Uma vida dedicada às artes - fotografia, teatro, cinema, paixões que adquiriu desde cedo e que cultivou sempre. Assim como certos valores. A coragem, por exemplo, que o seu amigo António Variações tanto prezava, e a que ela recorre por estes dias para, aos 65 anos, fazer um 'reset' da sua vida.

Este é um ano especial para Teresa C. Pinto, pelas razões que são óbvias e comuns a todos, mas mais especial para ela por ter finalmente publicado o livro que esteve nas suas cogitações durante trinta anos e que em outubro chegou às bancas com o nome ‘Variações’. Um retrato intimista do cantor de quem Teresa C. Pinto foi agente e fotógrafa.

A obra reúne dezenas de fotografias do músico que criou alguns êxitos seminais da pop portuguesa, como “Perdi a memória” ou “Estou Além”.

Um livro capaz, no entender da Teresa C. Pinto, de devolver a verdadeira face a António Variações: a de um artista que se quis afirmar primeiramente pela excepcionalidade poética e musical, não pela excentricidade da sua figura ou pela heterodoxia das suas opções sexuais.

Acabamos sempre por tratar a diferença a partir de rótulos, sublinha Teresa C. Pinto, sejam estes os mais habituais ou outros novos que se queiram inventar. É a forma que o pensamento convencional encontra para normalizar aquilo que não compreende e que é singular.

Este é o livro que ela imagina que António Variações gostaria de ver publicado. O livro com que talvez pudesse comemorar a condecoração que o Presidente da República lhe decidiu (“Finalmente!”) atribuir, a título póstumo, há apenas escassas semanas.

JPN – Lançou recentemente o livro “António Variações”. Qual é o balanço que faz até agora?

TCP – Bastante bom. As pessoas estão todas interessadas em ver um outro lado do António, mais intimista, algo mais próximo dele, porque a imaginação das pessoas é delirante. Eu acho que é positivíssimo, o António iria amar inspirar tanta gente, porque ele era uma fonte de inspiração, mas temos de falar dele como ele era e eu acho que há muitas versões que não se aproximam daquilo que o António era. 

JPN – Está a referir-se ao filme que foi feito recentemente sobre o António Variações [filme ‘Variações’, de João Maia]?

TCP – Ainda não vi o filme, nem penso vê-lo, porque já vi excertos e acho que não tem nada a ver com o António. Aliás, eu quando li o guião que o João Maia me deu há muitos anos, numa primeira fase do filme, eu disse-lhe logo que não reconhecia o António em nenhuma daquelas páginas do guião. Eu conheci o original e não me apetece ir ver um filme que tem muita pouca coisa dele.

JPN – Nasceu e viveu parte da sua infância em Angola. Que impacto é que isso teve na sua vida?

TCP – Tenho memórias da primeira infância, como é evidente, sobretudo de cheiros e de espaços, mais do que outra coisa. Acho que influenciou de certa maneira a minha vida porque sinto-me angolana. Nunca me encaixei muito bem aqui em Portugal. Mas a minha vida foi feita aqui, portanto, tive de me habituar. Comecei a trabalhar cedo no cinema e depois foi todo um percurso ligado à cultura, cinema, televisão, esta mais através das produtoras. Mas a maior parte do percurso foi no teatro e no cinema.

Capa do livro de Teresa C. Pinto com fotografia da autora.

JPN – Quando é que surge esse seu interesse pela fotografia e pelo cinema?

TCP – Aos 15 anos já namorava com um diretor de fotografia e foi através dele que ganhei essa paixão. É o pai da minha filha, é diretor de fotografia no cinema e, juntos, fomos sócios-fundadores da Cinequanon após o 25 de Abril e a partir daí comecei a dar os meus primeiros passos na fotografia: a revelar, a fazer trabalho de laboratório e de enquadramentos. Foi algo natural, não tive nenhum curso complementar de fotografia, nem nunca frequentei nenhuma escola, mas gostava bastante de fotografar e ainda gosto, mas agora fotografo menos. Como tudo agora é digital e o analógico é bastante caro, perdi o interesse.

JPN – Referiu que fundou a Cinequanon após o 25 de Abril. Pode-nos falar um pouco mais dessa experiência?

