Longe vão os dias em que a única imagem associada aos jogos de tabuleiro era a famosa cartola de Rich Uncle Pennybags, a mascote do Monopólio. O JPN foi perceber como é o mundo dos aficionados dos jogos analógicos e como se vive o crescimento da indústria nos últimos anos. Lançamos a sétima de uma série de reportagens desenvolvidas pela redação do JPN sob o mote "comunidades".

Viram-se as cartas. Parece que desta vez ninguém se opõe ao avançar da missão, mas a desconfiança paira no ar e todos querem descobrir quem são os dois traidores. O jogo é o The Resistance. O conflito nasce entre a equipa dos “bons” que quer ter missões bem-sucedidas, e os “espiões”, que querem sabotá-las.

Dois dos aficionados em questão são André Martins e Miguel Pacheco, que se conheceram há um ano. Para André, o gosto pelos jogos de tabuleiro já vem da infância. “Começamos sempre com os jogos mais clássicos e depois conhecemos estes jogos mais modernos, e começamos a reunir e a descobrir mais pessoas”, afirma.

Já para Miguel Pacheco, o bichinho dos jogos analógicos surgiu por acaso, durante as compras de Natal. “Fui uma vez comprar um jogo para oferecer ao meu sobrinho no Natal e acabei por ficar com ele por achar que era demasiado complicado para lhe dar”, conta, soltando gargalhadas na mesa. Há pessoas que experimentam jogos modernos e “até gostam, mas não ligam”, e há outras que sentem o “click”.

E quando se sente o “click“, a carteira também sofre. “Depois é só querer comprar mais jogos, porque são todos engraçados, mas chega-se a uma altura em que se está a comprar para se jogar só uma vez e começa-se a selecionar, porque é um vício caro”, confessa Miguel, já que muitos dos jogos de culto podem ultrapassar os 50 euros.

Se para uns a paixão desperta por acaso, para o casal Diana e Bruno, a ideia inicial surgiu como uma estratégia de marketing para o Oak’s Bar. “Nós temos um bar na zona de Gaia em que fazemos várias coisas, como comédia ou música ao vivo e gostamos sempre de inovar, então decidimos colocar lá uma prateleira com jogos”, começa Bruno.

Diana e Bruno jogam Ticket to Ride na Associação Quebra-Dados

A prateleira, que começou por ter apenas jogos mais clássicos, como xadrez e damas, foi enchendo a olhos vistos, depois de uma publicação online. “Procurei um grupo de Facebook sobre jogos de tabuleiro e disse ‘Aqui está a minha coleção, o que é que eu posso acrescentar?’ e recebi uns 100 comentários, então comecei a ir a sítios experimentar jogos para ver o que funciona no bar. Há um ano que começamos e já temos 50 jogos”, conclui.

Nova associação pondera criar projetos sociais

Sobem-se as escadas e ouve-se barulho no andar de cima, principalmente vindo da mesa onde se joga Team 3: “Não quero jogar, só me quero rir de vocês”. Aos poucos, a sala enche na recém-criada Associação Quebra-Dados. O espaço que abriu no Porto a 29 de fevereiro, na Rua Brito Capelo, nº 82, tem dois pisos e uma pequena cafetaria. Os aficionados podem pagar um euro para jogar durante um dia inteiro, ou então associarem-se, com um custo anual de cinco euros.

“Existem vários grupos de jogos, como o Grupo de Boardgamers do Porto, a Brigada Tripeira, ou o grupo de roleplays do Porto. Este pessoal conhece-se de vista, mas não há muita interação e achamos que faltava um espaço para fazer uma ponte entre estes grupos”, explica a presidente da Associação, Carolina Dias.

Com tudo já a funcionar sobre rodas, a Quebra-Dados tem também o objetivo de criar projetos sociais para “envolver crianças ou pessoas de idade” porque “os jogos são benéficos para essas populações” e também para “tirar as crianças dos ecrãs”. “Eu também gosto de jogos digitais ou de redes sociais, mas as pessoas agarram-se muito a isso hoje em dia. Queremos lembrar as capacidades cognitivas que os jogos analógicos estimulam, como a socialização cara a cara ou o pensamento estratégico”, sublinha Carolina Dias.

Com 27 anos, o amor pelos jogos nasceu há quatro. “Os meus amigos todos começaram a emigrar e eu estava a ver as minhas noites sociais a tornarem-se muito raras, então, comecei a ir a lojas de jogos aqui no Porto e a experimentar com o pessoal”, conta ao JPN. Os jogos uniram-na a pessoas “tão boas” que rapidamente começou a jogar mais frequentemente.

Carolina acredita que os jogos “têm vindo a ficar cada vez mais populares” e conta que tem amigos que inicialmente brincaram por acharem que este era um “nicho nerd”, mas que agora “já perguntam quando é que vamos jogar”.

“Somos muito unidos”

A Quebra-Dados surfa na crista da onda do crescimento mais recente do mundo dos jogos de tabuleiro, mas o Grupo de Boardgamers do Porto já é da velha guarda. Nasceu em 2006 e organiza encontros semanais no Tropical Burger, no Shopping Cristal Park, todas as quintas-feiras à noite. O grupo é também responsável pela criação do site Abre o Jogo e pela organização da convenção InvictaCon.

