Ana Deus é a voz dos Três Tristes Tigres, banda portuense que lançou há escassos meses o álbum "Mínima Luz". Mas é muito mais do que isso: uma cantora singular no panorama da música pop portuguesa das últimas décadas, capaz de se desdobrar num sem número de projetos artísticos de relevo. O JPN esteve à conversa com ela antes de mais um Palavra à Mesa, a sessão de leituras de poesia que protagoniza quinzenalmente, às terças-feiras, nos Maus Hábitos.
A carreira de qualquer artista, como tudo o resto na vida, está sujeita às leis da mudança e da transformação – aquilo a que os filósofos chamam dialética. Vejamos o caso de Ana Deus, com 57 anos e um percurso de mais de 30 na música portuguesa, entre bandas e projetos a solo. Para identificar a tese, temos que recuar a 1988.
João Loureiro assiste a uma performance da artista no Aniki Bóbó. No final, convida-a a integrar os Ban, uma das bandas emergentes na cena underground portuense da época. São várias referências históricas logo a começar, mas avancemos. Levaria demasiado tempo a fornecer o mapa desses anos de “desbunda” (a expressão é da própria Ana Deus), em que Portugal tinha acabado de mergulhar depois de entrar na CEE (mais uma referência datada), esses tempos áureos em que a noite da cidade tinha o seu epicentro na Ribeira.
Podem contar-se pelos dedos as semanas que separaram essa atuação-performance seminal, naquele que era então um dos mais míticos espaços noturnos da cidade, da primeira vez que Ana Deus entrou num estúdio da Valentim de Carvalho para gravar um disco. “Surrealizar”, assim se chamava o primeiro que fez com os Ban. “Irreal, Social” ou “Num Mundo Sempre Pop” foram canções com enorme êxito que catapultaram a banda para o sucesso mediático.
Aconteceu tudo demasiado rápido, explica Ana Deus ao JPN, enquanto sorve tranquilamente o seu chá numa das mesas dos Maus Hábitos com vista para a cidade: “Foi precoce e não sabia o suficiente, não tinha prática suficiente, não tinha treino, não tinha muita coisa e foi demasiado, foi avassalador. Havia a exposição e tudo… Não posso dizer que tenha gostado de tudo”, diz.
Não era só a inexperiência e o apelo a uma festa constante, que se confundia em modo loop com o próprio dia a dia da banda. Era também a estaleca que faltava, o “saber usar a voz que se tem”, portanto, “ser profissional e atinar com aquilo que estava a fazer”. “Foi um período do disparate e de uma aprendizagem também pelo disparate”, sintetiza a cantora.
A tese desdobra-se, neste caso, em dois momentos. Este dos Ban, com quem Ana Deus gravou ainda mais dois albúns, porque era o que estava no contrato – “três discos [assinados] com uma editora! Vejam bem como as coisas eram” -, e a fase seguinte, mais significativa, que podemos situar entre 1992 e o início do novo milénio, com os Três Tristes Tigres (TTT).
O embrião da nova banda já estava formado nas colaborações mantidas com Regina Guimarães desde, pelo menos, finais dos anos oitenta. A poeta do Porto escrevia, enquanto Ana Deus fazia as músicas “com dois gravadores de cassetes. Em casa, ou então a tocar dois dedos num teclado. Aí já me empenhei”, admite, “e fui crescendo com os TTT”.
Paula Sousa (ex-teclista dos Repórter Estrábico) juntou-se ao duo para uma primeira formação inteiramente feminina dos TTT. Manteve-se no grupo até ser substituída por Alexandre Soares, com quem a banda ganhou outra dimensão sonora e performativa.
“Partes Sensíveis” (1993), “Guia Espiritual” (1996) e “Comum” (1998), formam um trio dourado da pop portuguesa do fim de século, trazendo reconhecimento ao conjunto e consagrando defintivamente Ana Deus como uma das vozes mais relevantes do panorama musical português da época.
Aos poucos, contudo, a banda adquiriu uma dimensão muito “instrumental e com muito power ao vivo”. “Mais uma vez entrei em crise e achei que não tinha o poder, a pujança suficiente para acompanhar aquilo”, confessa.
Chegamos então à antítese. Pode demorar, mas ela acaba por chegar. Na verdade, a antítese já está latente na própria tese, prestes a irromper como o seu contrário, a sua negação. É a única forma de evoluir: negar o que fizemos anteriormente. Algum tempo depois dos TTT lançarem “Visita de Estudo”, em 2001, uma coletânea com o melhor que a banda tinha feito até à época, Ana Deus entendeu que era momento de parar. “Fiz uma pausa…zinha na coisa”. Foi uma fase importante para perceber “algumas características”. “De repente não há banda, não há nada. Sou só eu. Foi importante essa paragem” para fazer uma retrospetiva e analisar o percurso feito até aí. “Dediquei-me mais a estas coisas simples de poemas, com umas gravações, uma loop-station, e tinha mais tempo para a família”.