TCP – Eu era muito nova, entrei como secretária, mas o meu trabalho era básico. Contactei com todos os realizadores ótimos deste país como o António de Macedo, Sá Caetano, Fonseca e Costa, quase todos os que estavam em alta na altura. Mas eu e o meu marido de então estávamos ambos a trabalhar em cinema e percebemos que não podíamos viver os dois do mesmo, porque trabalhava-se bastante mal em cinema. Os subsídios saíam uma vez por ano, aliás, isso ainda hoje é assim (risos) e na mesma casa dois ordenados através do cinema não dava. Então, acabei por fazer outras coisas como [trabalhar para uma] companhia de seguros, estive no Estado e em conservatórios. Tudo isto me deu alguma experiência para depois abraçar o resto.

Ainda não vi o filme [‘Variações’, de João Maia] nem penso vê-lo porque já vi excertos e acho que não tem nada a ver com o António.

JPN – Uma dos projetos em que participou foi o Grupo de Teatro Terapêutico do Hospital do Júlio de Matos. Quão importante foi essa atividade para si?

TCP – Foi muito importante essa experiência para mim, porque eu nunca tinha estado numa situação de apoio. Foi um desafio tirar o espetáculo dentro do Hospital e levá-lo para as salas de teatro. O João Silva, que infelizmente já faleceu há dois ou três anos, foi o encenador e o mentor do projeto durante quase 40 anos, e era interessante ver que todos os atores que lá estavam eram de consulta externa, não estavam no hospital. Mas tinham várias patologias, sobretudo esquizofrenia e doença bipolar. Mas isso não os impedia de decorar, aliás, eles tinham uma capacidade de memória que me deixava espantada, porque eles decoravam aqueles textos todos sem o mínimo problema. Também tivemos oportunidade de ir ao Teatro Nacional e foi muito bom, porque eles ficavam muito entusiasmados. Tínhamos um ótimo guarda-roupa, uma figurinista fantástica. Mas como aquilo pertencia ao Ministério da Saúde, deixaram de ter verba para manter um grupo tão grande e o projeto não continuou. 

JPN – Como é que conheceu o António Variações?

TCP – Toda a gente me pergunta o mesmo e eu respondo sempre o mesmo (risos). Foi um acaso, porque eu já o conhecia de vista, mas nunca tinha falado com ele. Vi-o diversas vezes nos bares, à noite, quando saía no fim de semana, via-o perto da casa da minha mãe e realmente aquilo era uma figura. Ele estava na montra que dava para o centro comercial, aquilo estava dividido a meio com os espelhos e havia bancadas lá atrás e à frente dos espelhos. E o António estava sempre nas bancadas da frente e eu via os miúdos em cima do vidro, a comer bolos e a deixarem as dedadas que deixavam as empregadas danadas, mas tudo ali a olhar para o António. De vez em quando, ele metia-se com eles e ria-se. Mas, claro, eu nunca tinha ido falar com ele, nem nunca tinha cortado o cabelo com ele, porque não havia verba para isso na altura. Aquele cabeleireiro era muito caro. Depois, ele entrou uma vez num centro comercial onde eu estava a trabalhar e aquilo estava deserto, porque toda a gente tinha ido almoçar a outro sítio. Foi aí que começámos a conversar e a ouvir música. Também foi aí que ele me contou que ia abrir um cabeleireiro, disse-lhe também que já o conhecia por o ter visto em alguns sítios e depois ele convidou-me para ir ao cabeleireiro dele quando estivesse aberto e eu aceitei.

JPN – Há uma história engraçada que conta no livro, quando diz que o António Variações, através desse corte de cabelo, soube ler e tornar visível a mudança de personalidade que estava a viver nesse período.

TCP – Chamavam-me Teresa Punk, mas o nome não foi uma opção minha (risos). Na altura do meu primeiro casamento, era muito de esquerda. Nós tínhamos uma relação com os partidos de esquerda com quem me identificava e continuo a identificar mais. Naquela altura, eu usava o cabelo muito comprido…

JPN – Como é que o António a abordou para trabalhar com ele?

