A vila piscatória que nunca adormece está, pelo menos na aparência, a mudar. O grande desafio que enfrenta é o de evoluir respondendo às necessidades de quem a habita, dos residentes mais antigos aos mais novos. Tudo isso, sem deixar de preservar a sua identidade. Esta é a sexta de uma série de reportagens que o JPN dedica ao tema comunidades.

O território nacional está “recheado” de pequenas comunidades que, como a Afurada, se destacam pela sua tipicidade, pela sua ligação ao mar e pela forma como acolhem todos aqueles que chegam de fora.

Localizada junto à foz do rio Douro, a vila piscatória nortenha surgiu em 1228, quando o rei D. Dinis lhe atribuiu o nome de “Furada”. Com a vinda dos primeiros pescadores de outras praias, a zona foi evoluindo e é hoje reconhecida como um dos grandes pontos da atividade ao nível nacional.

Aos olhos de quem melhor conhece esta pérola ribeirinha, a “amizade e o companheirismo”, a união e a entreajuda são caraterísticas inerentes à comunidade.

Quem visita esta terra de pescadores, deixa-se apaixonar pelo seu ar “pitoresco”. As ruas estreitas e íngremes são preenchidas por crianças a brincar, fogareiros prontos a trabalhar e idosos à porta de casa, a apreciar as belas vistas sobre um rio que já parece mar.

Mas se o rio não muda senão de maré, na margem a paisagem está a alterar-se. O novo e o moderno da marina e do desporto náutico, contrastam com o antigo e o tradicional dos lotes de pesca, dos lavadouros públicos e dos estendais repletos de roupa.

À costa desta terra marcada pela antiguidade tem chegado uma onda de modernidade e de novos habitantes que trazem consigo tradições diferentes, outros modos de vida. A Afurada de Baixo e a Afurada de Cima são, pelo menos na aparência, dois mundos distintos.

Uma vila com forte ligação ao mar e à pesca

Numa terra banhada pelo Atlântico e pelo Douro, a atividade piscatória é o epicentro de tudo. É ela que gera o sentimento de pertença, o gosto pelo pescado, e a simpatia de quem sabe a riqueza e importância do recurso onde encontra o sustento: o mar.

Quem melhor conhece a maresia portuguesa, e mais especificamente a afuradense, é António Marques, presidente da Associação da Pequena Pesca Nacional de Cerco. Segundo ele, este paraíso escondido é uma “freguesia muito acolhedora” e muito liberal, sem pudores. “É aí que está a diferença do povo da Afurada”, diz-nos.

A dependência financeira relativamente ao setor pesqueiro não é recente. E essa dependência viu-se afetada ao longo dos anos, porque a pesca, e em especial a pesca de cerco, sofreu bastante com as medidas restritivas de apanha de peixe. A atividade “teve uma quebra muito grave em resultado dos cortes de quota” – definidos no plano europeu. A título de exemplo, conta que há “10/15 anos” o limite de captura de sardinha estava nas 70 mil toneladas. Este ano, que já será reforçado face a campanhas anteriores, poderão ser capturadas 32 mil toneladas. As limitações impostas pelas quotas, garante, levou “muita gente a emigrar”.

A juventude no mar e o trabalho do associativismo

Dois pescadores no cais da Afurada, Vila Nova de Gaia. Foto: Miguel Marques Ribeiro

António Marques acrescenta que “há poucos pescadores novos” e falhas na cativação das novas gerações para a pesca, mas está otimista: “a pesca nunca vai morrer”, diz-nos. Laura Gomes, vogal da Junta de Freguesia de Santa Marinha e São Pedro da Afurada, corrobora: “a maioria dos barcos vão passando de pais para filhos, e agora os filhos são os mestres”.

O pescador considera contudo que é preciso investimento, porque “quanto mais investimento houver paralelo à área da pesca na Afurada, mais vai valorizar a Afurada, mais vai valorizar a pesca”.

A Associação da Pequena Pesca Nacional de Cerco tem 27 associados de cerco entre a Póvoa do Varzim e a Figueira da Foz. António Marques destaca que o grande propósito desta instituição é zelar pelo “bem de todos” e dar o apoio necessário.

