Os anos passam, mas as memórias ficam. Hoje pode ser o dia da “liturgia académica” de Alexandre Alves Costa, mas o arquitecto não deixa de recordar-se da sua vida “muito rica”. Em entrevista ao JPN, conta como se envolveu na crise académica de ’62 no Porto, um movimento “natural e espontâneo”, que a cidade via “com bons olhos”.

Muitos anos depois, continua a observar a cidade atentamente. Aprecia a nova ‘movida’ da Baixa do Porto, mas considera que a Universidade e a Câmara deviam conciliar esforços para povoar o centro da cidade de jovens. “Não construir enquanto houver casas abandonadas” é a dica que Alexandre Alves Costa dá à autarquia, cuja política cultural o desagrada.

Dedicou quarenta anos da sua vida ao ensino na Universidade do Porto. Ainda antes de ser professor, licenciou-se na Escola Superior de Belas-Artes do Porto. Deve ter imensas memórias. Recorda-se de algum episódio que o tenha marcado?

Lembro-me de muitos. Aos 70 anos vejo que a minha vida é composta por histórias. Como eu fui sempre militante político, tanto nos movimentos académicos, como mais tarde, a minha vida é muito rica. Digo isto com modéstia.

Esteve presente nas crises estudantis dos anos 60?

Sim, estive. Estive envolvido na crise académica de ’62. A mesma em que esteve o Jorge Sampaio, o Jaime Gama.

“Com tanta casa abandonada não era difícil que a Câmara e a UP negociassem para que estas fossem ocupadas por estudantes”

A maioria deles não estava no Porto na altura. Como é que se viveram esses momentos cá?

O Porto tinha uma situação um bocado difícil porque havia um movimento associativo muito débil. Era muito forte em Lisboa e, fundamentalmente, em Coimbra. Nós, no Porto, tínhamos muito poucas associações de estudantes. A única que existia era a de Farmácia. E depois havia alguns organismos: o Orfeão, o Teatro Universitário. Não tínhamos associações de estudantes, tinham sido quase todas extintas. O que de alguma maneira até tornou o movimento estudantil no Porto mais espontâneo e talvez mais autêntico. Não era condicionado por nenhumas direcções académicas que diziam qual era a estratégia. Não tínhamos dirigentes. Em certo sentido, houve um movimento com uma força muito grande, ao contrário do que se poderia imaginar. Participámos em todas as acções importantes a nível nacional.

Mas qual era o ambiente na cidade, no Porto? Normalmente fala-se sempre de Coimbra, de Lisboa, mas ninguém sabe o que se passava aqui.

A cidade via-nos com muito bons olhos. A cidade Porto tem uma história liberal, de luta pela liberdade e pela cidadania. E acho que nessa altura as lutas estudantis não eram minimamente conotadas com alguma organização política como agora são. Naquela altura o movimento era mesmo muito natural. E é preciso ver que os estudantes, nessa altura, eram quase todos filhos da “boa burguesia portuense”, o que significa que os nossos pais estavam do nosso lado. Nunca sentimos qualquer agressividade, sentimos sempre que a nossa luta fazia parte da cidade.

O que reivindicam?

Reivindicávamos a nível nacional a mesma coisa: autonomia no ensino. Era fundamental. O reitor tinha de ser eleito pela própria universidade, o senado devia ser escolhido democraticamente, os estudantes deviam participar na gestão. A grande palavra de ordem era autonomia. E acabar com o célebre decreto 40900, que era um decreto que dizia que o reitor era considerado uma espécie de representante do Ministério na Universidade e nós reivindicávamos que o reitor devia ser um representante da Universidade no Ministério. Depois tudo o resto que se prendia com a modernização do ensino e do equipamento das universidades, com a inexistência de investigação científica, com a acção social escolar. Tivemos a sorte de viver uma década muito rica. Fomos o lado solar do fascismo. Nunca deixamos de viver a nossa liberdade. Nunca nos deixamos… não é amordaçar, como diziam as palavras de ordem. Não nos tornaram infelizes, não foram capazes de nos destruir a nossa juventude. E essa liberdade praticávamos… em casa uns dos outros, em passeios, no campismo, no campo, na serra. Nas próprias manifestações. Eu tenho um texto em que agradeço à polícia de choque ter-nos colocado tão unidos, tão juntos. Ter colocado um amigo ao nosso lado, do mesmo lado da barricada. Agradeço à repressão terem-nos feito isso. É uma coisa poética (risos).

