As sardinhas, a animação, o sentimento bairrista. O São Pedro da Póvoa de Varzim celebra 60 anos de festa rija e o JPN foi à grande noitada, de dia 28 para 29.

São 18h e a Póvoa de Varzim já está em aquecimento. As ruas vão-se enchendo de gente bem-disposta e bem-vestida, à cor específica do seu bairro. Os bairros são apenas seis – Regufe, Mariadeira, Bairro Norte, Bairro Sul, Matriz e Belém -, mas os moradores são milhares e os populares nas ruas vão se multiplicando.

Nas adoradas festas de São Pedro, as varandas são decoradas com elementos náuticos em tons de azul-céu, se os donos de casa forem da parte de Belém ou de vermelho e branco se são do bairro da Matriz, por exemplo. As iluminações de rua, que refletem a cor tradicionalmente associada a cada um destes bairros, estão a postos e os tronos que enaltecem o Santo Padroeiro ostentam a garra desta meia dúzia de povoações bairristas.

Esta noite, cada bairro é uma mancha de cor orgulhosamente indistinguível que promete pintar a Póvoa de uma alegria muito distinta.

Tem-se fome de festa e de sardinha. Sede, também. À porta das tascas já se veem amigos de óculos de sol com um gin na mão, que ouvem música animada e conversam. O sol está alto como as expectativas para esta noite. Baixas, seriam as adivinháveis probabilidades de se encontrar um grupo como este: dois homens do bairro Norte – vestidos de azul e amarelo – e outros dois do bairro Sul – de camisolas verde-garrafa. Estão a rir e a beber uns copos, juntos, sem rivalidades.

Mas rivalidades porquê? Nas noitadas de São Pedro, há historial de lutas e ameaças entre bairros, especialmente entre moradores do Bairro Sul e do Bairro Norte – resultado de um sentimento bairrista levado ao extremo, temperado com um copo de vinho a mais (na maior parte das vezes). Estes são os maiores bairros, os mais apoiados e também os supremos antagonistas desde o primeiro São Pedro na Póvoa de Varzim, em 1962. Mas estes amigos, nem tanto. “Se não houvesse rivalidade, também não havia amizade. Isto é rivalizade”, explica ao JPN, rindo, um deles.

Parece que esta ‘harmonia’ se vai sentindo por todo o lado. As colunas das casas e dos estabelecimentos ampliam o dito pimba, os hinos dos bairros e mais pimba, como manda a tradição portuguesa. As pessoas, sem máscara na rua, estão a exibir sorrisos, como nos bons tempos antes da pandemia.

Contudo, a conjuntura não se apresenta particularmente favorável para Florinda Silva, que entra pelo bairro do Regufe apressada. A moradora veste uma saia acetinada vermelha e verde com estampado florido e a camisola, de um branco translúcido, tem flores estampadas que a fazem reluzir prata. “Agora estou um bocado desanimada, o meu chinelo rebentou! Ia atuar ali no bairro Sul, mas tive de voltar para trás”. Não tarda, segue em direção a casa. Vê-se de costas a tricana do bairro do Regufe de puxo bem alto, penteado este, condizente com o desenrasque e a genica que a senhora exala. Tem de se apressar para ir dançar nas rusgas.

Florinda Silva e Fernanda Casal (Coordenadora das rusgas do Regufe). Foto: Laura Costa/JPN

Enquanto a Dona Florinda vai, vão chegando magotes de pessoas à Póvoa de Varzim, igualmente aceleradas. O que os move? O que os atrai? A esta hora é certamente o cheir0 a sardinha.

São 20h30 e as brasas aquecem as ruas. “Não tem meia dúzia para mim?”, interpela um cliente. Um vendedor de sardinhas na Rua da Junqueira convida-o a sentar-se numa mesa. Ouve-se o estalar do carvão e o “Zumba na Caneca” da Tonicha, as pessoas a conversar, cadeiras a arrastar. O assador estima que se vendam aproximadamente 15 “destas caixas que levam dois centos de sardinhas” e ele tem de assar tudo hoje – os, aproximadamente, 3000 pitéus.

Já se vira brasas desde as 18h e o cansaço vem-se defumando com o trabalho. “O São Pedro, para mim… É bom para quem anda a passar e ver, agora para quem trabalha é mais chato”. Mas continua o seu labor, tão bem apreciado pelos que comem a sardinha assada e pelos que passam e olham, na rua da Junqueira.

Mais tradicional do que isto só as ruas em que o povo cozinha. Principalmente na Matriz, no Bairro Norte e no Bairro Sul, janta-se à porta de casa ou nas garagens. Os fogareiros estão ao rubro e há mesas pela calçada fora para muitas ou poucas pessoas, mas uma coisa é certa: não falta comida.