Num contexto de falta de trabalho, intensificado pela pandemia, “não há tanta procura de peixe”, como refere Laura Gomes ao JPN, o que fez com que o trabalho da associação se tornasse vital para identificar muitos trabalhadores do mar que, a certa altura do ano, se viram sem emprego e sem oportunidades.

Detalhe do porto de pesca, no cais da Afurada. Foto: Miguel Marques Ribeiro

“Até há seis anos, nós trabalhávamos dez meses por ano. Agora trabalhamos quatro e sentimos um desconforto total. Por isso, é que está tudo a emigrar, está tudo a fugir daqui”, afirma, confiante que o cenário será invertido.

Modernizar a pesca

Numa zona cada vez mais turística e reconhecida internacionalmente, o tradicional e o moderno acabaram por se encontrar. E a pesca não foi exceção. Através do programa MAR2020, a associação, com o apoio da Junta de Freguesia da Afurada e da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, conseguiu autorização para a construção de novos aprestos e de uma pequena lota para a venda de pescado.

A grande obra é o porto de pesca que, aos olhos de António Marques, foi um “investimento merecido, muito apreciado”. E Laura Gomes concorda, referindo que “todas as infraestruturas eram mais do que merecidas para os pescadores”. Atualmente, este espaço conta com cerca de 15 embarcações para uma pesca de cerco que se baseia na sardinha, cavala, biqueirão e carapau.

A substituição dos barracos dos pescadores pela Marina da Afurada e a remodelação dos lavadouros, um dos pontos de referência da área, são sinónimo de evolução, mas ainda faltam algumas condições essenciais para que o setor pesqueiro, como a criação de um porto de gasóleo.

Falta de aposta no mercado de peixe 

O setor pesqueiro tem aliado a si uma panóplia de atividades que, através dos frutos do mar, constituem negócios próprios. Desde restaurantes ao Mercado da Afurada, a vida marinha está presente em cada esquina.

Rosa Alexandre – a “Dona Rosa” como é ali conhecida – é peixeira há 32 anos e está no Mercado da Afurada há três. Ao JPN afirma que era preciso outro conforto, outra comodidade para quem trabalha e para quem compra num local que é dos mais concorridos – senão o mais concorrido – da área.

“Um cliente que chegue aqui que tenha um bocadinho de cultura, uma pessoa mais evoluída, nota que aqui falta muita coisa”, afirma assertiva a peixeira, que reclama assim por aulas e atividades que ajudem a melhorar a qualidade do serviço que presta.

E presta-o cada vez mais a novos clientes, na sua maioria novos habitantes da terra. Rosa Alexandre sente que “as pessoas aqui também têm de se preparar para a chegada dessas pessoas”. A evolução, pensa, não se deve cingir a questões materiais, mas também ao comportamento: “Não podemos tratar os clientes como se fossem pessoas da terra”.

Quanto ao trabalho no mercado, Dona Rosa admite que não se pode queixar. O dia de maior movimento é o sábado, e a peixeira conta que é neste dia que o lucro atinge uma proporção que “não tem comparação com os dias da semana”. Neste dia, é capaz de vender 300 quilos de peixe, sendo que nesta altura do ano, a grande figura é a lampreia.

A vendedora de 50 anos deixa apenas um alerta que serve também como um objetivo para o futuro do Mercado da Afurada: “Quero evoluir mais. Parar não.”

Pormenor dos estendais utilizados pela comunidade da Afurada. Foto: Miguel Marques Ribeiro

A nova paisagem da terra marítima

A mudança da paisagem urbanística da Afurada é evidente. A encosta está povoada de empreendimentos modernos, sobretudo junto às docas, que estão longe de se adequar ao bolso da maioria dos afuradenses.

A modernização é pouco apreciada por uns, mas bem recebida por outros.  Na visão da vogal da Junta de Freguesia da Afurada, Laura Gomes, “é difícil perder-se a tipicidade” da Afurada. A autarca afirma que, na maioria dos casos, as casas tradicionais são propriedade dos respetivos moradores.

Miguel Cruz, habitante da zona alta há cerca de cinco anos, é da opinião de que certos investimentos procuram aproximar-se do ambiente envolvente, contudo salienta que toda a modernização pode pôr em risco a essência da zona, já que, na sua opinião, se está a tornar descomedida.