TCP – O António teve uma subida meteórica na carreira dele, desde que foi à televisão. Portanto, não houve espaço nem tempo para coisa nenhuma, porque aquilo eram umas coisas atrás das outras. Ele tinha uma pessoa que apenas vendia os espetáculos dele, não o agenciava propriamente. Além disso, não havia concertos como existem hoje, só concertos de estrangeiros e, no Coliseu, eram os brasileiros que atuavam. Quem comprava os espetáculos eram, sobretudo, as festas dos imigrantes que vinham no verão e que em cada terra faziam sempre uma festa enorme. Quando o agente ia às terras vender as bebidas, porque ele era comerciante e distribuidor de bebidas, vendia o António também. Durante muito tempo essa estratégia funcionou, mas quando começou a aumentar o volume, tinha de ser outra pessoa, porque havia idas à televisão, a casas de espetáculos noturnos e havia a necessidade de existir outra distribuição dos espetáculos. Ele achava que eu era muito organizada, que tinha tudo muito direitinho e precisava de uma pessoa para tomar conta disso. Basicamente precisava de uma pessoa que tivesse tempo livre e eu ia o dia todo para o cabeleireiro, atender telefones, fazia diversas tarefas. Naquela altura não havia telemóveis nem nada disso, tinha de ser em telefone fixo (risos). Estando eu no cabeleireiro muitas vezes, eu podia sempre ver com ele as datas disponíveis e o que é que ele achava. Foi a maneira encontrada para gerir enquanto ele cortava o cabelo. Foi tudo muito suave, sem nada combinado, tudo espontâneo, assim como as fotografias. O António convidou-me para trabalhar com ele e larguei o emprego que tinha. Estava agarrada a uma secretária das 8 às 18 e não hesitei.

JPN – Entre os vários momentos altos da carreira do António Variações, existe a participação dele n’O Passeio dos Alegres. Portugal nessa altura estava preparado para o António Variações?

TCP – Foi um choque (risos). Eu acho que no dia seguinte, na segunda-feira, em tudo o que era cafés, restaurantes, locais públicos, se falava no António, uns bem, outros mal, mas de certeza que ninguém deixou de falar nele. Ele nunca viveu na indiferença, ele foi sempre falado, o que é muito bom. Mas chocou muita gente, havia muita gente que não aceitou bem, mas havia outras tantas que achavam que aquilo era diferente e ia fazer furor. Não era fácil ouvir aquilo pela primeira vez, porque era uma música estranha na altura. Também só havia rock e estávamos todos no Chico Fininho. Mas cada vez mais apareceu música alternativa, com sonoridades diferentes. Mas o António teve muito trabalho com o Carlos Maria Trindade, os Heróis do Mar, influências que puxaram para situações menos populares e mais alternativas. Naquela altura não se falava em música alternativa, mas eu já a considerava assim. Aliás, a única palavra que me ocorre quando me falam da música dele é ‘alternativa’.

JPN – Dado que já referiu a importância da barbearia, este espaço era um local de convívio e de reunião entre gente mais conhecida? Sobretudo na altura em que o António ganha outro tipo de notoriedade.

TCP – Para já, a barbearia era o único sítio onde existia um manicure. O Pedro Lata, que já na altura era uma figura fantástica, era o manicure da barbearia, dado que toda a gente tinha mulheres e naquele espaço era o Pedro. Depois, era um ponto onde tanto ia a senhora da ‘alta’ como ia a senhora que morava no prédio ao lado, porque o António não fazia essa distinção na barbearia dele. Passou tanto tempo no meio de cabeleireiros que eram todos chiques, que quando se mudou para ali atendia todo o tipo de pessoas. Era o ponto de encontro de muita gente e não era o único sítio, mas muita gente ia ali para se encontrar, por exemplo, o pessoal do Bairro Alto. Além disso, as pessoas iam lá cortar e depois passavam a palavra. Era um espaço mágico. Todo o tempo que se estava à espera não era nada maçador, porque tinha tanto para onde olhar.

[Quando o António me cortou o cabelo] mudou-me radicalmente a imagem e isso foi muito importante para mim, para dar um novo pontapé de saída e assumir uma nova identidade.

Teresa C. Pinto com António Variações.  Foto: D.R.

JPN – Qual era a característica que mais apreciava no António Variações?

TCP – Acho que a honestidade. Era uma pessoa extremamente honesta, extremamente reto. Sensível, eu acho que ele era uma pessoa com quem dava gosto conviver, porque ainda por cima era afável, tinha uma presença magnetizante, e, ao mesmo tempo, não era como algumas pessoas da época que eram um bocado arrogantes. O António era o oposto disso, parava na rua, falava com os pescadores, falava com as mulheres na Feira da Ladra.

JPN – Passando para a fase mais complicada da convivência com António Variações que foi quando ele adoeceu.

