"O clube nunca esteve numa situação assim". Esta foi uma das frases mais ouvidas às portas do Estádio do Bessa, antes do jogo com o SC Braga, que terminou com a demissão de Vítor Murta como presidente da SAD. O JPN ouviu vários sócios do clube e a preocupação é o sentimento dominante.

Na segunda-feira (26), o Boavista sofreu, em casa, uma pesada derrota contra o SC Braga. No final da partida, Vítor Murta assumiu o lugar do treinador na conferência de imprensa para anunciar a demissão do cargo de presidente da SAD.

Este foi mais um golpe de intranquilidade na situação já conturbada dos boavisteiros. A época 2023/24 até começou bem, com quatro vitórias nos primeiros cinco jogos, uma das quais frente ao Benfica. Porém, desde então, tem sido marcada por inúmeros problemas tanto dentro como fora das quatro linhas.

Depois de um bom início da temporada, tornou-se público que o clube tinha meses de salários em atraso, tanto a jogadores, como a funcionários. Os problemas financeiros do Boavista não são, de todo, um assunto recente, com diversas situações de falta de pagamentos a terem sido relatadas ao longo dos anos. Contudo, o panorama atual parece estar a complicar-se cada vez mais.

Petit era o treinador da equipa há várias épocas e é um nome muito acarinhado no Estádio do Bessa. O ex-internacional português tinha vindo a ser elogiado por, durante vários anos, conseguir fazer tanto com tão pouco. Ainda no último mercado de transferências, o clube viu-se proibido de inscrever novos jogadores devido a um castigo por parte da FIFA, na sequência de processos por parte de ex-jogadores. A nova temporada começou, mas os incumprimentos salariais mantiveram-se. Nos dias 30 de setembro e 1 de outubro, os treinos do clube foram cancelados devido à falta de pagamentos aos funcionários. Esta ausência de condições constante acabou por levar Petit, em dezembro, a abandonar o Boavista, por mútuo acordo.

Complicações na direção do clube

Em outubro de 2020, os associados do Boavista aprovaram a compra da SAD do clube pelo empresário luxemburguês Gérard Lopez, naquele que se esperava ser um momento de viragem. O multimilionário, que também é o dono do clube francês Lille, chegou aos axadrezados com o objetivo de tentar tornar o Boavista no histórico que costumava ser. Aquando da chegada de Lopez, Vítor Murta afirmou que o empresário era o “noivo perfeito” para o clube.

Durante os primeiros tempos parecia que o Boavista tinha realmente deixado os problemas financeiros no passado. Com o novo investidor, o clube trouxe vários novos jogadores, alguns deles de renome, como Adil Rami (campeão mundial pela França) e Javi García (ex-Benfica e Manchester City). O impacto do médio no Estádio do Bessa acabaria por estender-se para lá da sua saída. Em 2022, García decide pôr um ponto final na carreira de jogador para ingressar na equipa técnica de Roger Schmidt no Benfica. O jogador espanhol chegou a um acordo com o Boavista para efetuar a rescisão imediata do contrato, que ainda tinha a duração de mais uma época. O acordo implicava o pagamento de uma parte do salário por parte dos axadrezados, algo que não veio a acontecer. Javi García avançou, por isso, com uma queixa à FIFA. O Boavista foi obrigado a pagar mais de 200 mil euros ao atual adjunto do Benfica e ficou proibido de inscrever jogadores no mercado seguinte.

Apesar de todos os problemas o Boavista continua a ter uma base adepta leal. Foto: Afonso Leite/JPN

Mais recentemente, em dezembro de 2023, o Boavista tinha marcada uma Assembleia Geral (AG) eleitoral, na qual iriam ser conhecidos os novos membros da administração da SAD. No entanto, foi adiada a pedido de Gérard Lopez, pela “impossibilidade prática de, atempadamente, indicar os órgãos da administração a serem votados”. O empresário luxemburguês não conseguiu reunir a tempo uma nova equipa para administrar a SAD do clube boavisteiro e a assembleia foi adiada para fevereiro. Mas ainda não foi em fevereiro que foi realizada, com o adiamento a repetir-se mais uma vez. A nova e definitiva data para a Assembleia Geral está marcada para 15 de março, na qual os novos órgãos terão obrigatoriamente de ser anunciados.