Também Nuno Gonçalves, responsável por uma empresa imobiliária que opera na zona, defende que a Afurada não se pode descaracterizar. Contudo, a “desconformidade” é, a seu ver, a principal caraterística do atual aspeto da terra.

Para o empresário, é fundamental que a Afurada tenha uma “leitura uniforme”, que proteja a substância da zona, “quer a sua ligação com o rio, quer a ligação com os residentes que estão aqui há já dezenas de anos e que, do nada, veem a sua paisagem completamente alterada”, afirma.

Nuno Gonçalves salienta que “o poder político podia ter feito mais e melhor” na moderação e equilíbrio entre a tradição e o moderno.

O responsável da Cayenne Investimentos questiona mesmo se o propósito da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, ao caucionar o processo de revitalização imobiliária em curso, não será tornar a Afurada na “nova Foz de Gaia”.

Grandes investimentos em habitações de luxo

Numa zona com vista sobre o rio Douro e sobre o mar, a possibilidade de investimento torna-se num chamariz para muitas empresas e grupos. As oportunidades de construção de novas habitações num ponto alto com uma paisagem estonteante levam a que os empreendimentos façam jus à riqueza que os olhos veem.

A Quinta Marques Gomes é um dos locais alvo de revitalização. Sem espaço equivalente nas cidades do Porto e Vila Nova de Gaia, o grupo United Investments optou por selecionar a quinta como o local para a criação de um complexo habitacional de luxo.

Tendo em conta a localização da Quinta Marques Gomes, numa envolvência de natureza e beleza onde o verde e azul predominam, “não havia razão para estar a massificar com betão quando o projeto se insere melhor na paisagem ao natural”, conta Daniel Correia, general manager de real estate do grupo, ao JPN.

Numa terra de costumes e tradições, a empresa compreende que a discrepância socioeconómica é uma realidade, contudo, afirma a grande vontade de trabalhar com a comunidade local e que o complexo “pode ser uma mais-valia para toda a região”. “Acima de tudo há que perceber que investimento atrai capital, mais capital atrai mais emprego, que depois dinamiza toda a economia e com isso ficam todos a ganhar”, destaca.

Perfil do cliente e da habitação

A aposta na reabilitação da Quinta Marques Gomes pretende contribuir para o turismo e valorização da Afurada.

A maioria dos investidores neste projeto são pessoas na faixa etária entre os 35 e os 60 anos e são oriundos do Grande Porto, mais concretamente do centro da cidade, “que procuram agora uma zona mais verde para viverem mais calmamente”, como explica Daniel Correia.

Com o foco direcionado para a reafirmação desta terra tradicional, os investimentos prosseguem sem fim à vista. A paisagem conquista e, neste momento, os espaços em construção continuam a aumentar.

A Reserva Natural como um lugar de culto

Em redor da expansão urbana, a Afurada oferece espaços verdes e naturais de beleza inquestionável, do recentemente inaugurado Parque de São Paio à Reserva Natural Local do Estuário do Douro (RNLED). Com os seus 60 hectares, a RNLED pertence à Rede Nacional de Áreas Protegidas, estatuto que adquiriu por vontade e iniciativa dos munícipes, como conta Paulo Faria, técnico da Reserva, ao JPN.

Na verdade, a sua localização faz com que Vila Nova de Gaia e o Porto sejam das poucas cidades a ter o privilégio de ter uma reserva natural no seu interior: “Em todo o mundo, só aqui existem estas características, a dinâmica ecológica, o ecossistema”. E vai mais longe: “Nem um multimilionário pode criar isto noutra parte do mundo”.

O trabalho de preservação é, na opinião do técnico, dificultado pela influência da pressão urbanística que circunda a área e das pressões que dela decorrem. A RNLED acaba, assim, por ser “o elo mais fraco” no desafio de gestão entre o natural e o urbano. Contudo, Paulo Faria aplaude o esforço do município para preservar a Reserva ao longo da última década.

Vista da Marina da Afurada desde a Afurada-de-Cima. Foto: Miguel Marques Ribeiro

Miguel Cruz, um dos novos moradores, concorda que as novas moradias exercem pressão sobre a zona costeira e lamenta também o aumento da poluição que lhe está associado.