TCP – Por acaso é uma coisa da qual não gosto muito de falar. Apesar de não ser um fantasma na minha vida, foi uma fase tão esgotante naquela altura pós-morte dele. Eu sempre quis celebrar a vida que ele teve, porque falou-se tanto da morte e do motivo da morte e do estigma a ela ligado, que fez com que durante anos não desse entrevistas por causa disso. Porque as pessoas perguntavam sempre a mesma coisa e eu não queria falar disso. Aquilo foi uma chatice na vida do António, foi um corte terrível nos projetos dele e foi uma coisa que podia ter acontecido a qualquer um de nós, mas que caiu abruptamente na vida dele e para mim isso foi o pior de tudo. O único problema que ele tinha era que cortava a vida a meio e ele ainda não tinha atingido aquilo por que sempre lutou. Aquele longo percurso que ele conta que fez, em que veio da terra com 12 anos, em que teve de estudar à noite, não é para toda a gente. Ele lutou por todos os modos, sobretudo instruindo-se, porque não é um analfabeto que escreve aquelas letras. Viajou imenso, aprendeu línguas, aprendeu com as viagens que fez e foi o percurso que ele próprio cavou. E finalmente quando o conheci, quando ele estava bem instalado na vida, trabalhava por conta própria, tinha o próprio negócio, casa e estava a fazer aquilo que finalmente queria, que era cantar, estava no ponto em que iria começar uma carreira… O facto do António ter morrido foi uma partida de muito mau gosto do destino. Claro que ele se pôs a jeito, mas nós todos estamos a jeito de qualquer coisa como com a Covid-19.

JPN – A doença já era conhecida?

TCP – Sim claro, ele já tinha ouvido falar dela lá fora. Ele não estava completamente desinformado, mais desinformada estava eu. Eu acho que as pessoas naquela altura, sobretudo em países pequenos como o nosso, não estavam muito bem informadas. Nunca se conseguiu descobrir bem o que era. Mas a verdade é que a coisa foi maçadora. Porque agora que ele estava num percurso tão bom da vida, onde tinha conseguido atingir tudo o que queria, veio este golpe do destino com que não se estava a contar. Mas a verdade é que ele não tem prazo de validade e continua a agradar a montes de gente e as pessoas começam cada vez mais a perceber o poeta que está por detrás das letras. A vida que está atrás destas letras, as próprias músicas feitas por ele porque ele não conhecia nem uma nota. Ele era um ser de uma sabedoria incrível e para mim sempre foi um exemplo a seguir. Toda a gente que conviveu com ele aprendeu.

O facto do António ter morrido foi uma partida de muito mau gosto do destino.

JPN – Quais foram as lições que, fruto da convivência com o António, levou para a sua vida?

TCP – Ele ensinou-me a confiar em mim própria e a gostar de mim, pois, naquela idade, ninguém gosta de si próprio. A ter coragem de enfrentar os meus medos, lutar por aquilo que eu queria e o mais importante é que sempre me enalteceu as qualidades e nunca me criticou os defeitos e isso é respeitável. De vez em quando dava conselhos, mas de forma muito subtil. Era quase como o ensinamento de um irmão mais velho.

JPN – A certa altura no seu livro, diz que “Portugal é um país onde era e é muito difícil ser-se diferente”. Como é que vê a evolução de Portugal nesse aspeto?

TCP – O meu livro não saiu na altura. Não foi por acaso. Foi porque também eu precisava que as pessoas entendessem. Basta ver a reação das pessoas depois do primeiro programa de televisão. Depois ele morreu, só se falava na doença, e eu não queria mais falar da doença, porque já estava cansada desse assunto. Era difícil meter as pessoas a pensar fora da caixa, ou seja, ninguém estava a aceitar o António como ele era.

Tenho dado muitas entrevistas para a faculdade sobre o António e tenho a certeza de que ele ia adorar isso. E o prémio que ele recebeu do Presidente da República veio colmatar a sua carreira e se ele fosse vivo ia ficar nas nuvens. Portanto, agora quero que o António seja para sempre uma inspiração, porque há cada vez menos pessoas que conviveram com ele e tive de aproveitar a oportunidade para contar quem ele realmente era.

JPN – A publicação do livro acabou por ser um processo moroso.

