As histórias variam como a mercadoria nas bancas. Para todos, o trabalho é árduo, instável e pouco rentável. Mas o "bichinho" do regateio e da venda, quando morde parece que fica. Esta é a oitava de uma série de reportagens desenvolvidas pela redação do JPN sob o mote "comunidades". Desta feita, andámos pelas feiras da Areosa, Carvalhos, Espinho e Santana.

Manhã fria de março. São 6h51. O sol faz cerimónia a nascer, mas já começa a despertar o dia. As carrinhas começam a chegar em procissão, à pinha, repletas de materiais e produtos, prontos para serem postos à venda. O barulho do martelo a bater nos espigões está em perfeita sintonia com o badalar das horas. As barracas estão prontas e mais um dia de vendas raia na praça.  

Estamos em Leça do Balio, na Feira de Santana, mas podíamos estar em qualquer outra. A rotina repete-se ao dia. Às vezes, os feirantes também. Vêm de lugares diferentes – uns mais longe, outros de mais perto – mas, naquele dia específico da semana, encontram-se no mesmo sítio à hora marcada. É um compromisso de trabalho árduo e responsabilidade máxima, porque, no final de contas, as feiras são o maior sustento da vida dos comerciantes que lá vendem. Os hábitos de cada um são diferentes, no entanto, respeitam todos uma premissa: fazer do dia o melhor dia de vendas possível.

De manhã bem cedo começam a surgir os primeiros clientes. Alguns aproveitam para ir à feira mais perto do local onde vivem antes até de irem trabalhar. Os clientes gostam de chegar cedo para fazerem as suas compras, porque, para além de não haver tanta confusão, muitos dos produtos, nomeadamente do setor alimentar, acabaram de ser colhidos pelos feirantes. Estão, como o dia, ainda frescos.

Apesar das feiras serem um negócio muito antigo e de terem uma natureza simples, os clientes são muito exigentes. O preço definido pelos feirantes quase nunca é o preço final de compra. A arte de regatear é um dos maiores trunfos deste tipo de comércio. Que o diga a dona Ana, que encontrámos na Feira da Areosa, que decorre às terças-feiras, em Gondomar. É feirante de calçado “desde que se lembra”, pois começou cedo a vender nas feiras com a mãe e começou a “desenvolver muito cedo o bichinho”.

Para esta comerciante uma das melhores coisas que existe nas feiras “é a liberdade que o feirante tem para escolher o que quer vender e onde quer vender”, considerando que “existem poucas profissões que permitam isso”. Ana foi-se adaptando aos tempos e, por essa razão, teve umas aulas de inglês, devido à constante frequência de turistas nas feiras nacionais.

Feira da Areosa, Gondomar. Foto: Ana Rita Graça

Há uma grande variedade de produtos à venda prontos para serem cobiçados pelos fregueses. Existe muita diversidade, no entanto também há muitas barracas que vendem produtos iguais ou muito semelhantes. Todos os feirantes se conhecem entre si e sabem perfeitamente quem são os “vizinhos” ou quem está duas barracas à frente.

Uma vida “ingrata”

Olinda Cardoso, de 58 anos, é feirante há 36 e trabalha em revenda. Na Feira dos Carvalhos, que decorre às quartas-feiras, em Vila Nova de Gaia, está acompanhada pela dona Graça e pelo senhor José, a vender panos e tecidos. Olinda considera que entre os feirantes, apesar de a grande maioria se dar bem, há uma grande rivalidade. “Se uma pessoa está interessada num determinado produto e não conseguiu comprar naquela barraca específica com produtos semelhantes, o feirante faz de tudo para conseguir chamar a atenção do comprador e conseguir vender o produto”, afirma a feirante. Olinda entrou na vida de feirante por influência do marido, pois quando era solteira costumava trabalhar numa fábrica.

José, Graça e Olinda Cardoso, da esquerda para a direita, na Feira dos Carvalhos, Vila Nova de Gaia. Foto: Ana Rita Graça

Quase 40 anos depois, o negócio mudou muito, sobretudo desde que abriram as grandes superfícies. “As vendas [nas feiras] vieram muito abaixo”, comenta.

