Um “êxito”, um “sucesso”, uma lufada de “ar fresco” na Europa. O chamado Processo de Bolonha mereceu nota positiva quase unânime dos que, esta quarta-feira, se reuniram na Universidade de Aveiro para uma conferência nacional que assinalou os 20 anos da Declaração.
Quase, porque também se ouviram críticas e porque são muitos os desafios que os intervenientes foram enunciando para o Espaço Europeu do Ensino Superior, que hoje inclui 48 países (começaram por ser 29).
A estrutura de três ciclos, o reconhecimento das qualificações, a garantia da qualidade, a melhoria do ensino-aprendizagem, o alargamento da base social, a empregabilidade e a internacionalização são aspetos centrais de um processo que tem ainda muito caminho por fazer.
Como António Sampaio da Nóvoa referiu, no discurso que desentorpeceu a plateia, “antes de Bolonha não era melhor. Não era mesmo. Mas isso não significa que aceitemos tudo o que Bolonha nos trouxe e traz”.
Sobre o futuro, reunimos alguns dos pontos focados pelos convidados dos diversos painéis:
1) Uma “revolução” pedagógica
Bolonha prometeu uma mudança de paradigma no ensino-aprendizagem. Um novo modelo com o estudante ao centro, pensado no desenvolvimento de competências e baseado no uso de novos métodos pedagógicos, beneficiando, por exemplo, de ferramentas digitais.
“Fez-se pouco, fez-se muito pouco até agora. As universidade estão atrasadíssimas na criação de ambientes educativos propícios ao trabalho e ao estudo dos estudantes que, em muitos casos, são jovens que já nasceram neste século XXI”, notou o ex-reitor da Universidade de Lisboa, Sampaio da Nóvoa, que defende por isso “uma verdadeira revolução na pedagogia do Ensino Superior”.
Stephane Lauwick, da Eurashe, citou a propósito Michel Sérres, para questionar “como podemos ensinar com métodos do século XIX alunos que entregamos ao século XXI”.
Ivo Costa Santos, antigo presidente da Federação Académica do Porto, que moderou o painel sobre a perspetiva dos estudantes face a Bolonha, concorda: “O grande desafio de Bolonha é de âmbito pedagógico”. “Ainda existe um longo caminho a fazer pelas instituições no que respeita às competências pedagógicas dos docentes e aos métodos de ensino”, comentou ao JPN.
Quanto ao sistema de créditos hoje em vigor, José Ferreira Gomes, antigo secretário de Estado do Ensino Superior, também notou: “Deu-se muito pouca atenção aos objetivos de aprendizagem e mais à carga de trabalho projetado ou imaginado.”
2) Garantir qualidade sem afetar autonomia
Para António Sampaio da Nóvoa, “as lógicas de garantia de qualidade”, assentes em processos de avaliação e acreditação que são também um dos pilares de Bolonha, tiveram o mérito de castigar instituições “sem critérios mínimos de qualidade”, mas o efeito nas grandes universidades já terá sido “reduzido”.
Aliás, para o candidato às eleições presidenciais de 2016, hoje embaixador de Portugal na UNESCO, essas lógicas “continuam presas a exigências burocráticas e administrativas que amarram as instituições e lhes retiram capacidade de resposta e de inovação.”
Sampaio da Nóvoa recusa a aceção das universidades como “atores empresariais”, exaltando-as como espaço de autonomia e liberdade. “As universidades só podem ser úteis se forem diferentes e para isso temos de respeitar o seu tempo, a sua autonomia e a sua liberdade”, afirmou.
3) Mobilidade (não só de estudantes)
Se há marca de sucesso em Bolonha, ela é a da mobilidade internacional. Manuel Heitor, ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, deixou alguns números exemplificativos.
“Há 20 anos tínhamos pouco menos de 2 mil estudantes estrangeiros em mobilidade em Portugal; hoje temos mais de 15 mil. Aumentámos oito vezes o número. Há 20 anos tínhamos pouco mais de 1.500 estudantes portugueses em mobilidade. Hoje, temos pelo menos 10.500. Seis vezes mais. Nos últimos três anos, aumentámos em 48% o número de estudantes internacionais em Portugal que hoje representam 13% do Ensino Superior português”, revelou.
Os valores são significativos, mas deixam o país ainda aquém de muitos parceiros europeus, pelo que também aqui há caminho a percorrer.
