês Loureiro Pinto

“Começámos muito poucos, tínhamos que ligar às pessoas, depois o núcleo foi crescendo e também nelas cresceu o sentido de compromisso de vir todas as semanas. As pessoas já levam isto muito a peito”, refere Beatriz. Segundo a coordenadora, o comprometimento dos voluntários é a razão pela qual o núcleo consegue “alimentar sorrisos” todos os dias do ano. “Não conseguimos fechar nas férias, por exemplo, sabendo que há beneficiários que não vão poder comer e que há fontes que vão estar abertas e ter desperdício. No Natal e no Ano Novo fechamos, mas tentamos reforçar nos dias anteriores com horários e cabazes especiais – há invasões de bolos-rei!”, conta.

Beneficiários: a última fase, mas não a menos importante

Combater a fome e o desperdício é o objetivo elementar da Re-Food e, como tal, os seus beneficiários representam uma mais-valia importante para a organização. A coordenadora dos voluntários no núcleo da Foz do Douro explica ao JPN que a seleção destes não é leviana, sendo obrigatória uma avaliação do contexto dos candidatos e do apoio que já recebem. “Claro que às vezes aparece aqui alguém que diz que tem fome; aqui há comida, portanto, nós damos. Tentamos é que essas pessoas que vêm cá pontualmente passem a ser beneficiárias”, conta Beatriz.

Admitir a necessidade não se revela tarefa fácil, mas Beatriz garante que a maioria dos beneficiários não sente vergonha em vir buscar refeições à Re-Food: “lembro-me, inicialmente, de que tínhamos uns sacos com o nosso nome escrito e eles escondiam-nos. Mas agora até nos cumprimentam na rua, portanto, não acho que haja vergonha”.

Há ainda famílias que vêm ao núcleo da Foz do Douro desde a sua fundação, “algumas situações mais complicadas” como pessoas com problemas de saúde ou dependência. “A alguns vai ser difícil mudar a vida, mas há outros que já foram beneficiários e, por já terem as condições para se alimentarem, nos dizem que já não querem mais receber comida. Por eles, também é uma questão de orgulho”, reflete Beatriz.

Nestes casos, a Re-Food funciona como uma rampa de lançamento para uma vida mais estruturada e os voluntários acompanham essa evolução. Beatriz partilha a história de um beneficiário: “temos aqui uma pessoa que era sem abrigo e agora já conseguiu ocupar uma casa. De vez em quando, também lhe dávamos roupa e calçado, e alguém tinha uns cobertores para lhe dar no outro dia, por exemplo. Vai melhorando, e nota-se a diferença nele à medida que o vamos vendo”.

Das entregas diárias de refeições às partilhas ocasionais, da preocupação em variar da comida que a família levou no dia anterior ou de como a aquecer (alguns beneficiários não têm como), estabelece-se uma relação forte – ainda que à distância – entre beneficiário e voluntário. Relação que Beatriz Liberal delineia: “tentamos não entrar na esfera privada dos beneficiários; sempre vi isto como uma ajuda, a tal rampa de lançamento. Somos todos uma comunidade e nós, voluntários, somos só uma parte”.

Há sempre mais alguém para ajudar

Em jeito de apelo, Beatriz lamenta não haver (ainda) planos para a abertura de um núcleo no centro da cidade do Porto: tenho muita pena, porque teríamos fontes, e, decerto, beneficiários e voluntários, que pudessem assegurar o funcionamento de um núcleo. Tentem arranjar pioneiros, porque há sempre alguém para ajudar e há parceiros interessados”, assegura.

Questionada sobre a possibilidade de os restantes núcleos portuenses suportarem essa procura, Beatriz explica que “a Re-Food só resulta quando é micro-local”; a ação de cada núcleo é de alcance reduzido “pois só aí é que conseguimos a concentração dos parceiros e da comunidade”, bem como a rentabilidade do trabalho e dos custos dos voluntários. “Nós já vamos até Matosinhos, mas mais é incomportável”, revela, referindo, no entanto, que há entreajuda e comunicação entre todos os núcleos do Porto – “se há um núcleo que não funciona aos fins-de-semana, há o Foz do Douro, que está aberto e vai às fontes deles, por exemplo”.

Os custos que se ignoram

O modelo de ação da Re-Food, assente no voluntariado, não permite o lucro. Como sobrevive? “O edifício onde estamos é da antiga Junta de Freguesia da Foz do Douro, que inicialmente também ajudava com os custos”, neste momento repartidos com a própria organização; “tudo o resto resulta de angariações de fundos e temos imensa ajuda dos parceiros e da comunidade, através de doações”, como a carrinha que assiste as rotas ou utensílios para o empacotamento da comida. Ainda assim, há custos que ficam a cargo dos voluntários – “muitos usam o seu carro nas rotas, um custo muito grande para eles, mas que tentamos sempre repartir pelos turnos, para não sobrecarregar ninguém”.

A única sobrecarga do núcleo parece ser apenas uma, muito mais saudável: “saio sempre daqui de coração cheio”, confessa Beatriz. Gerir os recursos humanos da Re-Food “dá alguns cabelos brancos, mas é muito bom. Não consigo expressar o quanto gosto disto”, diz, enquanto se ouvem risos entre a conversa dos voluntários que passam a meia-noite no centro de operações da Foz do Douro.

Artigo editado por Filipa Silva