Ao estar localizada tão próxima do meio urbano, a Área Protegida do Estuário do Douro atrai inúmeros visitantes. O técnico da reserva natural considera que é, por isso, imperativo fazer pedagogia perante aqueles que visitam o espaço.

A área, compara, é uma espécie de “museu ou um lugar de culto”, um espaço de portas abertas e concebido para ser visitado, mas no qual as pessoas devem adequar o seu comportamento por ser uma área protegida.

A reserva representa, dessa forma, um importante instrumento para preservar um “referencial de natureza selvagem” naquela área.

“Novos povos e novas culturas” na Afurada

Fruto da progressiva modernização, do empreendedorismo e do desenvolvimento urbanístico da região, a Afurada tem-se tornado, em anos recentes, num espaço bastante atrativo para novos moradores.

Um tipo de habitante com maior poder económico e com um estilo de vida distinto dos que sempre fizeram da vila a sua casa.

Miguel Cruz, de 22 anos, e a sua família são apenas um exemplo dos muitos portuenses, e não só, que se deixaram apaixonar pelos encantos da pacata terra do concelho de Vila Nova de Gaia. No momento da mudança, a localização foi um fator determinante na escolha. “Estamos perto de tudo”, confessa o jovem ao JPN.

A viver num condomínio com “vista fantástica” para a zona ribeirinha, na Afurada de Cima, Miguel beneficia da facilidade de acesso ao centro comercial, à ponte da Arrábida, bem como ao mercado à beira-mar, onde o pão e o peixe “são muito fáceis de obter e têm muita qualidade”. Cinco anos depois da mudança com a família, destaca também uma comunidade em que “toda a gente se dá muito bem”.

Apesar de reconhecer a distinção em duas partes da vila, António Marques, da Associação de Pescadores, garante o mesmo: “toda a gente que vem aqui, se sente à vontade”. Quer estejam a assar sardinhas à porta de casa ou num tasco a beber uma cerveja, quem passa pela zona mais tradicional da Afurada é sempre convidado a juntar-se à mesa. “Basta haver curiosidade da própria pessoa e saber como é que isto funciona”, refere.

Vendedora de lampreia, na Afurada, Vila Nova de Gaia. Foto: Miguel Marques Ribeiro

Laura Gomes acredita que o contraste entre a “velha Afurada” e a “nova Afurada” não é, de todo, um problema e que a chegada de novas pessoas, não desvirtua as tradições da terra. Aliás, a perceção é de que “os novos povos, as novas culturas”, como lhe chama, são apreciadas pelos que ali vivem há mais tempo. O mesmo se aplica no sentido inverso, com os recém-chegados a fazerem o esforço para se inteirarem e integrarem nos costumes e tradições da região.

Essa visão é corroborada por Miguel Cruz, que refere que a família foi sempre bem tratada e que toda a comunidade é bastante unida. O jovem considera que a simpatia dos afuradenses contribuiu para a vontade de ficar na localidade, visto que o sentimento de pertença acabou por surgir de forma natural.

A diferença inevitável entre as “Afuradas”

Ainda assim, mesmo que a postura acolhedora dos habitantes mais antigos da vila facilite a integração dos novos, essa divisão acaba por ser inevitável. Numa das entradas para a vila, as placas na rua dão forma a essa ideia com a distinção entre a “Afurada” e a “Afurada de Cima”.

A marina, um exemplo perfeito da modernização da zona, faz uma espécie de fronteira entre as duas realidades. De um lado, os iates e as embarcações luxuosas. Do outro, a apenas alguns metros de distância, os lavadouros, os estendais públicos, a lota e as pequenas embarcações de pesca.

Mas a diferenciação não se manifesta apenas ao nível visual e de infraestruturas, há também os distintos ambientes socioeconómicos. Se os novos habitantes pertencem sobretudo a classes sociais altas com forte poder económico, o mesmo não se pode dizer sobre aqueles que moram na Afurada há mais tempo.

Perspetiva da Afurada-de-Cima e de Baixo. Foto: Miguel Marques Ribeiro

Para o promotor imobiliário Nuno Gonçalves, os afuradenses “querem que o progresso chegue, mas que seja um progresso controlado”.

