Não foram meigas as palavras que os manifestantes reservaram para os juízes da Relação do Porto, esta quarta-feira. No Largo Amor de Perdição, foram centenas os que protestaram contra o chamado “acórdão da sedução mútua”.

Meia hora depois da hora marcada, começam a ouvir-se os primeiros gritos de força. É a segunda manifestação em menos de um ano, no mesmo local, pelas mesmas razões. É no Largo Amor de Perdição, no Porto, que centenas de pessoas se juntaram, no conjunto das duas manifestações, para mostrarem indignação perante duas decisões judiciais tomadas ali bem perto, no Tribunal da Relação do Porto.

A primeira foi a 27 de outubro de 2017. O motivo foi um acórdão que manteve a pena suspensa de um condenado por violência doméstica, apoiado numa argumentação que, entre outras considerações, apontava o adultério da mulher como “uma conduta que a sociedade sempre condenou e que, por isso, vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído”. Desta vez, as vozes unem-se contra outra decisão deste tribunal.

Em 2016, uma jovem de 26 anos, inconsciente, foi violada numa discoteca em Vila Nova de Gaia, por dois dos seus funcionários. O Juízo Criminal Central de Vila Nova de Gaia condenou os dois arguidos a quatro anos e meio de prisão com pensa suspensa – sentença que veio a ser confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto.

A escassos metros desse tribunal, um grupo de quatrocentas pessoas protestou, esta quarta-feira, contra o acórdão que justificava o acontecimento com base no “ambiente de sedução mútua”, considerando que “a culpa dos arguidos se situa na mediania” e que “a ilicitude é baixa”. Dias depois da publicação do acórdão, ao “Diário de Notícias”, o juiz Manuel Soares, desembargador no Tribunal da Relação do Porto, confirmou ser um dos juízes que decretaram que os danos físicos causados pela violação “não existem [ou são diminutos]” e que não existiu violência [a jovem encontrava-se inconsciente].

Violência dupla

Ao microfone bradou-se a indignação dos manifestantes: “Juizes machistas, ide ver se chove! Não vamos voltar ao seculo XIX!”. Chegam aos poucos, homens e mulheres, de todas as idades. Concentram-se junto à estátua, com faixas, cartazes e mãos vermelhas, e gritam.

“Para mim nem é inacreditável, é inadmissível. Temos de estar aqui para dizer ‘basta’”, diz Carlos, um produtor musical de 59 anos. “Tem que se vir para a rua mostrar que algo está muito errado quando a justiça portuguesa trata um caso desta gravidade desta forma leviana”, acrescenta.

Carlos acredita que é necessário mostrar em público o descontentamento face a decisões como esta. Trazido pela “enormidade das palavras e da desvalorização que fazem de uma violação”, acredita que manifestações como esta não se tratam de manifestações políticas ou de género: “Isto tem a ver com o mero exercício da cidadania. Isto tem a ver com pessoas”, declarou ao JPN.

Um caso de violação coletiva ocorrido em Espanha não foi esquecido na manifestação.

“Dizer que não é violência suficiente, que não deixou marcas suficientes, e não ter em conta sequer que, além do mais, a pessoa estava inconsciente… Não é a questão do consentimento. Ela não poderia dar consentimento, nem não dar”, reflete Margarida Felgueiras.

Tem 67 anos e é professora universitária na área da educação.  “Noutros casos como é que esta gente julga? O que eu acho é que tem de haver uma inspeção a estes juízes. Eles não podem sair impunes desta maneira. Para mim, é um insulto. É dar uma imagem de um país desgraçada que não merecemos”, diz ainda. Margarida Felgueiras vê decisões como esta como uma segunda violência, não só para com as vitimas, mas para com todas as mulheres.

Não foram apenas portugueses que se uniram à manifestação. Amanda Pereira, do Brasil, vive em Portugal há quatro meses e considera a decisão inaceitável: “Nós vamos gritar agora. Vamos gritar por ela, porque todas nós juntas, vamos mudar uma justiça que é machista. Então eu vou lutar aqui, vou lutar no Brasil e em qualquer lugar em que eu estiver.”

Projeto “Sexism Free Night”

“Eu acho que ainda há muito a noção de que uma rapariga que consumiu drogas ou bebeu está, por si só, a consentir qualquer avanço sexual que seja feito, o que não é de todo verdade”, reforça Teresa, d’A Coletiva, responsável pela organização da manifestação no Porto. A ativista trabalhou em espaços noturnos durante alguns anos e reconhece a que há uma cultura de sexualização da figura feminina, em prol do lucro que os bares produzem. Segundo ela, essa cultura culmina em casos como o presente.

Enquanto voluntária nas Noites da Queima das Fitas do Porto presenciou “situações tenebrosas”. “Homens que se punham à porta dos bombeiros à espera que as miúdas, completamente alcoolizadas, saíssem para as tentarem assediar e para tentarem concretizar relações sexuais com elas. E não há problematização disto”, refere. A ex-estudante da Universidade do Porto pede atenção para estas questões, não só na noite, em geral, mas também na noite académica.

Foi por considerar que há desigualdade no tratamento dado a homens e mulheres em espaços de diversão noturna, que Cristiana Pires de 34 anos, investigadora de pós-doutoramento, criou o Sexism Free Night.

O projeto é influenciado por casos como o que ocorreu em 2016. Enquanto cidadã, Cristiana diz que os cidadãos têm o direito de se sentirem seguros em qualquer espaço. “As pessoas que cometem este tipo de delitos saem impunes e este acórdão acaba por legitimar e tornar normal este tipo de violência.”

O Sexism Free Night “foi criado com o objetivo de contribuir para a promoção de espaços de lazer noturnos mais igualitários e mais seguros para todas as pessoas e também para tentar prevenir situações de assédio sexual.”

A manifestação ”Mexeu com uma, Mexeu com todas | Não à cultura da violação” estende-se esta quinta-feira a Coimbra e, sexta-feira, a Lisboa.

Artigo editado por Filipa Silva