O azulejo é a peça que une os quatro projetos que fomos conhecer no âmbito deste trabalho. É a nona de uma série de reportagens desenvolvidas pela redação do JPN sob o mote "comunidades", entre fevereiro e março deste ano.
Presente em Portugal desde o século XV, o azulejo é hoje mais do que um material decorativo. Desde 2017, é património protegido pela lei e celebrado com um dia nacional (6 de maio). Despertos para a beleza e para o caráter tantas vezes único destas peças, muitos são os projetos que se dedicam a preservar e a promover o azulejo de fachada.
No Porto, há iniciativas de caráter efémero, como o “Preencher Vazios”, mas também de documentação e preservação, como “Os Azulejos do Porto” ou o Banco de Materiais. Ao nível nacional, é o SOS Azulejos quem se coloca na linha da frente da defesa do património azulejar.
Entre a FBAUP e São Bento, preencheu-se um vazio
O “Preencher Vazios” nasceu em 2016 no âmbito da tese de Mestrado de Arte e Design para o Espaço Público que Joana Abreu tirou na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP).
A agora designer admite que “não sabia muito bem o que é que ia fazer” no projeto prático que tinha de desenvolver na reta final do curso. No entanto, a ideia acabou por surgir e acabou por ser durante o seu percurso diário que fazia entre a faculdade e a Estação de São Bento, no Porto.
“Estava sempre a dar de caras com fachadas onde faltavam alguns azulejos. Aquilo começou-me a inquietar e pensei: ‘ok, posso pegar neste problema e transformar em projeto para a tese’. Foi assim”, conta.
O objetivo do projeto está no nome. Para o cumprir, Joana faz “intervenções efémeras” em fachadas onde faltam azulejos.
“Chego lá, colo e não peço ao proprietário. É uma coisa efémera. Passado um, dois, três meses, um ano aquilo vai estar igual. A ideia é também surpreender a pessoa que lá está e as pessoas à volta”, explica a designer ao JPN.
Para criar essa efemeridade em vez de utilizar cerâmica, Joana usa como base pedaços de madeira revestidos de papel colorido com padrões e frases de autores portugueses. A ideia “não é encontrar solução para o problema”, mas sim “proteger o património e chamar a atenção sobre pequenos detalhes”, diz.
Depois também “é giro” ver as alterações que a peça vai sofrendo ao longo do tempo, em resultado de fungos ou rasgões feitos pelas pessoas.
Caso o proprietário esteja interessado a instalação em algo mais permanente, a designer também faz impressões em cerâmica com o padrão que foi escolhido por ela ou o que o cliente desejar.
No que toca às frases dos autores, a designer faz sempre questão que estejam em português e que os autores sejam também eles portugueses. No entanto, como também cria peças para serem vendidas em lojas de recordações, na parte de trás da peça, os turistas podem encontrar a tradução.
Intervenção “Preencher Vazios”
Com esta iniciativa, Joana já fez intervenções um pouco por todo lado, quer seja em território nacional quer seja no estrangeiro.
“Sempre que viajo levo azulejos comigo para colar lá, sempre com a frase em português com a tradução em lígua estrangeira. Tenho em Roma, Marraquesh e em Paris. Também tenho em Lisboa e em Braga”, conta ao JPN.
Joana Abreu tem atualmente o seu ateliê no Porto, onde trabalha como designer noutros trabalhos a que se dedica como painéis azulejares, workshops para empresas ou escolas e também encomendas para o interior de casas com frases para as pessoas colarem.
Um “museu” digital que gostava de se tornar físico
No mesmo ano do “Preencher Vazios”, nascia na Invicta o projeto “Os Azulejos do Porto” pela produtora cultural Marisa Ferreira e pela designer espanhola, Alba Plaza.
Conhecidas como “caçadoras de azulejos”, as duas decidiram criar um catálogo digital que tem como origem a curiosidade da espanhola pelos azulejos de fachada da Invicta, assim como a falta de livros informativos sobre os azulejos.
Alba Plaza, co-criadora do projeto “Azulejos do Porto”
Nesse sentido, Marisa e Alba começaram a fazer um levantamento fotográfico das peças que compõem as fachadas do Porto.
De câmara fotográfica na mão, percorrem a cidade à procura de peças de cerâmica com o único objetivo de as preservar e dar a conhecer, catalogando-as online.
Após o azulejo ser fotografado, é apontada a localização do edifício, número da porta e da rua, assim como as cores, o tamanho e, se conseguirem, o nome da fábrica e as técnicas utilizadas na confeção – pintura à mão, estampilhas ou stencils, sendo que “os mais modernos são a serigrafia e a estampagem”, conta Alba.
O passo final deste processo é a edição da imagem que tem como objetivo manter as cores o mais parecidas possíveis ao azulejo original para serem depois publicadas no site e nas redes sociais.
