Numa cerimónia de encerramento com apertadas medidas de segurança – desde a medição da temperatura à entrada até à troca dos microfones para quem se pronunciava em palco -, o Festival Internacional de Cinema Curtas Vila do Conde encerrou no domingo, dia 11, com a entrega de prémios nas categorias competitivas. Do palco saíram agradecimentos, promessas, mas também críticas a propósito da proposta de alteração à Lei do Cinema, em discussão no Parlamento português.

A pandemia não permitiu a presença da maioria dos realizadores, sobretudo os estrangeiros. Mas todos estiveram presentes a partir de mensagens gravadas em vídeo.

Todos à exceção de Jafar Panahi, cineasta iraniano. O codiretor do festival Miguel Dias, a apresentar a cerimónia, explicou porquê: “Não é fácil, são conhecidas por todos as acusações do regime iraniano contra Jafar Panahi, que foi mesmo detido em 2010, e que, desde aí, não é formalmente autorizado a filmar, embora o vá fazendo de vez em quando, como foi com o caso deste “Hidden” [nome do filme que passou no Curtas]. Tal como não é fácil para Jafar Panahi filmar, também as suas entrevistas e declarações públicas não são facilitadas”, terminando a pedir mais um aplauso para este autor.

Críticas ao Governo

Miguel Dias aproveitou os primeiros momentos da última sessão do Curtas deste ano para criticar a proposta de lei 44/XIV, do Governo, que vai mexer na lei do Cinema para transpor para a legislação nacional uma norma europeia (a iniciativa deveria ter ido a votos no Parlamento esta terça-feira, mas a votação acabou por ser adiada).

A proposta resultará numa lei nova, mas que “já nasce obsoleta”, afirmou o responsável, acrescentando que a mesma vai acabar por “esvaziar orçamentalmente o Instituto do Cinema e do Audiovisual”. Lembrando que Portugal está abaixo da média europeia no que toca a apoios públicos ao cinema, o codiretor rematou dizendo: “esperamos do Governo uma avaliação séria que salvaguarde o trabalho de profissionais do setor da cultura”.

Quanto ao sucesso desta edição do Curtas, apesar de todas as restrições que tiveram de ser aplicadas, a afluência “não foi nada beliscada”, afirmou Miguel Dias. As limitações trouxeram novidades ao programa do festival, como é o caso do Video on Demand, recurso através do qual se disponibiliza online o acesso a uma parte dos filmes do festival e que irá permanecer ativo até ao final deste mês, e ainda as transmissões em direto de entrevistas e debates com os realizadores e júris. Apesar da diminuição no número de lugares em sala, houve sessões esgotadas, garantiu o responsável.

Também presente no momento solene esteve Elisa Ferraz, presidente da Câmara Municipal de Vila do Conde, que congratulou a organização quanto à “resiliência” em fazer acontecer o festival este ano e em modo presencial: “A organização deste festival levou a muita reflexão para que pudéssemos levar adiante algo que há 28 anos é realizado e que marca tão profundamente o plano cultural da nossa cidade. Era algo que determinantemente queríamos que acontecesse, e assim foi”. 

Melhores filmes estrangeiros

O Grande Prémio, no valor de 2.000 euros, dado ao melhor filme em competição, foi entregue a “O Rio Invisível”, de Pham Ngoc Lân. O cineasta de 34 anos foi também responsável pela produção e argumento. Ao agradecer, disse desejar vir ao festival e a Portugal num futuro próximo.

O filme, de nome original “Giòng Sông Không Nhìn Thay”, é uma ficção que conta duas histórias paralelas, atravessadas por um rio. A curta de 23 minutos faz um olhar crítico sobre o território e explora as relações metafóricas entre tempo, sonho e rio. A decisão do júri foi justificada por esta curta ser “um gesto cinematográfico vibrante, que nos leva como um transe hipnótico através da realidade quotidiana, transmudando-a num sonho de descoberta espiritual”.

A curta-metragem vencedora do Prémio do Público foi “A Anatomia da Tristeza”, de Theodore Ushev. Foi o filme desta competição com a melhor média de votação atribuída pelos espectadores. O nome original desta animação é “Physique de la Tristesse” e tanto o argumento, como a fotografia, a edição e a animação ficaram a cargo de Theodore Ushev, o animador búlgaro de 52 anos.

“A Anatomia da Tristeza” usou uma técnica inovadora. Foto: D.R.

O filme, de 27 minutos, foi baseado no livro “The Physics of Sorrow”, e usou uma técnica nunca empregue no cinema, a pintura encáustica animada. O cineasta exprimiu o seu prazer nesta distinção através de um vídeo, previamente enviado, no qual revelou adorar o festival, e agradeceu ao público: “todo o meu coração está convosco”, nestes tempos difíceis, afirmou.

Um ano de “qualidade nos filmes portugueses a concurso”

Sendo um dos lauréis mais importantes do festival, a competição nacional levou à tela 17 curtas-metragens, “numa edição em que foi unânime o reconhecimento da qualidade dos filmes portugueses a concurso”, referiu o codiretor do festival, Miguel Dias.