TCP – Pois, não foi fácil. Andei a fugir de uns e a bater à porta de outros. Mas ninguém me dava as condições que eu queria para lançar o livro, no formato que eu queria. Queriam todos um formato mais comercial, o que se percebe – querem vender. E eu queria muito aquele formato de LP. Achava que já que ele não tinha estado vivo para promover o disco dele, então que fosse nesse formato, porque era como se ele estivesse cá, a promover-se a si próprio, no fundo. Com a sua música, as suas fotos e o seu carisma, a sua personalidade, tudo. Achei que fazia sentido esse formato. No entanto, não foi fácil. Mas pronto, quando fui a Braga falei com o Theatro Circo. O Theatro Circo, um dos mecenas do livro, ficou entusiasmadíssimo, sobretudo porque em 2027 eles vão ser cidade da cultura [o município apresentou em novembro a candidatura] e gostaram muito das fotos que eu levei para mostrar. O mesmo aconteceu com o Engenheiro José Teixeira da DST Grupo. Assim que lhe enviámos as fotos, ele disse logo: “É já! Eu patrocino-lhe isso”. E pronto. Foi assim que saiu. Nesta altura, um ano depois daquilo que eu queria, porque entretanto também veio a Covid e já foi bastante aborrecido não ter feito o lançamento ao vivo e a cores, porque eu acho que as pessoas gostam muito mais, mas pronto, teve que ser assim. Fez-se em streaming, um lançamento online. Mas é uma pena, porque uma das coisas simpáticas da feira do livro é essa. Uma pessoa pode ir lá, mostrar o livro e falar sobre o livro. Assinar livros. E torna a relação mais pessoal entre os autores e as pessoas que compram. Assim, estou um bocado sem saber a reação das pessoas ao livro, porque não há maneira de ver, de sentir isso. Só vejo números e os números não são o que eu quero ver. Falta-me o contacto, ouvir a opinião das pessoas, o que elas acharam. Se estão a gostar, se não estão a gostar. O que elas têm a dizer do António quando veem este livro. Isso é que me interessa. E isso eu não tenho tido. É difícil… Estou sempre à espera que desse lado alguém me diga alguma coisa também do que é que achou.

Teresa Couto Pinto. Foto: João Silveira Ramos

JPN – No seu livro não existem muitas fotos isoladas. Há sobretudo séries, conjuntos. Como é que fez a escolha das fotografias e a arrumação final?

TCP – Eu tinha perto de trezentas fotografias, há muitas que não estão no livro ainda. Fazem parte de outras séries. Não quis também ser exaustiva. Mas eu tinha todas aquelas fotos dos últimos dois anos e meio. Claro que eu sei minimamente quando é que foram tiradas, mas isso para quem lê o livro não tinha sentido nenhum. Tinha que ser uma ordem temática que desse também para eu colocar as histórias de cada uma daquelas sessões. E depois lembrei-me: como tem o formato de LP, porque não pôr títulos como as canções, na contracapa? Porque, por exemplo, aquelas fotografias do início têm a ver com o encerramento do livro. As fotografias em que ele está com as lamas foram estudos feitos para o Dar&Receber que aparece no final do livro, aquele que foi realmente o último trabalho fotográfico profissional que ele fez para a capa desse disco, já com um fotógrafo profissional que era o Rui Cunha. Foram fotografadas com Hasselblad e estas minhas são em 35mm. O meu trabalho foi um making of daquilo. Agora é evidente que as fotografias que eu tirei têm todas qualidade fotográfica. Pelo menos eu assim considero. Eu tinha uma câmara só com uma objetiva de 50mm. Era uma Olympus OM-1. Eu não tinha mais nenhuma objetiva. Não tinha material de iluminação. Não tinha nada. Era a máquina com que eu andava a tiracolo e mais nada. E, portanto, eu tinha que aproveitar as luzes das janelas, o espaço exíguo que era a casa do António, que era uma casa mínima, que tinha umas assoalhadas pequeninas. E cheias de tralha, portanto a casa era um mundo de objetos. Nós circulávamos no meio dos objetos com medo de deixar cair alguma coisa. E, no entanto, tinha de tirar aquelas fotos nesse espaço, com aquela objetiva. Recorri muitas vezes aos espelhos para aumentar a luz e para aumentar a profundidade de campo que eu não tinha. Isso resultou de alguma maneira, porque também não havia outro remédio. Tinha de ser assim ou então fazer em exteriores, porque a casa era mesmo exígua. Eu acho que resultou bem, mas sei que em muitas delas o foco não está perfeito, porque era quase impossível a leitura, mas eu acho que isso foi interessante porque contribuiu um bocado para a intimidade dessas fotos. Não há ali uma trabalho de estúdio, mas acabou por sair um conjunto de fotografias que depois também ajudou a impulsionar a obra do António e a figura dele. Sinto-me lisonjeada que tenham sido na maior parte as minhas fotografias a fazê-lo.