A inquietação entre os adeptos

À entrada do jogo com o SC Braga – antes de ser conhecida a demissão de Vítor Murta  – o JPN esteve à conversa com alguns sócios do clube. Os boavisteiros expressaram a sua preocupação com a situação atual e pediram mais transparência por parte da direção.

António Fonseca tem 79 anos e é o sócio número 89 do Boavista. Está inscrito desde 1964. O amor pelo clube faz parte da família. António é presença assídua no Estádio do Bessa, juntamente com os seus “filhos, noras e netos”. O adepto mostra-se muito descontente com a entrada das Sociedades Anónimas Desportivas (SAD) no futebol e afirma que não aprovou a entrada de Gérard Lopez no clube: “Eu não o pus cá, não o queria cá, nem queria ninguém cá. Ainda sou do tempo que era só direções. As SAD para mim vieram estragar tudo. Não podemos contratar jogadores. Nem podemos inscrever os miúdos nos campeonatos de juniores. O clube nunca esteve numa situação assim”, afirmou.

António Fonseca é o sócio número 89 do Boavista. Foto: Afonso Leite/JPN

Sobre os resultados desportivos, António Fonseca sente-se muito alarmado com a possível despromoção à Segunda Liga e que isso seja fatal: “Todos os domingos, vejo o Boavista a descer mais um lugar na classificação. Agora já estamos com apenas três equipas atrás de nós. Para mim, se o Boavista descer de divisão, nunca mais sobe”.

O sócio 89 do clube refere que, há uns largos anos, até já teve ações do clube, mas que “estas ficaram para lá perdidas e nunca mais as viu”. Na época 2020/21, pagou um camarote do estádio, juntamente com o filho. Porém, depois da proibição de adeptos nos pavilhões desportivos devido à pandemia, os mais de 200 euros que gastou nunca lhe foram devolvidos. Pede mais transparência à direção e afirma que “os adeptos merecem saber o que se passa”.

Ainda assim, mesmo com todas estas complicações declara que nunca vai abandonar o clube. “Sou adepto do Boavista, não de nenhum diretor”, sublinha, enquanto relembra alturas nas quais “andou com o clube pelos regionais”.

Este desassossego é unânime entre os adeptos mais antigos. José Rodrigues tem 73 anos e é sócio do Boavista há 42 anos. O apoiante afirma que não está muito por dentro das questões relativas às assembleias gerais eleitorais, mas ainda assim admite estar perturbado com a situação atual: “Só venho ver o jogo, e pronto. Mas como sócio do Boavista, obviamente, que estou preocupado com os problemas que o clube atravessa”.

Contudo, José também acredita que cargos na direção do clube não são muito apetecíveis neste momento: “Há gente que não gosta deste presidente. Mas eu penso: se este homem sair daqui, quem é que vai tomar conta disto? O momento do Boavista também não é risonho. Quando o Boavista estava bem, quando era campeão e ia à Liga dos Campeões, não faltava gente interessada em vir para aqui”.

Miguel Matos, de 45 anos, está associado ao clube há 15 anos. O adepto mostrou o seu descontentamento com o terceiro adiamento da Assembleia Geral: “As coisas têm de ser resolvidas o quanto antes. O clube precisa de soluções e não de adiamentos. Empurrar as coisas para a frente com a barriga não está a dar resultado”.

Emília Lage partilha da mesma opinião relativamente à falta de certezas da AG. A adepta de 52 anos é sócia do clube desde os dez e sublinha que “nenhum boavisteiro imaginava esta situação”. A adepta ressaltou que a questão que causa mais incómodo é a falta de esclarecimentos, sobretudo, sobre a importância do investidor na SAD do clube: “O que me incomoda mais é terem dito que o investidor era tão fundamental e agora com o investidor estamos na pior situação de sempre”.

No que diz respeito ao desempenho dentro do relvado, Emília pontua que os adeptos estão cientes do esforço feito por parte dos jogadores face à falta de condições: “A culpa não será deles. Se o patrão não lhe paga, trabalha com o mesmo sorriso? Por muito profissional que seja, a vontade é a mesma? Não podemos censurá-los por isso, por muito que nos doa”.