Síntese. Os dois momentos anteriores são ultrapassados e ao mesmo tempo preservados, numa nova etapa mais completa do que qualquer uma das anteriores, se tomadas isoladamente. O exterior e o interior harmonizam-se e compatibilizam-se: “Aprendi a adequar as coisas a mim. A fazer as coisas à minha maneira”.
Em 2011, Ana Deus regressa com uma nova banda, os Osso Vaidoso, criada a meias com Alexandre Soares, de que resulta “Animal”, de 2011, e “Miopia”, de 2016. Pelo meio, participa num sem número de projetos artísticos.
Nesta fase, sente-se mais confiante e também mais realizada: “faço coisas sozinha, faço coisas com um, faço coisas com dois, faço coisas com banda. Haja trabalho e eu sinto-me bem e gosto das duas coisas. Gosto muito de fazer sozinha e gosto muito de fazer com banda”. O essencial, sublinha, é “usar as coisas que tem à mão” e conferir-lhes “a sua própria expressão artística”.
Já este ano (depois de um regresso mais que imprevisto aos palcos, em 2017), os TTT acabam mesmo por lançar “Mínima Luz”, o novo albúm de originais, 22 anos depois de Comum. Ana Deus refere ser agora mais fácil ajustar “as coisas ao que eu sou, à minha voz, àquilo de que eu gosto e depois acho que isso ajudou a transportar as coisas, à minha maneira, para os TTT”.
Uma reentré-não-reentré
“A reação ao disco [Mínima Luz] tem sido muito boa”, mas a pandemia obriga a saborear toda esta fase a dois tempos: o primeiro ocorreu no lançamento do disco, previsto precisamente para março e por isso adiado algumas semanas. Acabou por ser feito a 1 de maio, em formato online, sem o habitual concerto e eventos de promoção.
Foi Ana Deus que respondeu ao emails, tratou das encomendas, uma oportunidade também para contactar diretamente com os fãs e receber em primeira mão as reações ao álbum.
O segundo momento seria agora, na reentré de espetáculos, com concertos marcados para a nova temporada, mas infelizmente o vírus está, mais uma vez, a trocar-lhes as voltas: “Esta reentré não foi propriamente uma reentré”, desabafa.
Ainda fizeram a apresentação oficial do disco ao vivo, no Auditório de Espinho – Academia, a 9 de outubro, mas os concertos já programados têm sido adiados ou reagendados para novo horário, para se ajustarem às novas medidas impostas pelo estado de emergência. Para já, vamos poder vê-los ao vivo no Gnration, em Braga, na próxima sexta-feira, dia 20,às 19h00.
Com as apresentações ao vivo a surgirem a conta gotas, verdadeiramente, o ciclo de apresentações ao vivo de “Mínima Luz” só se fará no próximo ano.
A peste que se abateu sobre os artistas
Nesta altura, só existe mesmo essa pedra do vírus no sapato: “Se não fosse esta porcaria [da pandemia] andava feliz. Estou bem mais contente com tudo.”
Bandas com alguma notoriedade, como a sua, ainda foram recebendo adiantamentos das câmaras municipais e mantendo os espectáculos já contratualizados, ainda que com adiamento para 2021. Os artistas com menor capacidade de negociação, contudo, já não têm a mesma sorte: “Quem estava a cantar nos espaços mais pequenos ficou a arder complemente”.
Ana Deus considera que o Estado tem que fazer alguma coisa: “Tem que haver um apoio como há para a agricultura em tempo de calamidade”. O vírus, como o granizo, queimou tudo. “É uma calamidade, tem que haver apoios. Muitos sítios não vão resistir”, vaticina.
Palavra à Mesa apresenta poesia nos Maus Hábitos
Com a quebra abrupta de atividade, a oportunidade de apresentar nos Maus Hábitos o Palavra à Mesa, às terças-feiras, ganhou uma importância reforçada.
“No meio disto tudo, tive alguma sorte, por ter um disco para vender durante a primeira parte [da pandemia]. E depois, na segunda parte, ter tido estas terças-feiras durante o verão todo Se não fosse isso, não estava a fazer nada. Portanto, safaram-me.”
Nas sessões que tem feito nos Maus Hábitos (neste mês de Novembro, a meias com Adolfo Luxúria Canibal) diz versos de grandes poetas nacionais e estrangeiros, clássicos e atuais, desde Antero de Quental a Andreia C. Faria, cujas palavras acompanha “com gravações, com loops, com coisas pré-gravadas. É uma poesia mais dita que cantada”.
A última sessão, a 10 de novembro, contou com a presença de Alexandre Soares nos sintetizadores e guitarra e Pedro Maia no vídeo.
Voltando à dialética: será este o momento mais alto da sua carreira, uma espécie de súmula de todo o seu percurso? Falsa questão… Todas as sínteses são provisórias. Todas elas se transformam em novas teses que deverão por sua vez ser negadas e superadas num processo ininterrupto, num percurso sempre inacabado, como reconhece Ana Deus: “Ficarei muito contente se daqui a dez anos estiver com uma conversa do género: ‘Agora é que é!… Agora é que está demais!’” “Para já a voz ainda não falhou…”. E isso é tudo o que importa.
Artigo editado por Filipa Silva