Na ótica do morador Miguel Cruz, seria desejável que se mantivessem os preços a um nível mais acessível na zona, ao contrário do que sucede nos restaurantes mais modernos, de forma a não excluir ninguém.

Por sua vez, Carlos Bettencourt Gesta, diretor da secção de remo do CDUP, afirma ao JPN que, apesar de receber bem e gostar de receber pessoas do “exterior”, a Afurada é uma comunidade fechada e pouco recetiva a mudanças. Dessa forma, acredita que haverá sempre uma barreira entre as “pessoas típicas” da terra e os novos habitantes que “querem o seu bem-estar”.

Manter a identidade

Com a chegada de novos moradores pertencentes a uma classe social distinta daquela que está nas raízes da vila piscatória, existe sempre o medo de que aquilo que torna a Afurada especial se possa perder.

Ainda que se perca inevitavelmente alguma coisa no processo, a vogal da Junta de Freguesia acredita que a manutenção das tradições estará sempre salvaguardada pela vontade popular.

Estaleiro de construção em frente à Marina da Afurada, em Gaia. Foto: Miguel Marques Ribeiro

Como refere Nuno Gonçalves, a modernização da área só faz sentido se a sua identidade não se perder, o que se traduz em “não deixar morrer as tradições” e “dar a conhecer, a esta nova geração que vive na Afurada, o que são os seus costumes”.

Para quem vê a evolução de fora, como Shirley, cidadã inglesa que emigrou do Reino Unido para Portugal após o Brexit, há a curiosidade para perceber se a chegada de novas pessoas vai permitir uma “integração que é compatível com a forma como eles [os habitantes mais antigos] têm vivido até agora”.

O impacto dos novos habitantes

Shirley vê com algum ceticismo as novas construções imobiliárias na área, porque vão trazer uma “atmosfera diferente”. Lamenta que esta corra o risco de deixar de “ser uma pacata vila piscatória” e “tornar-se numa metrópole”. No entanto, reconhece que os novos habitantes “vão significar mais negócios para as pessoas da Afurada”.

O desenvolvimento urbanístico da região tem trazido consigo a chegada de estrangeiros, responsáveis pela aquisição das empreitadas mais avultadas na Afurada. Nuno Gonçalves, promotor imobiliário, vê isso como um aspeto positivo.

“Um estrangeiro que decida vir viver para aqui, fá-lo porque se identifica com as nossas gentes e com a nossa cultura. Sente-se seguro. Sente que pode parar alguém na rua para pedir indicações. Não vejo isso como algo mau”, explicou.

Pescador conclui a preparação de uma lampreia, no cais da Afurada. Foto: Miguel Marques Ribeiro

O mundo do desporto num ambiente de modernidade

Apesar da chegada de novos habitantes e do investimento em infraestruturas urbanísticas, a área do desporto não tem acompanhado, nem beneficiado, dessa evolução: “Esta zona à beira do rio não tem quase nada”, confirma Miguel Cruz. Para o estudante da Faculdade de Economia do Porto, todo o investimento no setor desportivo e de lazer está “fora de contexto”, visto estar desadequado em relação ao poderio económico dos habitantes do núcleo tradicional da Afurada.

Por outro lado, na requalificação de que foi alvo, recintos como o antigo ringue e o CDUP viram o seu fim delineado, o que não agradou a todos, especialmente às pessoas da terra.

Tanques usados para a lavagem da roupa, junto ao cais da Afurada. Foto: Miguel Marques Ribeiro

Dona Rosa, peixeira de profissão e afuradense de corpo e alma, destaca a ausência de locais de lazer e desporto para os mais jovens: “Há 30, 40 anos, isto era pobre, mas tínhamos sempre esses espaços”. Como refere, Carlos Bettencourt Gesta “havia um campo de futebol à beira dos tanques, e mesmo esse foi demolido”.

A maré “elitista” vence a tradição?

Uma das grandes perdas na localidade, é a secção de remo do CDUP, na visão do seu diretor. Um núcleo a que muitas crianças da zona chamavam de “casa” e que, por falta de condições e após longos anos de espera, está prestes a abandonar a zona e mudar-se para Oliveira do Douro.