JPN – Ainda continua a fotografar?

TCP – Muito pouco. Agora é tudo digital e é mais fácil: mete no computador, não gosta, vai para o lixo. O que eu gosto mesmo é a parte de revelar, de fazer a fotografia. E isso agora é quase impossível. É muito caro, e quando uma pessoa não tem quem pague essas coisas, porque não faz profissionalmente, tudo fica mais complicado. E depois uma pessoa anda atrás da película a preto-e-branco e já não há. Eu tenho um fascínio pelas polaroides, mas também acabaram. Ainda fiz umas coisas giras com polaroides, mas já mais recentes, mas depois as polaroides desapareceram, desapareceu o rolo para a polaroide, agora aparecem aquelas polaróides xpto, mas que são fotografias mínimas, não dão gozo, portanto acho que a fotografia deixou de ter algum interesse para mim por causa disso. Não é a minha profissão. Agora tiro fotografias é mais à família, aos exteriores, às paisagens, aos legumes, gosto de fotografar legumes (risos). As pessoas também, de vez em quando, mas aquela imagem que se tinha com o retrato, da fotografia que se apanhava na rua, isso já não faço, é muito difícil. Gosto da fotografia a preto e branco e isso já é um bocado complicado.

O António Variações é um ícone que atravessa várias gerações e ainda vai atravessar muitas mais.

JPN – O que é que sentiu com a atribuição a título póstumo de uma condecoração ao António Variações, pelo Presidente da República?

TCP – Para já, fiquei espantadíssima, porque só soube na véspera. Li uma coisa a dizer que a Alice Vieira, o Jorge Palma (que também é muito meu amigo, eu gosto muito dele) e o António iam ser condecorados. Eu pensei: ‘Finalmente!’. Já não era sem tempo (risos). É merecidíssimo. Ele já influenciou três gerações. Parece que não, mas é verdade. Não há ninguém que não cante o ‘É p’ra Amanhã’, não há ninguém que não cante ‘O corpo é que paga’, viraram frases-chavão na vida das pessoas e isso incentiva gerações futuras também a perceberem. O António Variações é um ícone que atravessa várias gerações e ainda vai atravessar muitas mais. Já não estarei cá para ver, se calhar. Daqui a trinta anos ou mais (risos). Bem, se for como a minha mãe que morreu com 104… Se calhar estarei (risos). Mas já não devo estar.

JPN – Tinha falado também no orgulho que o António sentiria ao ser reconhecido desta forma e ver que o seu legado também continuou. Ele teria feito 76 anos a 3 de dezembro último. Consegue imaginar o António Variações com esta idade?

TCP – Não consigo, porque ficou-me aquela imagem dele. Eu vejo sempre o António como ele era. Não consigo imaginá-lo sequer de barba branca ou pintadérrima, porque ele não ia deixá-la ficar branca (risos). Não sei, não consigo imaginá-lo. É como a Marylin Monroe. Não consigo imaginá-la velha. Não consigo pôr o James Dean de barba e careca. Não consigo. É difícil, não é? Acho eu. Mas claro que eu adorava conhecê-lo quando ele tivesse setenta e tal anos, é evidente. Seriamos amigos, com certeza. Estaríamos os dois mais velhotes (risos), e se calhar a fazer muitos jantarinhos em casa. Agora não, com a Covid, mas ia ver os meus filhos já grandes e isso era giro. Ele conheceu-os pequeninos. Bem, a minha filha já tinha oito, mas era miúda ainda.

JPN – E relativamente a si, aos seus projetos atuais. O que está a fazer, para além do lançamento do livro?

