Nesta reportagem sobre a saúde mental no jornalismo, o JPN entrevistou Manuela Goucha Soares, do "Expresso", e Alexandre Panda, do "Jornal de Notícias". Os jornalistas partilharam as suas experiências, revelando os impactos emocionais e psicológicos da profissão. A psicóloga Liliana Dias aponta os sintomas a que se deve estar atento. A jornalista Isabel Nery fala sobre a moção, ligada à saúde mental dos jornalistas, que viu aprovada no último Congresso

Manuela Goucha Soares é jornalista do “Expresso” desde 1988. Foto: D.R.

Manuela Goucha Soares, jornalista do “Expresso” desde 1988, foi diagnosticada com burnout em 2022 e confessa que não tinha consciência dos indícios da síndrome.

Isto é um processo lento, não é de um dia para o outro. Vinha com alertas de não estar a dormir ou de estar a dormir muito mal. Começo a não desligar, parecia que estava ligada a uma corrente elétrica, mas uma pessoa não liga porque não estava minimamente desperta para estes sintomas”, recordou Manuela Goucha Soares.

O quotidiano dos jornalistas padece de diversos desafios, a pressão e o desgaste são uma realidade constante para estes profissionais. O ritmo acelerado do trabalho, aliado à natureza, muitas vezes, perturbadora dos eventos que cobrem, cria um ambiente desafiador e complexo.

Alexandre Panda, jornalista da secção de Justiça no “Jornal de Notícias” (JN), tem essa experiência. “Todos os dias estás a lidar com o pior dia da pessoa com quem estás a falar”, analisa o repórter. “É óbvio que, muitas vezes, temos uma vida que é deprimente e pode haver muitos recalcamentos e aquilo ficar-te na cabeça e até no inconsciente, isso pode acontecer muitas vezes. Comigo houve uma fase que aconteceu bastante, mas procurei sempre esse distanciamento. Temos de manter aquela distância para garantir que o leitor e as pessoas a quem nós temos de proporcionar informação tenham uma imparcialidade que se exige ao jornalista”, expõe Alexandre Panda.

O desporto acabou por funcionar para Alexandre Panda como “uma boa escapatória” para lidar com a rotina exigente da profissão.

A ligação em contínuo “à corrente” e o lidar com histórias difíceis não são os únicos motivos que afetam a saúde mental dos jornalistas. Os “riscos de instabilidade” da profissão e os “baixos salários e as condições de trabalho muito frágeis são fatores de stress” que não podem ser ignorados, refere ao JPN Liliana Dias, psicóloga especialista em burnout. “Em particular, na profissão do jornalismo, há aqui riscos acrescidos face à grande instabilidade do modelo de financiamento da própria atividade”, continuou.

O reconhecimento dos sinais de esgotamento pode não ser imediato e levar a uma relativização dos comportamentos. Liliana Dias alerta para determinados sintomas, como “problemas gástricos, problemas de pele e dificuldades no sono” que podem originar um “quadro de doença mental”.

Liliana Dias é mestre em Psicologia Clínica e da Saúde pela Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa.

Liliana Dias é mestre em psicologia clínica e da saúde pela Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. Foto: D.R.

Liliana Dias afirmou que é crucial o profissional ter “atenção aos padrões de sono, padrões de alimentação, padrões de atividade física e diria até aos padrões sociais, ou seja, não se isolar”.

Saúde mental esteve em destaque no Congresso dos Jornalistas

Um inquérito sobre as condições de vida e trabalho dos jornalistas, realizado pela API- Associação Portuguesa de Imprensa, a Casa da Imprensa e o Sindicato dos Jornalistas (SJ), com o apoio da Federação Europeia dos Jornalistas (FEJ), revelou que 48% dos inquiridos – jornalistas no ativo ou na reforma – apresentam “níveis elevados de esgotamento”. No inquérito, pode ainda ler-se que “18% apresentam níveis de exaustão emocional que variam entre um nível muito elevado e extremamente elevado” e “38% apercebem-se de problemas mentais decorrentes do próprio trabalho jornalístico”.

No 5.º Congresso dos Jornalistas, realizado em janeiro, no Cinema São Jorge, a saúde mental no jornalismo foi uma das temáticas em evidência.

Após o painel “Jornalismo e saúde mental”, a moderadora Isabel Nery apresentou uma moção para a “criação, por parte dos órgãos de comunicação social, de um sistema de acesso a consultas de psicologia de forma gratuita para jornalistas”. A proposta foi apoiada pela maioria dos presentes e foi nítida a preocupação por parte dos profissionais relativamente a este tema.

5.º Congresso dos Jornalistas: painel “Jornalismo e saúde mental”. Foto: MelissaDores/CENJOR

Em entrevista ao JPN, Isabel Nery explicou que esta moção surgiu da conclusão de que “há claramente um problema com os jornalistas relacionado com desgaste e a exaustão emocional”.

A jornalista, que esteve ainda envolvida na criação do podcast “Queimei! – Vamos falar de Burnout”, lançado pela Antena 1 em outubro de 2023, referiu que os testemunhos evidenciaram que os jornalistas “independentemente de estarem em burnout, estavam esgotados, que havia excesso de trabalho, excesso de horas, más condições”.

