“Portugal vive hoje o momento mais difícil da pandemia”. A frase do primeiro-ministro António Costa foi proferida há uma semana, mas mantém íntegra a validade. Portugal regista valores recorde a cada dia que passa e é hoje um dos países em pior situação no mundo, em número de casos e de óbitos resultantes da pandemia da COVID-19.

A Direção-Geral da Saúde tem registado, ao longo dos últimos dias, números recorde da pandemia. A barreira dos 14 mil infetados foi ultrapassada esta quarta-feira e esta quinta-feira registaram-se 221 mortes – o número mais alto desde a chegada da COVID-19 a Portugal.

Hoje, 21 de janeiro, é o quarto dia consecutivo em que se regista um novo máximo de vítimas mortais em 24 horas. A média diária de vítimas mortais é de 154 pessoas nos últimos 15 dias.

Desde o início de 2021, Portugal registou 2.714 mortes e 174.520 novos casos de infeção. Ou seja, perto de um terço do total de mortes (285) e dos casos detetados (29%) desde o início da pandemia aconteceram nos últimos 20 dias.

Há, esta quinta-feira, 5.630 pessoas internadas, mais 137 do que no dia anterior. O total de hospitalizações é mais uma vez um máximo desde o início da pandemia, sendo que este indicador aumenta consecutivamente há 20 dias. Em cuidados intensivos, os números de hoje indicam que 701 doentes COVID estão internados nestas unidades.

O que é que falhou no combate à pandemia que proporcionou a chegada desta terceira vaga? A comunicação das autoridades tem sido adequada? As soluções apresentadas pelo Governo são corretas?

O JPN falou com vários especialistas da área da Saúde para tentar obter respostas a estas e outras questões.

Alívio no Natal pode ter sido erro, mas já havia outros problemas

Ao contrário de países como Alemanha ou Reino Unido, que aumentaram as restrições, Portugal aliviou as medidas de combate à pandemia durante a quadra natalícia. O aumento exponencial de casos começou nas semanas iniciais de janeiro, logo a seguir à época festiva. Terá sido o relaxamento no Natal um erro?

Para Gustavo Carona, médico intensivista, a resposta é afirmativa. O alívio das restrições passou uma mensagem que “permitiu encontrar exceções à regra”, o que acabou por ser “errada do ponto de vista do exemplo”. “Foi quase como se o Natal fosse um momento de imunidade”, considerou em entrevista ao JPN. Para o médico, o período natalício devia ter sido “um momento mais rigoroso em termos de regras”.

Ricardo Mexia concorda com esta visão. O presidente da Associação Nacional de Médios de Saúde Pública aponta para a probabilidade das infeções que se registam atualmente terem “origem nos contactos da altura do Natal”. O aumento exponencial acabou por ser “fruto do alívio [das restrições] e da maneira como foi implementado e comunicado”, adverte.

Constantino Sakellarides, antigo Diretor-Geral da Saúde e professor jubilado da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), considera, por sua parte, que não se deve limitar a análise ao período das festividades. “É importante saber de que forma chegámos, em temos da epidemiologia da pandemia, à primeira quinzena de dezembro”, afirma. E a resposta? “Chegamos em má forma”.

O professor realça a “incidência relativamente alta, sem tendência para descer” da pandemia nessa fase e a falta de “capacidade de identificar, testar e isolar os [contactos] de alto risco e, portanto, já incapaz de controlar a transmissão”. Ou seja, Portugal já revelava sinais preocupantes antes do período natalício.

Luís Saboga Nunes, professor na ENSP, complementa que “a chegada do frio e a redução da mobilidade em espaços abertos e do exercício físico” foram fatores decisivos. Acabou por ser “um contexto favorável à disseminação da pandemia”, considera também ao JPN.

No entanto, António Ferreira, médico intensivista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), afirma que não existe “nenhuma evidência científica” que ligue o aumento dos casos ao Natal. O R(t) já estava em crescimento nos dias anteriores à quadra festiva, à semelhança de outros países europeus que tinham implementado medidas mais restritivas.

Diogo Urjais aponta que a explicação para a terceira vaga pode estar num estudo à prevalência das novas variantes da COVID-19. O médico acredita que a predominância de uma variante mais infeciosa “é uma hipótese muito séria” na busca de razões para o aumento de casos no país.

Já depois da conversa do JPN com Diogo Urjais, foi divulgada uma estimativa que aponta que, atualmente, a variante do Reino Unido tem uma prevalência de 13% em Portugal. O Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (Insa) estima que, desde o início de dezembro, tenham sido registados, a circular em Portugal, cerca de 30 mil casos da variante, que pode tornar-se dominante.

A comunicação não está adaptada à “fadiga” dos portugueses

É unânime entre os especialistas ouvidos pelo JPN. Os portugueses sentem uma “fadiga pandémica”, como explica Constantino Sakellarides. “Tem-se observado em Portugal e noutros países que as populações tendem a restringir menos as suas atividades em relação ao primeiro confinamento”, denota.

A “maior confiança sobre o conhecimento do que fazer para impedir o contágio” é outro fator que pode levar a algum facilitismo por parte da população. Para o antigo Diretor-Geral da Saúde, a comunicação das autoridades “deve levar em conta” esta fadiga.

Para Gustavo Carona, esse não tem sido o caso. “A opinião pública está intoxicada com opiniões relativistas e facilitistas”, afirma. O médico intensivista aponta que as pessoas recebem “muitas mensagens contraditórias” e focadas nas exceções. Além disso, pede que haja uma comunicação que seja feita à medidas “das diferentes franjas da sociedade”, ou seja, adaptada a “jovens, idosos, pessoas com mais ou menos literacia”.