Os jogos de tabuleiro parecem estar a atrair cada vez mais pessoas

Ricardo Biscaia é economista e professor universitário e integra o grupo. “O meu gosto começou com o grupo, conheci-o por acidente na Comic Con em 2014 e joguei lá com eles. Dois ou três meses depois, decidi experimentar os encontros de que eles falavam e a partir daí devo ter faltado a uns cinco ou seis”, explica.

três tipos de encontros: os semanais, às quintas-feiras; os mensais, no último sábado de cada mês, e o anual, a Invicta Con, que tem sido em novembro, com a duração de três dias. “Em qualquer destes três encontros, qualquer pessoa pode aparecer gratuitamente, mas normalmente as pessoas têm vergonha e ficam lá a olhar, mas nós chamamo-las para virem jogar”, explica Ricardo Biscaia.

O grupo está muito ligado a alguns jogos, como o Tichu, mas há também uma “ânsia de se experimentar coisas novas”. O aumento de aficionados nos últimos anos tem sido evidente, dado que “os boardgames têm ficado mais na moda” e “várias grandes superfícies começaram a vender jogos de tabuleiro modernos”.

“No grupo tem-se notado, porque muitos dos nossos eventos já estão a rebentar pelas costuras, o espaço onde fazemos os nossos eventos está cheio e, às vezes, nem conseguimos receber toda a gente. Já sentimos que há gente que olha e que vê que está cheio e vai embora”, revela o economista.

Com muita ou pouca gente, prevalece o sentido de camaradagem. “O nosso grupo tem a particularidade de as pessoas se conhecerem muito bem e passarem férias juntas. Há mais atividades que fazemos informalmente, com membros do grupo que se encontram para jogarem entre eles. Se calhar, família é uma expressão muito forte, mas nós somos muito unidos”, realça Ricardo Biscaia. Até por serem as próprias pessoas a trazer muitos dos jogos e a partilhá-los, o sentido de comunidade também aí se vê: “Se um jogo é de alguém, quando reunimos, passa a ser de toda a gente”.

Um mundo em expansão

A verdade é que o crescimento da indústria dos jogos de tabuleiro não é só uma tendência em Portugal. Nos últimos anos, o incremento tem-se verificado globalmente e começam-se a ver-se secções dedicadas aos jogos analógicos fora das comunidades do nicho e em grandes lojas como a FNAC ou a Worten.

Fonte dos dados: The “Board Games Market – Global Outlook and Forecast 2018-2023

No número 801 da Rua de Santa Catarina esconde-se mais um cantinho para os boardgamers da cidade, onde também se organizam convívios para jogar. É a loja Arena Porto, onde o mundo geek toma o palco principal, e onde os jogos de tabuleiro têm vindo a ganhar destaque. “Os jogos de tabuleiro não são só de agora, já há mais de uma década que estão a crescer, mas nota-se perfeitamente que nos últimos anos tem sido exponencial”, afirma Hélder Santos, funcionário da loja.

Os reis das vendas são jogos como o estratégico The Settlers of Catan, conhecido simplesmente por Catan, que venceu o prémio de jogo do século passado, e o mais brincalhão Cards Against Humanity. Já os clássicos, só marcam presença em versões especiais. “Temos esses jogos, mas em versões mais específicas, como o Monopólio de Rick and Morty, de Game of Thrones ou do Senhor dos Anéis ou o Cluedo de Game of Thrones também”, conta ao JPN.

Loja Arena Porto

Para além do aumento das vendas, começam também a surgir cafés onde se pode jogar. Depois da abertura de um primeiro espaço em Vila do Conde, o A Jogar é que a Gente se Entende também já está em Matosinhos.

Vinícius Resende é formado em desenvolvimento de jogos e é o responsável pelo espaço em Matosinhos. Apesar de ser recente, já há clientes habituais. “Temos uma família russa que vem cá quase todos os dias da semana e eles vêm sempre jogar, ao fim de semana é quase certo. Têm evoluído muito e é incrível”, revela ao JPN.

A ideia inicial era trabalhar na criação de jogos digitais, mas já há ideias para projetos de jogos de tabuleiro. “Comecei a jogar por volta dos 11 ou 12 anos com os meus primos e eram jogos mais clássicos, como o Scotland Yard ou o Cluedo, e depois na faculdade comecei a descobrir jogos mais pesados. O meu foco inicial era o digital e foi o que eu procurei na faculdade, mas depois tive uma aula de jogos analógicos e comprei um jogo, e a partir daí caí da ladeira abaixo e começou o vício”, explica Vinícius Resende.

Mesmo com a competição dos jogos de vídeo, o regresso aos jogos analógicos parece ter vindo para ficar e os dados continuam a girar nas mãos dos aficionados.

Artigo editado por Filipa Silva

Este artigo foi realizado no âmbito de uma série de reportagens desenvolvidas pela redação do JPN sob o mote “comunidades”, entre fevereiro e março de 2020.