E se, entre os estudantes, a mobilidade ganhou, de facto, “outra escala” com Bolonha, como assinalou Sampaio da Nóvoa, “já quanto à mobilidade dos professores, outro objetivo de Bolonha, pouco ou nada foi feito e aqui a avaliação é mais negativa”, referiu o antigo reitor.
4) Maior paridade e equilíbrio nos corpos de gestão
“Acho que ainda existe um défice, que resulta da Lei, da participação dos estudantes nos órgãos de gestão, de uma forma ponderada, que represente o peso que os estudantes têm nas instituições”, observou, ao JPN, Ivo Costa Santos.
Por sua parte, Isabel Capeloa Gil, reitora da Universidade Católica Portuguesa, primeira mulher a ocupar o cargo, notou, no “único painel paritário da conferência”, que são ainda muito poucas as mulheres na gestão das instituições do Ensino Superior.
“Apenas 12% das universidades são geridas por mulheres, não posso deixar de fazer essa nota. É uma das áreas em que não avançamos de todo face ao planeado”, afirmou.
5) Alargar o acesso, atender à demografia
“A Europa ainda só forma metade dos seus jovens de 18 anos e temos que acelerar o processo de alargamento do acesso ao Ensino Superior”, notou Manuel Heitor.
O ministro ressalvou a necessidade de combater as “desigualdades no acesso” e mencionou também as exigências impostas pela demografia: “sobretudo no Sul da Europa e em particular em Portugal, estamos num processo de envelhecimento da população e se hoje temos 120 mil jovens com 18 anos, em 2030 vamos ter 85 mil jovens com 18 anos; o contexto da demografia exige-nos muita atenção, não só na formação alargada [ao longo da vida], mas também na internacionalização e atração de cidadãos estrangeiros para Portugal”, referiu.
6) Nacionalismos e Brexit
Se o processo de Bolonha é considerado um grande “sucesso político”, não está, necessariamente, imune ao contexto político que hoje marca a Europa. Daí que Pedro Lourtie, que em 1999 era Diretor-Geral do Ensino Superior, e que participou na arquitetura da Declaração de Bolonha, coloque, no topo dos desafios que se colocam ao Espaço Europeu do Ensino Superior (EEES), “a onda de nacionalismos”, enquanto ameaça à coesão dos países-membros.
“Uma das coisas boas que o Processo de Bolonha fez, foi colocar à volta da mesma mesa 48 países, que são todos os países europeus, com exceção do Kosovo [porque não é reconhecido por todos]. É um grande desafio manter esta unidade”, afirmou ao JPN, à margem da conferência.
Eduardo Marçal Grilo, que era em 1999 o ministro da Educação português , e que assinou a Declaração, sublinhou o mesmo receio.
Pedro Teixeira, diretor do Centro de Investigação em Políticas do Ensino Superior (CIPES) e professor da Faculdade de Economia do Porto, abordou também as interrogações que a saída do Reino Unido da União Europeia colocam ao EEES.
“Aquilo que vai acontecer com o Brexit – sabe-se lá como, sabe-se lá quando – é que vai afetar, de uma forma que ainda não sabemos qual, como estas redes de colaboração se estão a forjar. As universidades inglesas tinham um peso muito grande não apenas nos projetos europeus, mas na coordenação de projetos europeus”, frisou na sua apresentação.
7) Formar para que competências?
A aquisição de competências é matéria complexa num mundo em transformação acelerada.
“Os empresários de hoje não sabem o que vão precisar amanhã”, notou Stephane Lauwick, da Eurashe.
Pedro Lourtie também frisou o ponto: “Quando olhamos para a frente e percebemos que há uma grande incerteza sobre o que será o futuro – quais serão as competências essenciais e os conhecimentos essenciais -, com a evolução muito rápida do conhecimento, nós temos de dar boa preparação de base e competências [aos estudantes] para aprenderem ao longo da vida e [para cada um] se adaptar a situações diferentes”, comentou ao JPN.
João Picoito, vice-presidente da Nokia durante oito anos e dono de uma larga experiência de trabalho com a academia, deu a perspetiva da indústria: “A universidade, além de ensinar a aprender de forma estruturada, também tem de ensinar a inovar“. Não há uma fórmula mágica para o efeito, mas sublinhou: “não é por acaso que as inovações mais disruptivas acontecem em ambientes mais abertos”.