“Entremeada, espetadas, coxinhas, peito de frango, salsicha, sardinha”. António Rocha, um jovem de 23 anos de Paços de Ferreira que hoje assa o jantar, elenca a ementa. São mais pessoas a comer do que os seus anos de idade: vão sentar-se à mesa 30 pessoas. O grupo é de estudantes da Universidade do Minho, que têm uma amiga de família poveira, Georgina Lima. Georgina convidou-os a passar cá a noite. António explica que os convidados para o jantar são de “Paços de Ferreira, Lousada, Boticas, Vinhais… De todo o lado”.

Todos os apetites vão dar à Póvoa. No bairro da Matriz, está um casal do Bairro Norte, juntos há 56 anos. Luisa Oliveira tem 74 anos, nasceu e vive no Bairro Norte, mas está num bairro vermelho e branco porque tem “amigos na Matriz”. Conta que depois de jantar passará pelos bairros todos porque é poveira, “acima de tudo”. Equipa-se a rigor da cabeça aos pés, de azulão e de amarelo forte e as cores do seu bairro combinam com a alegria que o seu sorriso carrega.

Ao seu lado, está o marido Adalberto Oliveira de 79 anos, que apesar do vestuário mais discreto, sente o São Pedro intensamente. Narra que nasceu em Barcelos, mas, desde que casou, é poveiro de coração. Diz que o que o mais nesta festa da Póvoa de Varzim é o facto se ser “humana”. “Quando a conheci [à festa], nós passávamos na rua e ofereciam as coisas, quase impunham. Toda a gente queria dar a sardinha, a fêvera… Agora isto acontece, mas de uma forma mais reservada. Por todas as razões. Mas o que é facto é que ainda continua a humanidade e dádiva, e é raríssimo isto”, diz.

Luísa e Adalberto Oliveira. Foto: Laura Costa/JPN

Para quem não é de tão perto ou para quem prefere outras iguarias, como as sandes de pernil, a praça do Almada é o principal destino. “Este ano o pessoal está a sair mais à rua, por causa do fim da pandemia”, diz Américo Mendes do Bairro Sul, cuja esposa é do Bairro Norte.

Não há lugares vagos nas mesas. Quem quer, senta-se à volta da fonte e nos bancos de jardim. A fome cria filas nas barraquinhas que vendem, na sua maioria, sandes de porco no espeto e sopa da pedra. “Falta é a música! Vou ter de cantar hoje?”, diz um jovem animado na fila da taberna “Ponto de Encontro”.

A falta de música não será problema nesta noitada e há quem até previna a situação. Com o carro estacionado na Avenida Mouzinho de Albuquerque, as portas escancaradas e as colunas aos berros a passar techno, um grupo de jovens amigos faz as brasas enquanto bebe umas cervejas para abrasar também o espírito.

É verdade que o frio começa a fazer-se sentir, mas nada que um casaco não resolva. Esta noite, os ventos sopram forte como de costume na Póvoa de Varzim, embora num sentido bem específico: a festa. A Dona Florinda, que antes voltava apressada para casa, já volta com outros chinelos calçados. Atravessa o Regufe, disparada para o Bairro Sul. Siga a rusga!

Ouvem-se sinfonias barulhentas que com vozes ensaiadas, tambores e trompetes, exaltam os bairros em letras de canções. O louvor a cada bairro consuma-se também no traje. Cada bairro veste as suas tricanas – nome dado às mulheres da região quando estão vestidas com os trajes de festa – e decora os seus arcos de uma cor inalterável há anos. O Bairro Sul reveste as ruas por onde passa de verde e Belém combina com o céu claro. A Matriz tem as cores do amor e a Mariadeira é fogo e Sol. O Bairro Norte lembra o céu estrelado e o Regufe combina as tonalidades do sangue e da esperança.

Os tronos ao São Pedro, altares imensos em sua honra, estão expostos em cada bairro, mas homens e mulheres e meninos e meninas, vão em fila e aos pares mostrar a tradição à Póvoa e a quem a visita. Com as suas roupas brilhantes e postura altiva e festiva, as rusgas traçam diversos percursos, sempre a cantar e a encantar. Os destinos são os palcos que estão montados nos três bairros centrais: Bairro Norte, Matriz e Bairro Sul. As danças prolongam-se pela noite até doerem os pés.

Como pináculos do sentimento bairrista, atrás das rusgas, seguem as claques de cada bairro. Cada uma mais desordeira que outra. “É é é é, o Belém é que é!”. A claque até pode ser pequena, mas tem a energia de um turbilhão. O mesmo se pode dizer da Mariadeira ou do Regufe e até da Matriz.

“É é é é”, na verdade, preciso ter ‘cuidado’ é com os do Bairro Norte e do Bairro Sul. São mais que as tricanas e os seus companheiros ou companheiras. Erguem bandeiras que rasgam o céu, esticam faixas e fazem procissões de folia. Sopram apitos e gritam a cantar, até- bem, não se sabe o fim, só o cansaço dirá ou o sol do próximo dia.