Para além de “Os Azulejos do Porto”, a dupla criou também “A Gazeta dos Azulejos”, um projeto que tem por objetivo financiar o catálogo digital através da venda de azulejos e painéis, assim como de workshops de pintura de azulejos. A dupla quer distinguir “a investigação e preservação”, ligadas à iniciativa primordial, “de um projeto de pintura e workshops”, que está na base d’A Gazeta, como explica Alba.
A portuguesa e a espanhola contam que nos workshops que realizam, recebem portugueses, mas admitem que a maioria dos interessados são estrangeiros, sobretudo pessoas dos Estados Unidos e Ásia. De acordo com Marisa, os portugueses não prestam tanta atenção ao azulejo, porque cresceram com ele. Já os turistas não encontram estas peças porque ou não existem ou são muito difíceis de encontrar nos seus países de origem.
A dupla confia mesmo que o azulejo não tende a desaparecer, porque o turismo “ajuda bastante”. “Agora só falta o Governo investir mais também, para colocarmos mais azulejos nas casas”, considera Marisa. Porém, não deixam de salientar que tanto no Porto como no país “já se perderam peças únicas” que será impossível recuperar.
Para Marisa e Alba, estes projetos requerem muito trabalho, assim como o azulejo requer muita mão de obra e muita precisão. “É um trabalho que nem sempre à primeira corre bem”, refere Marisa, mas que pode resultar numa valorização. É uma questão de “prioridades”, entende Marisa: “Há pessoas que preferem dar 30 euros por uma camisola que lhes vai durar três meses do que dar 30 euros a um artista que, se calhar, daqui a 20 anos vai valer, sei lá, 30, 50 vezes mais”, remata.
No que toca aos objetivos futuros, Marisa e Alba afirmam que “adoravam” ter um museu de azulejos de fachada no Porto, uma vez que só existe em Lisboa. A dupla já até pensou em criar um por iniciativa própria, mas Marisa diz ser “muito caro” e que “requer demasiada burocracia”.
Como alternativa vão continuar com o seu museu digital que já foi reconhecido pelo SOS Azulejo, outra iniciativa que se foca na proteção das peças de cerâmica.
O Banco de Materiais do Porto
Além de projetos de iniciativa privada, há no Porto outros de caráter público como o Banco de Materiais criado na cidade em 2010.
Situado no Palacete Viscondes de Balsemão, no número 71 da Praça Carlos Alberto, este depósito tem como objetivo salvaguardar materiais decorativos e construtivos que caracterizem o Porto. Todos os materiais são recolhidos em edifícios degradados, em demolição ou que estejam a sofrer alterações para depois serem devolvidos à cidade.
Entre os materiais, predominam as peças azulejares, que são recolhidas em três situações distintas.
A primeira situação é a remoção de peças pelo departamento municipal de proteção civil da câmara, caso existia perigo de queda para a via pública ou uma execução de obras dos próprios proprietários.
A segunda situação é quando os prédios têm áreas que vão ser objeto de demolição. O Banco de Materiais é contactado para que as peças em bom estado sejam recolhidas.
Por último, existe a possibilidade de serem feitas doações voluntárias por pessoas que encontraram algum material em suas casas e desconhecem o seu valor.
Em todos os casos, para serem guardados pelo banco, os azulejos têm de estar em bom estado, bem preservados e sem resíduos de argamassa no tardoz (parte de trás da peça) devido à dificuldade de remoção da matéria. A finalidade é de que estes materiais encontrem o seu destino fora do banco.
“Não faria sentido andarmos aqui a estimular as pessoas para o reaproveitamento destes materiais se depois na prática não os conseguirmos escoar. Se não sensibilizarmos as pessoas a manter, se não lhes explicarmos [porque é importante fazê-lo], não tarda nada estão a querer por tudo novo, porque é mais fácil, é mais económico do que limpar estas peças”, explica Paula Cristina Lage, técnica superior do Banco de Materiais, ao JPN.
Depois de recolhidos, os azulejos são inventariados e inseridos numa reserva museológica, isto para, no futuro, criar um mostruário de um período de produção de um determinado padrão.
Existem também determinadas peças que devido à forte procura são bastante levantadas pelo Banco de Materiais. É o caso do azulejo de cor “branco sujo”, quadrangular e antigo, uma vez que é uma peça cuja cor é difícil de obter.
Outra das características de preservação de azulejo pelo Banco de Materiais é a raridade das peças. Azulejos de séculos passados são escassos e consequentemente considerados raros. A entidade tenta guardar e preservar essas peças com maior cuidado, porém, Paula Cristina Lage diz que para o banco “todas as peças são preciosas”.
A condição primordial para ceder as peças é que o munícipe seja proprietário de um edifício no Porto. A Câmara Municipal do Porto também faz questão que estes materiais cedidos sejam repostos em fachadas, apesar de terem proveniência de outros edifícios.
“Nós não damos a quem não tem, nós colmatamos a falha que existe nas fachadas”, acrescenta a técnica superior. O banco já exerce este trabalho de cedência há cerca de 28 anos, pelo que já foram cedidos vários azulejos a diversos edifícios da cidade.