“Há um aspeto que acho muito importante de referir: o próprio prazer profissional está muito deslaçado, porque se entrou numa lógica de produção industrial. Portanto, o jornalismo que era uma profissão intelectual passou a ser quase uma profissão fabril e industrial. É como se quisessem transformar os jornalistas em máquinas. E isso, para mim, é um aspeto-chave, porque os jornalistas sempre viveram nestas condições”, salientou Isabel Nery.

O jornalismo que era uma profissão intelectual passou a ser quase uma profissão fabril e industrial.

O estigma da saúde mental na profissão

Isabel Nery destacou ainda que “por regra, os jornalistas não falam, não são o centro da história, e isso está certo, porque o jornalista deve tratar dos problemas da sociedade”. “Só que aqui começou-se a criar um problema que é os jornalistas também fazem parte da sociedade e também têm problemas laborais e nunca se fala desses problemas”, explicou.

Quando questionado sobre o estigma sobre saúde mental no jornalismo, Alexandre Panda admitiu que “há muito”. “Normalmente, mesmo quando estamos sob imensa pressão, nunca iremos reconhecer que é verdade e na nossa área, na justiça, a pressão é diária e é uma carga muito forte”, afirmou.

“Isto é um modo de vida. Tens de procurar um equilíbrio como em qualquer tipo de profissão, não há nada a fazer. Tens de procurar um equilíbrio entre a família e o trabalho. No nosso caso é complicado, um bocadinho à semelhança dos polícias que não têm horários, um bocadinho à semelhança dos bombeiros que não têm horários. Há muitas profissões que são assim. Temos de gerir da mesma forma que as pessoas que fazem outras profissões que são muito envolventes e exigem muito do teu tempo”, acrescentou o jornalista do “JN”.

Isto é um modo de vida.

Manuela Goucha Soares acredita “existe muito menos [preconceito] do que existia”. “Um dos grandes problemas destas coisas é que acho que há muita gente que vê isto como uma fraqueza. Como uma falha. Um exemplo: parti o braço recentemente. Quando parti o braço, fazia fisioterapia. Quando não estamos bem, temos de arranjar mecanismos para ficar bem”, justificou a jornalista do “Expresso”.

A pandemia é apontada como uma das causas que agravou o dia a dia desta profissão. “Houve uma grande alteração de rotinas para toda a gente. Foram muitos desafios ao mesmo tempo”, contou ao JPN.

Isabel Nery partilha da mesma opinião: “A própria pandemia não ajudou os jornalistas. A precariedade, o excesso do trabalho e a pandemia, no fundo, agravaram a situação. Até o excesso de tempo no ecrã, [do jornalista] hiper conectado, mas no fundo distante do lado físico, do lado do carinho. É preciso estar, não só existir numa esfera digital”, concluiu a jornalista.

“A tecnologia é muito importante, mas não é para sermos escravos dela. A tecnologia é uma ferramenta para nos ajudar. Não é uma ferramenta para nos escravizar. Os jornalistas precisam de tempo para pensar e precisam de tempo para se alimentarem. Precisamos de ler, ir ao cinema, tempo para pensar, ir a sítios, andar na rua. Não é estar permanentemente em frente a um ecrã que se consegue contar, estruturar, pensar e produzir informação”, frisou Manuela Goucha Soares.

Relativamente à moção, Isabel Nery refere que, neste momento, existem “dados científicos muito fortes que nos dizem que há um problema gravíssimo nesta profissão. Ignorar é absurdo tanto para os jornalistas como para o público. Nós trabalhamos para o público e o público merece ser servido por pessoas que estão saudáveis”.

Nós trabalhamos para o público e o público merece ser servido por pessoas que estão saudáveis.

Embora não existam até ao momento medidas que concretizem a proposta, a jornalista considera “que deveria haver uma responsabilização das próprias empresas. Não é no sentido de dizer que as empresas têm culpa, mas no sentido de as empresas, como faz o Observador – outros poderão fazer o mesmo -, tomarem isto como uma responsabilidade sua”.

Liliana Dias afirmou que a “própria cultura dos ambientes organizacionais” influencia o bem-estar dos profissionais. A psicóloga mostrou-se positiva face à evolução do setor, mas acredita que “ainda há aqui um trabalho de melhoria a fazer nas condições de trabalho, particularmente, nas condições psicológicas e sociais, e há uma responsabilidade destas organizações para com os seus profissionais”.

Alexandre Panda, por sua vez, acredita que “não é por sermos jornalistas que temos direitos a mais. Temos direitos a mais na parte da informação para termos uma sociedade informada. Agora na parte da saúde mental não parece que tenhamos. Cada caso é um caso. Há gente que vive muito bem com a pressão”.

O jornalista do “JN” considera que existem “lados positivos” na profissão. “Por exemplo, a flexibilidade de horários, vives no meio das polémicas, no meio do mediático, é um trabalho spicy. E quando apanhas esse vício é difícil de largá-lo”, concluiu.

Editado por Filipa Silva e Inês Pinto Pereira