Pelas ruas, os transeuntes abrem caminho, fazem corredores humanos encostados às fachadas das casas para deixar desfilar este mar de gente verde. “Sul é o mais lindo, meu bairro, minha paixão!”- canta a claque como se de um hino se tratasse. “. Duarte Agra não concorda. Para este poveiro de 35 anos, o Bairro Norte é que é sem dúvida o melhor. “Toda a cidade reluz com o ouro sobre azul. O bairro Norte é que brilha”.

Do outro lado da rua, ouve-se (bem) “Sul, eu te amo, eu te amo e não é pouco”. Estar na Póvoa na noitada de São Pedro é isto: ouvir declarações de amor e perceber que este sentimento não é passível de se racionalizar nem de se medir ou comparar.

Costuma-se dizer que quem ama não bate, mas José Santos conta que não é bem assim. Na noitada de São Pedro, as rusgas do Norte e Sul “fazem de tudo para não se encontrar, porque quando se cruzam, nunca acaba bem. Não se podem cruzar”, exclama.

Claque faz festa no Bairro Sul. Foto: Laura Costa/JPN

A culpa é da mistura da rivalidade com o álcool, que provoca sempre mal-estar. A questão é que “a água hoje faz mal” – pelo menos, é o que diz um jovem animado depois do jantar, aos amigos, numa rua do Bairro Sul. Parece que toda a Póvoa de Varzim atentou a esta advertência e que cada um a interpretou à sua maneira.

“As cervejas estão todas a um euro e meio, vou ter um ataque”, exclama, indignado, Tiago Curralo, um jovem poveiro de 19 anos. O que vale é que Tiago já tinha trazido de casa uma mistura duvidosa de whisky-cola numa garrafa de água. É esta a estratégia de Tiago e de muitos outros jovens para combater a inflação da bebida nesta noite. No entanto, ainda há muitos a sucumbir à vontade de um fino fresco.

A animação não baixa nem por nada. Em vários pontos, situam-se palcos com personalidade e públicos diferentes. Tanto o funk, como a música popular ou o kuduro fazem sucesso durante a noite. Os sorrisos espalham-se pelos recintos entupidos de diversão. Sentem-se os graves no peito. São 23h e já se dança muito. Os corpos parecem elétricos e muitas pessoas regam-se de álcool para que a alegria desabroche mais rápido.

Tudo está em movimento até que o céu rouba o protagonismo. Os pescoços esticam-se para o alto e os olhos esbugalham-se. Uma ou outra criança tapa os ouvidos ou chora. É meia-noite e o tão aguardado fogo-de-artifício anual começa a desenhar no céu as mais belas flores de luz colorida. Durante 15 minutos, aprecia-se nas ruas o espetáculo de explosões, ou até nas praias poveiras, para uma imagem mais aproximada do fogo. Agora, o barulho das luzes acaba e o povo dispersa.

No palco do Passeio Alegre, porém, rapidamente se faz um apelo à união e se faz juz ao nome. É 00h15 e o Padre Guilherme, muito conhecido na zona, “gira o disco” enquanto abençoa a noite. O DJ é um sucesso na Póvoa de Varzim por conjugar techno e o sacerdócio numa só pessoa. “Esta é pela paz meus amigos”, anuncia o DJ Padre Guilherme ao soltar o som. “If we have no peace, it is because we have forgotten that we belong to each other”, uma frase de Madre Teresa de Calcutá, é uma das projetadas durante o seu espetáculo de música eletrónica.

Esta junção invulgar espanta quem ‘abana o capacete’. Nunca juntar alhos com bugalhos fez tanto sentido. “Welelele” cantam grupos de amigos em coro, ao ritmo da batida. Na plateia, joga-se vólei com desconhecidos, com uma bola de ninguém e já muitas garrafas rolam no chão, vazias.

Mais ao fundo, na lota, os carrosséis fazem a sua parte para a azáfama. O maior de todos é o “Extreme”: um pêndulo com acentos, que gira e sobe alto, de um lado para o outro. Ouvem-se gritos estridentes, ampliados pelas injeções de adrenalina. Jogos, carros de choque, bazares de prémios e sorteios. A lota não cheira a peixe nesta noite, mas sim a diversão e, sobretudo, a farturas e a iguarias dos Santos Populares. Já é de madrugada e petisca-se (ou ainda se janta) pão com chouriço.

Na Póvoa de Varzim, a noite de São Pedro ainda é uma criança para uns ou já deu o que tinha a dar para quem bebeu demais e já deixou os restos do jantar despejados no chão de um canto qualquer. A noitada é, sem dúvida, para muitos, um combate severo à seca e outros até conseguem fintar a problemática da inflação. Nesta 60.ª noite de festa, também se faz bem frente a um outro problema: o isolamento. As armas de combate são a música e os “comes e bebes”.

Nesta noite, o jantar na rua, com gente a passar e a acompanhar, soube mais do que a sardinha e a vinho verde: soube a normalidade e liberdade. Quem vive sabe e voltará para o ano.

Artigo editado por Tiago Serra Cunha