TCP – Estou a fazer um reset na minha vida (risos). É verdade, mesmo. Passei os últimos doze anos a tomar conta da minha mãe e este último ano ela já estava acamada. Não me arrependo nada, porque não suporto esta ideia dos lares e das pessoas metidas em lares. E confinadas em espaços, não consigo. Então, ela veio viver comigo. Estive sempre com ela, portanto estes últimos doze anos eu não tive atividade profissional. Mas tive ao mesmo tempo de outra forma: era uma cuidadora informal, daquelas que deviam ser subsidiadas e não são. Fui uma cuidadora informal durante anos. Deixei a minha vida praticamente de lado. E hoje em dia já é difícil arranjar trabalho no meio da televisão, do teatro. Estão a sair carradas e carradas de jovens a precisar de trabalho, não é? Faço de vez em quando projetos meus. Tenho um projeto grande que gostaria de realizar, mas só quando o tempo o permitir. Não é agora. Não há verbas para isso. O país está em baixa.

JPN – Qual é esse projeto?

TCP – Não vou dizer ainda. Não tem nada a ver com isto. Tem a ver com outro lado lúdico mais interessante. Portanto, não sei ainda. Esta Covid também não deixa as pessoas terem uma visão mais alargada da situação. É complicado. Como a minha filha diz: devias ser uma influencer (risos). Ter um blogue. Sei lá, vamos ver. Dar tempo ao tempo. Alguma coisa há-de surgir. Eu parada não estou, mas que realmente é complicado aos 65 anos fazer um reset à vida, é. Não é fácil num país como o nosso. Mas vamos ver, isto também não está fácil para ninguém, portanto há-de haver uma reviravolta qualquer que nós todos vamos aproveitar e se tudo correr bem havemos de continuar em frente. Como o António diria: temos que continuar a olhar para a frente. Para a frente é que é o caminho. Ele fez isso, sempre.

António Variações: a tesoura quando aberta representa um A e um V. Foto. Teresa C. Pinto Foto: Teresa C. Pinto

JPN – Que legado nos deixa o António Variações?

TCP – Ele estará cá para nos inspirar por muitos mais anos. Havemos de ir todos e ele fica cá. (risos) Inspirando as gerações vindoiras. De mim já ninguém vai falar, mas dele espero bem que se continue a falar pela vida fora. Ele merece. Era uma pessoa muito bonita. E eu todos os dias penso nele. É incrível. Nele e não só, mas todos os dias penso no António. Tem-me acompanhado sempre a vida toda. Todos os dias acordo de manhã e penso nos meus amigos. Depois tenho o retrato dele em casa. Portanto, é natural que olhe para ele, como olho para outros que já foram. Ou outros que ainda estão, mas que moram longe. Tenho esse contacto com todos eles, sempre visual e sempre em pensamento. O António é um deles. Recuso-me a esquecê-lo. É impossível, mesmo.

Todos os dias penso no António. Tem-me acompanhado sempre a vida toda. Recuso-me a esquecê-lo.

JPN – O livro que lançou também é uma forma de preservar a sua memória numa plano diferenciado?

TCP – Pode ser que o lançamento do livro abra a vontade das pessoas fazerem outras coisas e outros projetos. Vamos ver. Eu gostava. É sempre um bocadinho ambíguo saber o que se vai passar. Para já ter a noção do que é que este livro tocou nas pessoas. Isso é que eu gostava. Ter essa visão. Pelo que tenho ouvido de amigos comuns, as pessoas que estiveram nos anos oitenta connosco reconhecem o António no livro. Já os outros, os que estavam do lado de fora do bairro, o comum dos portugueses, os portugueses que hoje olham para o António com outra cara, com outra maneira de pensar, desses é que eu gostava de saber a opinião. De vocês, por exemplo (risos). Que são outra geração. Isso para mim é que é importante. Saber aquilo que ele influenciou e de que modo é que isso poderá ser fonte inspiradora para outros trabalhos que venham a ser feitos. Eu francamente tenho visto alguns de que não gosto. Também tenho visto outros de que gosto muito. Portanto é natural, há sempre coisas boas e más que vêm atrás das pessoas e dos ícones. Isso faz parte também da vida, faz parte das experiências, de arriscar e fazer coisas novas e depois podem ser ou não bem vistas, mas a crítica está aí para isso. Todos nós podemos ser criticados (risos). É uma parte importante, aceitar as críticas. Por isso é que eu gosto de ouvir a opinião dos outros, porque eu não consigo ver esse lado. Eu só vejo o meu, que é tangível para mim. Um lado afetivo.

Artigo editado por Filipa Silva

Este trabalho foi originalmente realizado para o jornal Línha Contínua no âmbito da disciplina de AIJ/Online e Imprensa – 3.º ano