Junto da geração mais nova de boavisteiros não foi difícil encontrar a mesma apreensão. Afonso Pereira, de 22 anos, é sócio desde que nasceu. O adepto aponta que os adiamentos da AG “só manifestam os problemas do clube e a falta de interesse do dono em querer resolver a situação da SAD”. Afonso concorda com os outros adeptos e refere que a falta de transparência é uma das principais razões da instabilidade sentida: “A falta de diálogo entre a direção e adeptos é muito grande e isto causa uma relação muito conturbada entre ambos”. Em relação ao desempenho na Liga, afirma que, sem conseguir contratar jogadores e com um plantel limitado, o desempenho “tem sido mediano”. Os conhecidos atrasos salariais dos jogadores, contribuem, “compreensivelmente”, para um “trabalho não tão produtivo”.

Afonso Pereira é sócio desde que nasceu. Foto: Afonso Leite/JPN

A demissão de Vítor Murta

Depois de uma longa relação agitada com os adeptos, a goleada sofrida contra o Braga acabou por ser a machadada final no reinado de Vítor Murta. O até aqui presidente do Boavista e também da SAD anunciou a demissão da presidência da SAD no final do jogo.

Os assobios e cânticos entoados nas bancadas do Bessa tornaram-se mais constantes nas últimas jornadas. Vítor Murta reforçou que os boavisteiros têm a “memória curta” e acredita ter feito um “bom trabalho” nos seis anos como presidente do clube e três à frente da SAD. Realçou ainda que já está em desenvolvimento “um projeto para a futura academia do Boavista, em Vila Nova de Gaia“.

“Sou sócio há cerca de 40 anos. Sou boavisteiro, a minha família é boavisteira e ninguém gosta de vir ao estádio ser maltratado pelos seus. (…) Esquecem-se de que quando cheguei, o clube não pagava subsídios de férias ou de Natal, não tinha campo digno para treinar e vivia com dificuldades enormes. Hoje não estamos bem, mas estamos melhor e temos futuro”, declarou Murta na conferência de imprensa.

Relativamente às dívidas do clube, Murta afirmou ter concluído o pagamento de 1,5 milhão de euros ao ex-treinador Jaime Pacheco, campeão nacional em 2000/01, e a  alguns jogadores dessa altura. Esta é “uma das dezenas” de valores pagos pelo presidente. “Andamos a pagar dívidas com mais de 20 anos. (…) Muitos acham que o Boavista é só futebol, se a bola entra ou não, mas é mais do que isso. Todos os meses temos de encontrar soluções para o presente, mas também para o passado. Mensalmente, temos custos que ultrapassam um milhão de euros”, destacou o presidente do clube.

O dirigente apontou ainda que tem dúvidas sobre se vai ou não continuar como presidente do Boavista depois do término do mandato, no fim de 2024. Vítor Murta reforçou que deixará a SAD com os salários dos jogadores em dia, relativamente ao mês de janeiro. O vencimento referente a fevereiro já será responsabilidade do sucessor, que terá de “encontrar soluções” para o fazer. Em relação aos funcionários do clube, Murta disse que o ordenado de dezembro foi pago e os valores de janeiro serão pagos antes de sua saída para “que nada lhe seja apontado”.

O presidente do Boavista reiterou também confiar “101 por cento nos jogadores” do clube, que terão a missão de manter o clube na Liga Portugal. Por fim, deu uma resposta aos protestos feitos pelos adeptos nas bancadas do Estádio do Bessa:

“Desejo, do fundo do meu coração, que todos os que estiveram hoje na bancada a insultar o presidente do clube deles, tenham razão e que quem me suceda consiga resolver melhor os problemas do Boavista”.

O Boavista está atualmente no 12.º lugar da Liga Portugal, dois pontos acima da linha de água. Vítor Murta fica em gestão até 15 de março, dia em que vai ser apresentado nome do novo presidente da SAD do clube, na Assembleia Geral dos acionistas.

Editado por Filipa Silva