“É uma pena não conservamos o comércio antigo, mas a verdade é que o cliente de hoje prefere fazer as suas compras num local sossegado, onde não apanha vento e chuva e tem tudo na mesma à disposição”, analisa Olinda Cardoso. A comerciante refere que “é complicado fazer face às despesas”, porque há dias em que sequer se “estreiam” a vender. Para Olinda a vida de feirante é uma vida muito “ingrata, porque não dá para cobrir quase nenhuma despesa”.

“Hoje já não tenho o mesmo prazer de vender de antigamente. Agora parece que estou a mendigar, as pessoas a comprar qualquer peça parece que estão a comprar um apartamento”, conclui a feirante.

“Pode acontecer não faturar um tostão”

Uns metros mais à frente, encontramos uma barraca com vários tipos de calças: de bombazine, ganga, tecido. É a barraca de José Pinto, de 62 anos que é feirante há 14. Começou tardiamente nesta profissão, porque teve durante muitos anos outro negócio. “Fiquei desempregado numa fábrica onde trabalhava e, então, resolvi meter-me nisto. Foi uma forma de arranjar logo dinheiro, porque de outra forma não via maneira de sustentar a casa e as filhas”, afirma José.

Como Olinda, também o feirante não vê um bom futuro nas feiras, porque há muita concorrência, “muitas lojas com preços equivalentes”. José Pinto explica que tenta que os produtos sejam vendidos ao preço que compra no armazém, para conseguir ter alguma margem de lucro, “mas é um processo muito complicado, o cliente não compra, quer seja nacional ou importado”. O comerciante vê com uma grande incerteza a continuidade do negócio, porque nunca sabe se vai conseguir ganhar o dia ou ter prejuízo: “pode acontecer não faturar um tostão”. Os dias mais rentáveis costumam ser dias mais solarengos e a época mais forte costuma ser o verão, pois há maior afluência de turistas e dos emigrantes que vêm visitar o país.

José Pinto mostra-se também crítico das autoridades municipais, pois considera que existe “muita falta de apoio e muitas exigências”. Para José, as autarquias preocupam-se demasiado com questões como “ocupar metros dos vizinhos, mas depois não querem saber de outras questões bem mais importantes”.  

José e Graça PInto, aqui, na Feira de Santana. Foto: Ana Rita Graça

Relativamente à relação entre comerciante e comprador, José Pinto afirma que os clientes e o próprio feirante vão ao encontro um do outro: “o feirante vai à praça e o comerciante vai à praça”. O segredo, desfia José, “para além do lugar, é a pessoa ter maneiras de atender um cliente”. “Nós, se mantivermos as mesmas referências, é muito mais provável que fidelizemos o cliente. Temos de ser honestos e não falhar com o cliente”, diz. “Ser consistente” é fundamental para qualquer vendedor.

O trabalho do feirante pauta-se por perceber o perfil de cada cliente e adequar, assim, os produtos a cada um. Para além disso, uma das mais-valias dos feirantes é regatear e tentar vender o produto pelo preço que o cliente está disposto a pagar.

As feiras mantém a sua essência cultural, no entanto têm vindo a modernizar-se. Alguns feirantes já possuem uma máquina de multibanco para compradores que preferem usar o cartão de débito em vez de dinheiro. Para além disto, as feiras procuram ser concorrentes às grandes superfícies e, para isso, fazem promoções várias vezes ao ano e não apenas na época de verão e de natal.

Não se faz feira sem promoções. Foto: Ana Rita Graça

“As feiras nasceram comigo e eu cresci com elas”

A Feira de Santana, em Leça do Balio, é uma das feiras mais conhecidas do Grande Porto. Não apenas pela quantidade de feirantes que se pode encontrar, mas principalmente pela diversidade de produtos que oferece.

Esta praça é um dos pontos comuns de uma grande parte dos feirantes do Norte. É uma feira que acontece todas as sextas-feiras de manhã e, como em todas as outras, o dia começa bem cedo.