De acordo com Paula Cristina Lage, os grandes interessados são os proprietários estrangeiros. “Eles não deixam tocar em nada, mesmo sendo necessário, eles têm de ser convencidos a deixar tirar o azulejo. São grandes protetores desse património”, explica.
E os portugueses, também protegem este património ou ele tende a desaparecer? Paula Cristina Lage recorda que os azulejos de fachadas são uma inovação portuguesa, porém, no Porto existem muitos edifícios em “desprendimento e em ruína” revestidos de peças com mais de 150 anos que nunca tiveram uma reabilitação.
“É esta ideia que temos de continuar a passar de geração em geração. Eu não diria que nós não o valorizamos. Nós não estávamos com a nossa atenção desperta para isso, mas agora temos um espaço onde podemos mostrar estas características”, remata.
O SOS que soou em 2007
Muito antes dos projetos de Joana, Alba e Marisa foi criado o SOS Azulejo, um projeto de iniciativa e coordenação do Museu da Polícia Judiciária aberto em 2007 para “combater a grave delapidação do património azulejar português“, lê-se no site oficial.
Pedro Silva, coordenador de investigação criminal responsável pela secção que investiga crimes relacionados com o património e bens culturais no Norte do país, explica ao JPN que as denúncias podem ser feitas informalmente, por e-mail, por qualquer pessoa, ou formalmente, no caso do proprietário das peças desaparecidas
“Imagine que um cidadão verifica que no Palácio de Sintra desapareceu um conjunto importante do seculo XVII. Até pode ser um cidadão estrangeiro. Escreve um e-mail à Polícia Judiciária que o recebe e depois difunde essa comunicação para todos os departamentos. Todos recebem fotografias com a descrição do tipo de peças que estão a ser furtadas, uma vez que os azulejos podem ser furtados em Sintra e vir a aparecer aqui no Norte ou noutro sítio qualquer. E quando a polícia anda na rua tem de ter presente as peças que estão desaparecidas para poder investigar”, exemplifica Pedro Silva.
No decorrer da investigação, as autoridades tentam perceber se as peças de azulejo foram arrancadas, onde é que foram compradas e se existem faturas. Caso as dúvidas se mantenham é feita uma apreensão cautelar e depois é aberto um inquérito para confirmar se as peças foram ou não furtadas. Caso as suspeitas não se confirmem, o conjunto é devolvido. De outro modo, é solicitado que o material seja entregue ao Estado para “que lhe seja dado um fim justo”.
Se se verificar o crime de furto, as penas podem ir até oito anos de prisão no caso de se tratar de furto qualificado, se envolverem peças de alto valor histórico e patrimonial.
Alguns locais mais visados pelos roubos são igrejas, universidades e palácios. A maioria decorre em Lisboa, uma vez que os azulejos mais antigos, com grande valor, se concentram nessa zona.
A Estação de São bento, no Porto, tem alguns dos painéis azulejares mais conhecidos do país. Foto: Leonor Gonçalves A Estação de São bento, no Porto, tem alguns dos painéis azulejares mais conhecidos do país. Foto: Leonor Gonçalves A Estação de São bento, no Porto, tem alguns dos painéis azulejares mais conhecidos do país. Foto: Leonor Gonçalves
A capital portuguesa destaca-se neste caso pelas diversas casas apalaçadas revestidas de painéis inteiros de azulejo valioso. Nesta situação, os interessados podem “encomendar” o furto de um painel inteiro a quem esteja disposto a arrancá-lo da fachada.
“É fácil furtar e é fácil vender, porque não temos praticamente controlo nenhum. Como sabe, estamos na União Europeia, as pessoas circulam livremente se não houver uma ação especifica a tempo, as coisas saem daqui”, acrescenta Pedro Silva.
Seja como for, o projeto apresenta um número de que se orgulha: uma diminuição dos furtos registados na Polícia Judiciária de azulejos históricos e artísticos em cerca de 80% entre 2007, ano de criação do projeto, e 2018.
O furto, vandalismo e incúria têm sido verdadeiros problemas para a preservação do património azulejar português. Sobretudo, porque não há forma de monitorizar todos os edifícios classificados com interesse patrimonial. O “abandono” é outro problema: a não utilização dos edifícios é o primeiro fator de motivação para quem pretende furtar.
O SOS Azulejo registou, ainda assim, algumas vitórias ao longo dos anos. Além da diminuição do número de roubos, a divisão aplaude a criação de legislação que protege o património azulejar (e que entrou no parlamento por sua iniciativa), bem como a instituição do Dia Nacional do Azulejo, que desde 2017 se celebra a 6 de maio, em Portugal.
Artigo editado por Filipa Silva
Este artigo foi realizado no âmbito de uma série de reportagens desenvolvidas pela redação do JPN sob o mote “comunidades”, entre fevereiro e março de 2020.