Os atuais contentores onde o centro ainda funciona são a única forma de presença da instituição. Carlos Gesta, que afirma ter apoiado do próprio bolso várias crianças para promover a prática do remo, garante que a modalidade não é “elitista”, ao contrário do que sucede com a vela na Marina.

Os custos da prática de desportos náuticos na Marina, bem como os preços elevados de um mero café, não são praticáveis para a velha geração afuradense, que “não se sente integrada”. “Há muitas maneiras de segregar”, avisa.

Interior do contentor do CDUP, junto ao rio Douro. Foto: Miguel Marques Ribeiro

O fecho do CDUP na Afurada já estava há muito anunciado. A falta de apoios e de condições tornou impraticável a aceitação de alunos no centro e levou à suspensão das atividades do clube na modalidade.

Após cerca de 14 anos à espera de uma solução para a criação de um posto náutico, Carlos Bettencourt Gesta aponta o dedo a “alguma força de bloqueio” ao nível autárquico como o grande impedimento para o avanço do processo no sentido que desejava.

A grande salvaguarda de toda a secção de remo são os atletas seniores que vão fazendo a sua preparação no centro. E quando surge algum jovem com vontade de ingressar no remo, o dirigente, sem instalações para os receber, encaminha-o para outros clubes, “para que eles não deixem de remar”.

Numa modalidade em contínuo crescimento, Bettencourt Gesta lamenta o estado do CDUP, já que a localização do recinto era o que o distinguia face a todos os outros clubes do Porto, ao permitir o remo de mar.

O turismo em terra dos pescadores

Nem só de luxos e belezas naturais se faz um polo turístico. Na Afurada, as tradições e os costumes têm tanto ou mais valor que a modernidade. Um dos exemplos dados por Laura Gomes, vogal da Junta de Freguesia, é precisamente o cais de pesca, que atrai os olhares de muitos curiosos e que leva a que tanto António Marques, da associação de pescadores, como o promotor imobiliário Nuno Gonçalves, considerem que este setor não vai, nem pode “morrer”, independentemente da evolução da região.

Na visão da autarca, o aspeto pitoresco da vila, a vivacidade dos espaços e o tom acolhedor dos habitantes são outros condimentos que contribuem para o sucesso turístico da zona. Os lavadouros públicos, “as ruas típicas, o casario, os azulejos em si, os fogareiros à porta de cada família, o comerem na rua, o estender a roupa de sua casa para a rua, é isso que as pessoas que nos visitam mais procuram”, atira Laura Gomes.

Shirley, que se mudou há dois anos para Portugal, descreve-a como o seu “lugar feliz”, onde há “muita natureza” e menos pessoas. Destaca ainda a reserva de aves, as praias e o oceano como elementos cativantes, para além das “pessoas muito amigáveis, simpáticas e prestáveis”.

A pandemia colocou um travão na chegada dos estrangeiros, com a vogal da Junta de Freguesia a mencionar ao JPN em março [mês em que foi realizada esta reportagem], que os alojamentos locais estavam vazios há mais de um ano e que os restaurantes, que têm nos turistas uma forte fonte de rendimento, estiveram durante muito tempo encerrados.

A própria festa do São Pedro da Afurada, que tem por hábito conquistar a atenção da imprensa nacional e internacional, não se pode realizar e foi uma perda enorme para a região.

Vista para a foz do Douro. Foto: Miguel Marques Ribeiro

Com os olhos no futuro, há agora a vontade de criar esplanadas ao ar livre para dinamizar a restauração e ter, nas noites de verão, cinema ao ar livre, espetáculos de música e teatro, com vista a oferecer mais motivos para levar as pessoas de volta à Afurada.

A tradicional terra do mar, que nunca adormece, está, pelo menos na aparência, a sofrer uma mudança profunda. O grande desafio que enfrenta é o de evoluir respondendo às necessidades de quem a habita, dos residentes mais antigos aos mais novos. Tudo isso, sem deixar de preservar a sua identidade.

Trabalho editado por Filipa Silva e João Malheiro

Esta reportagem multimédia integra a série “Comunidades” estreada em 2020 pelo JPN. A série de 2021 teve o seu pontapé de saída a 1 de março no âmbito da atividade Editor por um Dia, este ano a cargo da jornalista Catarina Santos.