Foi a vender roupa de criança que conhecemos Elisabete Moreira. A feirante começou a trabalhar com apenas 9 anos na barraca dos pais e desde cedo se apaixonou pela profissão. “Eu não queria ir para a escola!”, diz em tom de brincadeira a feirante.

Elisabete Moreira não se arrepende de ter seguido o caminho das feiras, com a ajuda do marido. No entanto, considera que “os feirantes têm de trabalhar muito e no duro para conseguirem ganhar dinheiro”. A feirante tem o mesmo ponto de vista que Olinda Cardoso e José Pinto, pois acha que as grandes superfícies comerciais vieram “abalar muito as vendas nas feiras”. O grande comércio para Elisabete Moreira “é mais apetecível, apesar de os bolsos ficarem mais carregados quando vêm [os clientes] para o pequeno comércio”.

Elisabete Moreira a montar a barraca na Feira de Santana, Leça do Balio. Foto: Ana Rita Graça

Para os feirantes não passarem dificuldades económicas, Elisabete Moreira afirma que tem de ser feita “uma grande ginástica” e trabalhar “forte e feio”. Por essa razão, Elisabete prescinde do domingo em casa e vai de barraca aviada para Feira da Estela, para lá da Póvoa do Varzim. “Os domingos são muitos bons para faturar. É normalmente o dia da semana que é considerado de descanso e, por isso, os compradores vêm passear às feiras e acabam sempre por levar alguma coisinha”, finaliza Elisabete.

Quem não abdica do domingo de descanso é Maria Delfina, que é feirante há 18 anos. Para Maria, “o domingo é sagrado” e, apesar de saber que se vende bem nesse dia, para a feirante domingo é de “descanso absoluto”.

Maria Delfina viveu uma grande parte da vida na Suíça, onde foi emigrante. Quando decidiu vir para Portugal, não quis ir logo para a reforma, pois considerou que ainda era muito nova para deixar de trabalhar. Assim, apaixonou-se pela arte de vender moda feminina e masculina em feiras e mercados.

“A verdade é quando era mais nova não gostava nada de feiras. A minha mãe adorava e eu nunca gostava de ir com ela. No entanto, quando vim para cá, há 18 anos, decidi que ainda não podia aposentar-me, era demasiado nova. Como sempre gostei de moda, decidi começar a comprar roupa em armazéns e alugar um lugar na feira e vender. Posso confessar que me apaixonei”, refere Maria Delfina com um brilho nos olhos.

Apesar de adorar vender em feiras e considerar este negócio “uma grande paixão”, a feirante reconhece que a vida de feirante é uma “vida ingrata e instável”. À semelhança dos outros feirantes, Maria Delfina considera a profissão “muito injusta”, uma vez que têm de se “submeter a frio e chuva” e, muitas vezes, não ganham “para os gastos”.

Também em Leça do Balio a vender moda masculina e feminina Pedro Pinto, de Gondomar, que tem 23 anos e já pertence às feiras desde que se lembra. “As feiras nasceram comigo e eu cresci com elas”, afirma o feirante. Apesar de só estar a exercer esta profissão a tempo inteiro há seis anos, sempre ajudou os pais com o negócio da família. O pai de Pedro, Fernando Pinto, afirma que “futuramente o negócio vai pertencer ao Pedro”. “Eu sempre demostrei aos meus pais que queria ficar com o negócio da família e pertencer diretamente às feiras, mas os meus pais sempre me disseram que primeiro teria que acabar o 12.º ano e depois poderia escolher que rumo queria para a minha vida”, diz Pedro Pinto.

Fernando Pinto e Pedro Pinto, da esquerda para a direita, na Feira de Santana, Leça do Balio. Foto: Ana Rita Graça

Pedro é feirante por opção e afirma que a irmã decidiu “enveredar por outra área e continuar os estudos após a conclusão do ensino obrigatório”. Fernando Pinto, o pai de Pedro, apesar de considerar que o negócio das feiras “está difícil atualmente”, sente-se muito satisfeito por ver o filho “seguir as pisadas do pai”.

