A primeira conferência da 25.ª edição do Correntes D´Escritas abriu com o filósofo e ensaísta José Gil, numa sessão moderada por José Carlos Vasconcelos. A sessão encheu o Cine-teatro Almeida Garrett na Póvoa de Varzim e nela abordaram-se algumas das maiores questões filosóficas que caracterizam a condição humana.
A literatura e a filosofia, o uno no múltiplo, o silêncio como espaço necessário, o caminho no sentido da verdade, a arte que brota do vazio, e da arte brota José Gil. De tudo isto se falou na primeira conferência do festival literário Correntes d’Escritas que decorreu na quarta-feira (21) na Póvoa de Varzim. O cine-teatro Almeida Garrett encheu, por completo, para ouvir aquele que é considerado um dos 25 grandes pensadores do mundo pelo semanário francês “Le Nouvel Observateur”.
O filósofo, ensaísta e professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa começou a sessão pela leitura de um texto seu. Entre fluxos de pensamentos e na tentativa de ir ao encontro da definição de filosofia, José Gil caminhou no sentido da “Verdade com V grande”, apesar de a considerar utópica. O ser, o tempo, o espaço, o belo, a morte: “nada escapa à interrogação filosófica”, como afirmou o ensaísta.
Para José Gil, “o filósofo interroga a natureza desses acontecimentos”: “Como funciona o processo criativo de um ditongo? Que lógica própria rege o nosso pensamento da morte? O que é uma experiência subjetiva? Como se constrói uma lei científica?”
Na tentativa de definição de filosofia, José Gil afirmou que a mesma “visa precisamente recusar o abstrato, agarrar o concreto e o sensível, criar conceitos singulares únicos capazes de apanhar a realidade, que é feita de multiplicidades e singularidades em movimento. Múltiplos são os sonhos, múltiplas as sensações, múltiplos os gestos de cada um de nós”, disse.
O que é um ser único e singular? Para José Gil é “alma”, é “eu”. Mas não é só. Para ele, nem as coisas, nem as pedras, nem as paisagens, horas do dia, sons e fenómenos escapam a esta definição e essência do único. Unidade na multiplicidade e “unidade não é unicidade”, referiu. “Não há uma singularidade única, estática, parada. Há um processo”, resumiu.
Nascido em Moçambique, estudou Matemática e depois licenciou-se em Filosofia, pela Universidade de Paris, em 1968. Obteve mais tarde o grau de mestre com uma tese sobre a moral de Immanuel Kant.
Tem 21 livros publicados, entre eles propõe-se novos paradigmas de estudos pessoanos, fazem-se metáforas sobre “o corpo da escrita” ou a “escrita do corpo”, analisa-se o caos, o ritmo, visões e trajetos filosóficos. Uma das suas obras mais célebres e vendidas é Portugal, Hoje. O medo de existir. Dirige-se diretamente ao povo português, descreve-o e reflete o seu quotidiano.
O filósofo veio ao Correntes d´Escritas com o propósito de explorar a interligação entre literatura e filosofia. Como se encontram, onde se distanciam e como as experiências vivenciadas tanto pelos escritores como pelos filósofos se entrelaçam. Numa interseção entre a literatura e a filosofia, José Gil ofereceu uma compreensão mais profunda da influência mútua das duas áreas.
Tanto o escritor como o filósofo, tanto a literatura como a filosofia interrogam a natureza dos acontecimentos. Ambos retratam o real e trabalham com a linguagem, sendo esta o grande elemento de convergência das duas áreas, segundo o filósofo. Para José Gil, as duas áreas “agarram uma outra realidade invisível, mais subtil porque escondida entre os elementos visíveis dos acontecimentos, mas de maneira diferente”. O que as distingue é que a primeira “cria mundos que pensam”, a segunda “pensa a criação dos mundos”, afirma o filósofo.
Nesta comparação entre as duas artes, José Gil afirma que ambas tratam de forças, “umas que movem e animam conceitos singulares, outras que direcionam emoções por meio de signos”. E o “gesto” que anima o escritor é o mesmo que anima o filósofo: “ambos descolam da realidade ordinária, das suas crenças e opiniões, do seu viver imediato, acrítico.” Esta descolagem da realidade por parte do escritor é, para José Gil, o que o aproxima do filósofo.
Há outro elemento em comum entre os dois ofícios: o uso da ficção. O escritor ficciona o real e o filósofo “pergunta pela realidade que se move sobre a perceção e o pensamento comuns”, recorrendo a ficções. Assim, o filósofo inventa o que Deleuze chamou de “personagens concetuais” e que José Gil menciona, exemplificando com as personagens do diálogo de Platão e o mau génio de Descartes.
Do público presente no cine-teatro Garrett saíram algumas perguntas. Quando o questionaram sobre a solidão inerente ao filósofo, José Gil responde que é condição necessária para o “desapego do mundo”. Mas não por desdém ou renúncia equiparada à de “um eremita”, mas para antes se “juntar ao mundo mais real”, justificando que é isso que o liga a si mesmo e, por isso, mais aos outros e ao mundo que o rodeia.
O ensaísta alertou e apelou aos filósofos de hoje para que não se esqueçam de duvidar de si mesmos e considerou ser dever deles criarem ideias a todo o momento, no intuito de questionarem o seu próprio discurso, pela necessidade constante de se criarem linguagens. E a literatura, por sua vez, torna-se filosofia quando questiona as suas personagens e os seus meios, afirmou o filósofo e ensaísta.
Sob a moderação de José Carlos Vasconcelos, a conversa com José Gil foi dominada por questionamentos, contemplações e uma aura mística que envolveu o discurso e as palavras do filósofo.
Editado por Filipa Silva