Em entrevista ao JPN, disse lamentar a existência de pólos universitários. Uma frase vinda de um arquitecto que esteve envolvido na reabilitação da Baixa do Porto. Qual é que acha que deve ser então o caminho da cidade e também da Universidade dentro da cidade?

Até o Estado Novo desenvolveu um bocado isso, no sentido de criar uma situação controlável. Para nós, nessa altura, foi vantajoso porque estávamos todos juntos. A Cidade Universitária de Lisboa era uma espécie de forte. Agora no Porto não era assim. As escolas estavam espalhadas pela cidade. Sempre defendi que a “Cidade Universitária” era uma aberração. E dava sempre o exemplo do Porto, que tinha faculdades dispersas pela cidade. Engenharia nos Bragas, Letras onde agora é as Biomédicas, depois Belas-Artes em S. Lázaro, Farmácia por Cedofeita. Achávamos que as próprias vivências de estudantes podiam ser também bastante urbanas. E também penso isso agora.

Ainda hoje respondi ao inquérito da UP em que perguntavam “o que é que deseja para a Universidade?”. Respondi que desejava uma relação mais íntima com a cidade, tanto no sentido de elaboração de propostas, como na criação de um espírito crítico em relação ao seu desenvolvimento e também a ocupação da cidade. Eu acho que com tanta casa abandonada no Porto não era muito difícil que a Câmara e a Universidade negociassem para que grande parte dessas casas fossem ocupadas por estudantes. Não é bem renovar o espírito da república estudantil, mas é um pouco isso. Uma casa ocupada por estudantes que estão ali temporariamente. E há muitos edifícios que podiam ser recuperados para centros de investigação, por exemplo. Não vejo razão nenhuma para haver concentração ou guetização e expulsão da cidade. O pólo da Asprela fica completamente fora da zona urbana. O lema devia ser “não construir enquanto houver casas abandonadas”.

O JPN debruçou-se, há alguns meses, sobre a Reabilitação Urbana da Baixa do Porto. Ao falarmos com arquitectos, disseram-nos que uma das chaves para o problema da desertificação da Baixa poderia ser o arrendamento jovem. Acredita nisso?

É uma maneira para ter todo o tipo de gente a viver no centro de uma cidade, até porque é isso que caracteriza a riqueza de uma cidade. Quando falo de criar repúblicas na Baixa é uma maneira de construir uma dinamização para a cidade. Ainda para mais agora que a Baixa está com a tal ‘movida’ e ainda bem que assim é. Depois sinto, por exemplo, por parte dos estudantes jovens, uma vontade muito grande de ir viver para o centro da cidade. As minhas filhas também gostariam de viver lá. E vivem fora ou porque as casas estão em ruínas e não têm dinheiro para as comprar, ou porque não há estacionamento, ou porque é mais fácil alugar na periferia. Mas, de facto, há uma atracção, de novo, para o centro da cidade.

“Tudo de bom que acontece na cidade não tem a ver com a Câmara”

Muitos olham para esta “explosão” da Baixa como algo efémero, um pouco como a bolha de sabão que, depois de tanto crescer, estoura. Dizem que o Porto não tem capacidade para sustentar uma tamanha quantidade de bares e locais de animação nocturna. O que lhe parece?

Não faço a mínima ideia. Eu desejaria o máximo que sim. Aquela zona da cidade tem tantas potencialidades, é tão simpática, tão agradável, que eu desejaria que aquilo durasse. É claro que estas coisas são muito móveis, a noite varia muito. Tenho esperança que ali, apesar de tudo, se sedimente alguma coisa mais estruturada. Uma coisa boa que aquilo tem é que eu posso ir para lá de tarde, tomar um chá. Não é só a cerveja de noite. Criou-se um fenómeno interessante.

A Câmara tem responsabilidades neste movimento cultural? Por exemplo, ao ter reabilitado as ruas no Porto 2001?

A Câmara?! A Câmara é aviões, La Féria. O Rivoli, por exemplo, era um sítio de alto nível cultural. Antes íamos ao Rivoli quando não tínhamos nada que fazer e acontecia sempre qualquer coisa. Agora acontece sempre… o La Féria. Tudo de bom que acontece na cidade não tem a ver com a Câmara. Tem a ver com instituições culturais mais ou menos privadas, iniciativa privada, jovens empreendedores. Até alguns alunos meus.