A performance “Mulher-Romã” é uma abordagem contemporânea da história “O Amor das Três Romãs”. Surge como parte de uma iniciativa de estudo de contos populares europeus, que procura incitar a reflexão sobre o papel da mulher na sociedade ocidental. Estreou no sábado (4), na Central Elétrica/CACE Cultural (CRL) do Porto, finalizando o projeto de mesmo nome que abrangiu três momentos: uma exposição, uma mesa redonda e a peça.
A narrativa original, que inspirou o projeto, retrata um príncipe que procura uma mulher idealizada – e, com a ajuda de uma bruxa, que lhe oferece três romãs, encontra mulheres que correspondem ao desejo, dentro do fruto. Porém, a peça quer “inverter o ponto de vista do conto popular e refletir sobre o ponto de vista da mulher”, revela Constanza Givone, diretora artística, em declarações ao JPN.
Para tal, a intérprete utilizou “uma linguagem artística pessoal”, completa, relacionando-a com a utilização do “imaginário”. Assim, a ideia era transmitir “algo não só num plano racional, mas também num plano mais emocional e subconsciente”.
A desconstrução do corpo pela reflexão do papel feminino
O cenário foi produzido no contexto da exposição de Ana Torrie, com som de João Vladimiro – o primeiro momento da iniciativa, que esteve na Cooperativa Árvore entre 7 e 28 de janeiro. Aí, ocorreu o desenvolvimento do processo visual para a peça – contando ainda com a colaboração de Constanza Givone, que é, também, responsável pelo texto e pela interpretação.
Num cubo, representativo da romã que aprisionava as mulheres, a diretora artística adotou características estéticas do teatro de sombras e do cinema expressionista alemão. Neste contexto, procura retratar imagens reais do corpo de uma mulher, fazendo um paralelismo com a imagem idealizada referida no conto. Além disso, as figuras remetem para lugares imaginários e até mesmo grotescos.
Desmembrado e espalhado pelos elementos presentes no palco, é apresentado o corpo da mulher. Dentro da estrutura, simula-se o que a personagem pensa, enquanto está presa, mostrando-se presente nas suas memórias e pensamentos, mas ausente a nível físico. Ao mesmo tempo, procura a salvação – um sentimento que a acompanha ao longo do texto.
A peça, interativa, comunica com a audiência – que, aliás, foi convidada a movimentar-se pelos lados do cubo pela própria atriz, integrando a ação. Numa parte inicial, o público depara-se com a primeira faceta do sólido, onde se visualiza um vídeo de uma romã a ser destruída pela água.
Ao mesmo tempo, ecoa a narração do conto original, acompanhada por uma música de fundo serena – e repetindo a expressão “branca como a neve, vermelha como o sangue” (a descrição da mulher ideal do príncipe).
De repente, o cubo fica vermelho e introduz-se a figura feminina – agora também fisicamente. Neste ponto, a mulher do conto, que não passa de uma mera projeção do desejo do príncipe, transforma-se num ser complexo que reflete sobre a sua condição. Evidenciam-se as sombras do seu corpo e são declaradas as principais frustrações e pensamentos: Quem é? Como foi lá parar? Como conseguirá escapar?
Posteriormente, o público, guiado pela mão de Constanza Givone, segue para o lado direito, deparando-se com um cenário branco. O desabafo continua. Nos panos, projetadas, correm várias imagens aleatórias, como o interior de uma romã e diferentes partes do corpo humano.
Seguindo para a terceira faceta do cubo, a plateia encontra uma cortina semitransparente. O palco assume uma luz azul, uma lâmpada desce e coloca-se no lugar do coração da atriz – ainda em desabafo. A música torna-se mais intensa e, num estado de ebulição, a cortina é arrancada, quebrando a barreira entre encenadora e público. Aí, a mulher revela que desistiu da ideia de ser salva (por outra pessoa – neste caso pelo príncipe) e começa a destruir o seu corpo, desmontado.
O final da peça é marcado pelo regresso da atriz à forma de sombra, por detrás do pano, onde começa a desenhar no mesmo com um pincel molhado. Manifesta a ideia de que é o fim para ela, concluindo com a frase “branca como a neve, vermelha como o sangue”, repetidamente.
Numa interpretação que testa o lugar e a figura da mulher, Constanza Givone confessa que a maior dificuldade foi “estar dentro e fora do espetáculo simultaneamente”. Nesse sentido, elogiou o trabalho da equipa que a acompanhou, que “tornou tudo mais orgânico”.
De modo geral, a peça demarca-se pela crescente tensão entre os limites e a ebulição do interior, provocada pela (e aludindo à) necessidade de ser mais. Acima de tudo, desconstruindo a imagem dos contos tradicionais, “Mulher-Romã” quer apenas deixar um apelo à igualdade de género.
Artigo editado por Ângela Rodrigues Pereira