Ricardo Mexia também sente que a fadiga “tem um papel que não podemos ignorar”. E considera, igualmente, que tem havido erros de comunicação na forma como a situação pandémica tem sido apresentada. “As pessoas têm de perceber o que está em causa e não o estão a conseguir”, diz o presidente da Associação de Médicos de Saúde Pública.

“O que tem sido dito e feito é uma mensagem contrária àquilo que tinha de ser propagado”, analisa António Ferreira. O professor da FMUP aponta para as mensagens erradas de recomendar “várias ceias de Natal com poucas pessoas” – exemplo dado pelo Presidente da República numa entrevista à TVI, mais tarde criticado e corrigido – ou a má organização das mesas de voto “para compensar e evitar longas filas de espera”, que vieram a resultar nisso mesmo.

Luís Saboga Nunes também refere a comunicação “pouco consistente” e o desgaste das pessoas face à mesma. O professor da ENSP pensa que há um foco excessivo “na doença, na má notícia” e falta uma comunicação “eficaz do ponto de vista da promoção da saúde”.  “Milhões de portugueses não estão a receber as mensagens de promoção de saúde para que possam, se confrontados com o vírus, lidar com ele de forma saudável”, refere.

“Inaceitável” a falta de testes rápidos nos lares

O presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública aponta que um nível de positividade de testes próximo de 20% “não é seguramente normal”. O aumento do número de casos positivos “gera preocupação” e remete para outra questão: É preciso aumentar a capacidade de testagem?

Constantino Sakellarides indica que a testagem não pode ser vista à margem de outros aspetos “do controlo da transmissão a cargo da rede de Saúde Pública”. As altas incidências já observadas na segunda vaga, mostraram que os recursos “não foram suficientes” para haver esse controlo. A conclusão do antigo Diretor-Geral da Saúde é que “a capacidade daquela rede [Saúde Pública] é claramente insuficiente”.

António Ferreira afirma que houve “a falência completa da vigilância epidemiológica, da monitorização epidemiológica e do controlo epidemiológico.” O professor da FMUP reforça a importância de “testar sistematicamente, principalmente nos grupos de risco”, algo que a seu ver tem falhado.

É “inaceitável” que os lares não tivessem o plano de testes rápidos, a “única maneira de detetar precocemente e abortar uma cadeia de transmissão”, diz António Ferreira. Já o plano de testagem rápida nas escolas “vem com três meses de atraso” para o professor. “E numa pandemia, três meses é uma eternidade”, realça.

Luís Saboga Nunes acredita que, se a testagem for aumentada, “certamente vamos encontrar muitos mais casos”. Para o professor da ENSP, a chave não está na capacidade de testagem, mas sim “na monitorização do estilo de vida dos portugueses, não na proibição das suas atividades”.

Diogo Urjais estabelece uma relação clara entre o número de testes e o combate à pandemia: “Quantos mais testes fizermos, melhor. Quanto maior for a capacidade, melhor sabemos identificar o vírus e onde está a ser contagioso”.

E como podemos combater esta terceira vaga?

Esta quinta-feira, o Governo decretou a suspensão do ano letivo durante 15 dias. Os especialistas, ouvidos pelo JPN antes desta decisão ser conhecida, dividiram-se.

Por um lado, Gustavo Carona defende o fecho das escolas, apesar de “não descurar as dificuldades que isso provoca na educação”. Não obstante, o médico intensivista considera “demagógico dizer que as crianças e jovens não são uma das maiores fontes de contactos e cadeias de contágio”.

Ricardo Mexia também percebe a importância de uma interrupção pedagógica, mas apenas falou “dos anos mais avançados, que têm menos prejuízo e mais autonomia”. Independentemente da decisão, “o problema das escolas é toda a mobilização à volta das escolas”, explica o presidente da Asssociação Nacional de Médicos de Saúde Pública.

António Ferreira defende que fechar as escolas era “um erro de caráter social e um erro de caráter sanitário”. O professor da FMUP acredita que a pandemia aborda-se com “testagem sistemática, quarentena de casos positivos e a restante sociedade a funcionar”.

Luís Saboga Nunes considera o fecho das escolas “uma das maiores incógnitas da pandemia”, devido ao equilíbrio de fatores. “Por um lado, deixa uma marca geracional”, considera o professor da ENSP, apontando que devemos ter “atenção para a vida além da COVID-19”.

Já Constantino Sakellarides afirma que “nenhum académico ou profissional de saúde deve responder a solo”. O antigo Diretor-Geral da Saúde defende que as decisões do Governo devem ser informadas “pelo conhecimento científico”.

“Para que isso se faça bem, precisamos de uma comissão científica de competências complementares, independente do poder político, que trabalhe continuamente com os dados disponíveis, que consiga um consenso alargado sobre o seu significado”, expõe. Um conceito “substancialmente diferente” das reuniões do INFARMED.

Para Sakellarides, é necessário uma síntese científica “documentada e disponível publicamente” que seja proposta ao poder político. Isso evita a “perda de peso do conhecimento científico face às pressões sociais”.

“Em dezembro a pressão social – economia, famílias, atores socias, oposições – era para não fechar. Não fechamos. Agora em janeiro, a situação agravou-se substancialmente, e a mesma pressão social, quer agora fechar.”, conclui.

António Ferreira recorda que na primeira vaga o Conselho Nacional de Saúde Pública pronunciou-se contra o encerramento das escolas, mas no dia a seguir o Governo tomou a decisão contrária. O professor da FMUP também defende a apresentação de documentos “escritos e fundamentados cientificamente”.

Artigo editado por Filipa Silva