A ocupar o primeiro lugar no pódio, com o prémio de Melhor Filme, esteve “Noite Turva”, de Diogo Salgado. Apesar de ser a estreia do realizador no festival, a obra mereceu o elogio do júri que a caracterizou como uma “visão poética que nos faz mergulhar no mundo turvo esculpido por detalhes e profunda essência”.

“Noite Turva” de Diogo Salgado venceu a competição nacional. Foto: D. R.

Sandro Aguilar, com a sua obra Armour, arrecadou o prémio de Melhor Realizador, numa realização vista pelo júri como “exímia”. Um filme-experiência que procurou explorar a potência da paisagem e da forma como ela nos fala do mundo, é a mais recente obra do experiente realizador que, no momento de agradecimentos, os deixou à esposa e aos dois filhos, que ajudaram na realização da obra.

A terminar a secção, a escolha do público caiu sobre “O Nosso Reino”, de Luís Costa, obra baseada no romance homónimo de Valter Hugo Mãe. 

Take One!: barómetro da produção feita nas escolas de cinema

O melhor filme da competição destinada aos filmes de escola foi “I Don’t Like 5PM”, de Francisco Dias, um documentário de 9 minutos, no qual o realizador se ocupou também da produção, da fotografia e da edição. O projeto, desenvolvido na Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, é uma revisitação da história de um primeiro amor, um filme que tenta reconstruir uma relação do passado.

Francisco Dias conquistou a competição Take One! deste ano. Foto: D.R.

Ao anunciar o premiado, o júri justificou a sua escolha: “ficamos surpreendidos pela delicadeza deste filme, pelo olhar original, que não remete a estilos pré-existentes, mas mostra uma linguagem própria, sensorial e promissora”. Ao subir ao palco, Francisco Dias revelou que foi um trabalho “muito moroso”, “mas que trouxe os seus frutos”. No fim, agradeceu ao público “por ter querido fazer parte deste festival”: “que celebremos o cinema!”, atirou.

Dos vídeos musicais às curtas para crianças

A Competição Vídeos Musicais, explicou Miguel Dias, “privilegia as abordagens que fazem do vídeo musical um género mais de experimentação das potencialidades da imagem em movimento, ultrapassando assim a simples condição de veículo promocional para uma canção”.

Tendo isso em conta, “Batida apresenta: Ikoqwe – Vaivai”, de Pedro Coquenão e Manuel Lino, foi o filme vencedor.

Imagem de “Batida apresenta: Ikoqwe – Vaivai”. Foto: D.R.

A curta resultou de um mês em Alojamento Artístico Local na Casa Independente, em Lisboa. Com edição de Manuel Lino, o vídeo de três minutos assume-se como uma proposta provocadora que explora ícones da cultura angolana. O agradecimento por vídeo foi também original, realizado literalmente por uma mão vestida com uma luva.

Por sua vez, a Competição Experimental, dedicada a filmes que se encontram na vanguarda, terminou com “South”, de Morgan Quaintance, como vencedor. O documentário de 28 minutos justapõe imagens analógicas e digitais, intercalando-as ainda com momentos pessoais do autor, para propor uma reflexão sobre o poder da voz individual e coletiva nas sociedades contemporâneas. Quaintance, responsável pela produção, argumento, fotografia, edição e som, estreou-se no Curtas com esta obra.

Na competição Curtinhas, o melhor filme foi “Para: Gerard”, de Taylor Meacham. A curta foi eleita por um grupo de dez crianças, entre os oito e os 12 anos. Com argumento de Meacham, a “curtinha” de 7 minutos quis mostrar que podemos ser o que quisermos, quando quisermos.

Curtinha “Para: Gerard” foi a favorita das crianças. Foto: D.R.

Por fim, mas não menos importante, temos a curta vencedora da My Generation, “Eu, Julia”. Esta secção dedica-se também a públicos mais jovens, com filmes selecionados por alunos de escolas secundárias. De nome original “Jag, Julia”, o filme retrata uma adolescente de 14 anos que testemunha os maus tratos físicos e psicológicos que o pai exerce sobre a mãe dela. A ficção de 15 minutos tem autoria e argumento de Arvin Kananian, que disse estar “incrivelmente honrado” pelo prémio.

“Voltamos ao mês de julho, com ou sem pandemia”

O mote final foi dado por Miguel Dias quanto à próxima edição do festival, tendo a certeza que esta acontecerá, independentemente da situação da pandemia, entre os dias 10 e 18 de julho, isto é, nas datas habituais do certame. 

Para encerrar esta 28.ª edição, o festival contemplou a audiência com a estreia de um episódio da série sobre escritores portugueses “Herdeiros de Saramago”, da autoria de Carlos Vaz Marques. O episódio transmitido foi “especial”, caracterizou Miguel Dias. O protagonista é o escritor Valter Hugo Mãe, figura vinculada à cidade vilacondense, que, juntamente com Graça Castanheira, realizadora, estiveram presentes na cerimónia para conversar abertamente com o público sobre esta série, que estreará em novembro na RTP1.

Apesar do término da edição deste ano, o Curtas estende-se ainda durante mais algumas semanas em vários pontos do país, através de exposições. Quanto à 29.ª edição, as inscrições encontram-se já abertas para os interessados em marcar presença no festival de curtas-metragens vilacondense de 2021.

Artigo editado por Filipa Silva