Versada na arte da venda ambulante desde tenra idade é também Amália Santos, que encontramos, aos 76 anos, sentada num banco a fazer uma malha. “Nunca questionei sequer que queria ser outra coisa. Sempre soube que as feiras iriam ser o meu futuro”, conta ao JPN. O negócio de Amália Santos, com quem conversámos em Espinho – onde a feira é às segundas – já existe há três gerações e, no que depender da feirante, vai-se perpetuar. “O meu maior sonho é que a minha neta mais velha agarre isto mal eu adoeça e não consiga mais fazer isto. Mas, eu quero ficar aqui até conseguir”, afirma, emocionada, Amália.

Feira de Espinho

Mais de 50% dos feirantes estão na região Norte

Ao nível nacional existem cerca de 25 mil feirantes, números da Direção-Geral de Atividades Económicas (DGAE). O Norte tem cerca de 15 mil feirantes, ou seja, mais de 50% do todo nacional.

Artur Andrade é vice-presidente da Federação Nacional das Associações dos Feirantes (FNAF) e é presidente da Associação dos Feirantes do Distrito do Porto, Douro e Minho. Não é o fundador da associação, mas é o sócio nº17.

Artur Andrade e a esposa Paula na Feira de Santana, Leça do Balio

À luz dos dados que possui, os profissionais da área estão hoje mais envelhecidos: uma boa parte dos feirantes já devia estar a gozar a reforma, enquanto a maioria tem ainda idades compreendidas entre os 40 e os 60 anos. Para além disto, a maioria dos feirantes faz desta a sua ocupação principal – “o que existe é um homem ou uma mulher, dentro do casal, a ter um trabalho a tempo inteiro e quando pode vem dar uma mãozinha”, explica o feirante ao JPN. O nível de formação predominante é o 6º ano e os feirantes fazem de três a cinco feiras por semana.

A Associação dos Feirantes do Distrito do Porto, Douro e Minho tem 19 anos e foi fundada com o objetivo de “proteger os feirantes junto das autarquias e representá-los, fomentar o associativismo”, afirma Artur Andrade. A grande prioridade da associação, na altura em que foi realizada a entrevista, ainda antes do eclodir da pandemia, era combater a poluição e o impacto negativo no ambiente que as feiras deixam no final. Para Artur, “este é um dos entraves à atividade que está a ser trabalhado diariamente”.

Como representante máximo da associação, Artur Andrade considera que as grandes preocupações dos feirantes são hoje o fraco poder económico da atividade, deixada por muitas autarquias ao “abandono”, o que causa desinteresse nos feirantes. Por esta razão, esta atividade tem vindo a ser cada vez mais desacreditada, uma vez que há um maior abandono de lugares hoje em dia do que há 10 anos atrás. Para além disso, “pagam-se taxas altíssimas por feira”. Artur Andrade dá o seu exemplo: na feira de Espinho, paga 93 euros por um espaço de oito metros, mensalmente, para ocupar quatro dias por mês. “Paga-se muito dinheiro às autarquias por um espaço que não tem nada. Nós é que temos de trazer tudo”, acrescenta.

Relativamente ao abandono dos lugares de feira, que é cada vez mais comum, o líder associativo considera que esta situação acontece, porque “talvez os feirantes não tenham rentabilidade para conseguir colmatar a despesa que têm com a atividade”. Se um negócio não é rentável, os feirantes acabam por “acumular prejuízos”. Na perspetiva do vice-presidente da FNAF, não é só necessário que se dê continuidade a uma das mais antigas atividades de comércio do país. É “obrigatório”, afirma.  Para isso, admite também, as feiras têm de se atualizar e adaptar face aos novos desafios que o comércio impõe.

Artigo editado por Filipa Silva

Este artigo foi realizado no âmbito de uma série de reportagens desenvolvidas pela redação do JPN sob o mote “comunidades”, entre fevereiro e março de 2020.